Fim do rotativo do cartão? Como funciona hoje e o que pode mudar
Extinção da modalidade, taxação do parcelamento sem juros e limite a número de parcelas estão em discussão. Bancos, varejo e comércio reagem
atualizado
Compartilhar notícia
As declarações do presidente do Banco Central (BC), Roberto Campos Neto, sobre a possível extinção do rotativo do cartão de crédito, colocaram o tema no centro da pauta econômica, mobilizando parlamentares, membros do governo, bancos e associações de setores como varejo e serviços.
Sem apresentar um plano mais detalhado, o chefe do BC admitiu que tomou um “puxão de orelha” por abordar o tema de forma superficial, mas já antecipando medidas que vinham sendo debatidas havia meses e ainda não tinham se tornado públicas.
A discussão, que era mantida sob discrição até o pronunciamento de Campos Neto, envolve o Ministério da Fazenda, o BC, a Federação Brasileira de Bancos (Febraban) e o Congresso Nacional. O assunto deverá entrar na pauta do Conselho Monetário Nacional (CMN), composto pelo presidente do BC e pelos ministros da Fazenda, Fernando Haddad, e do Planejamento, Simone Tebet. Nenhuma decisão foi tomada até o momento.
Como funciona o rotativo do cartão
O rotativo do cartão de crédito é uma linha de crédito pré-aprovada no cartão. Ela é acionada por quem não pode pagar o valor total da fatura na data de vencimento. Em caso de inadimplência do cliente, o banco deve parcelar o saldo devedor ou oferecer outra forma de quitação da dívida, em condições mais vantajosas, em um prazo de 30 dias.
Segundo especialistas, o rotativo do cartão é a linha de crédito mais cara do mercado e deve ser evitada. A taxa média de juros cobrada pelos bancos nas operações com cartão de crédito rotativo ficou em 437,3% ao ano em junho, de acordo com dados do BC. No mês anterior, os juros estavam em 455,1%, atingindo o maior patamar desde 2017.
De acordo com os dados mais recentes do BC, referentes a junho de 2023, o rotativo do cartão de crédito é a linha com o maior nível de inadimplência (49,1%). “É uma anomalia muito grande uma taxa de juros que beira os 500%. Alguma coisa, de fato, precisa ser feita. Nesse sentido, a possibilidade de mudar ou até mesmo extinguir esse tipo de cobrança é bem-vinda”, afirma André Galhardo, consultor econômico da Remessa Online.
O que pode mudar
De acordo com a principal proposta que está sobre a mesa neste momento, as faturas não pagas entrariam diretamente no sistema de parcelamento do cartão, com uma taxa de juros mensal na faixa de 9% (atualmente, ela é de 15% ao mês). Isso significaria juros de 181% ao ano, bem abaixo do patamar atual do rotativo, mas ainda em nível elevadíssimo.
Desde 2017, uma regra estabelece que os bancos têm de transferir, depois de um mês, a dívida do rotativo do cartão para o parcelado, a juros menores. A ideia é que esse prazo seja reduzido de 30 dias para zero. “Já seria uma melhora, mas essa proposta ainda prevê juros muito elevados. Uma taxa de 9% ao mês não é normal, é muito alta”, diz Galhardo.
Outra alternativa, apresentada pelos bancos e fortemente criticada pelo comércio, é a de que seja instituído um limite para a quantidade de parcelas oferecidas pelo varejo. Além disso, as instituições financeiras querem que seja cobrada dos lojistas uma tarifa adicional no parcelado sem juros, o chamado intercâmbio.
“Restringir o acesso a compras parceladas seria um crime contra o brasileiro. É importante lembrar que houve um processo de empobrecimento da população nos últimos anos. Temos uma economia que cresce com muita dificuldade e passou, assim como o resto do mundo, por um período muito difícil por causa da pandemia. Grande parte das famílias que perderam renda usaram esse recurso de crédito para comprar bens de primeira necessidade”, afirma Galhardo.
Para a economista Carla Beni Menezes de Aguiar, da Fundação Getulio Vargas (FGV), o alto grau de endividamento no cartão mostra que é necessário enfrentar o problema – a questão agora é encontrar a melhor saída. “O item número 1 da inadimplência é o cartão de crédito. O que o BC apresentou foi apenas uma sugestão de que se retire esse produto financeiro e, caso a pessoa não consiga pagar a fatura integral, ela seja direcionada para outro financiamento, com uma taxa menor ao mês”, afirma.
Segundo a economista, o uso desenfreado do rotativo gerou uma “distorção” que dificilmente poderá ser resolvida com a modalidade funcionando da forma como acontece hoje. “O parcelamento, inicialmente, deveria ser direcionado para um produto ou um bem de valor agregado maior. No entanto, nós tivemos uma distorção desse instrumento, por causa da própria conduta da população e também pela renda mais limitada”, diz. “Criou-se um hábito entre as pessoas de parcelar tudo. Mesmo quem não precisa acaba parcelando, independentemente da renda.”
Projeto no Congresso
O rotativo do cartão de crédito também virou assunto nos corredores do Congresso Nacional. O tema será incluído no projeto de lei do Programa Nacional de Renegociação das Dívidas das Famílias (ReFamília), que deve estipular um prazo para que os bancos determinem um limite aos juros do cartão.
O PL 2685/2022, de autoria do deputado federal Elmar Nascimento (União-BA), trata da renegociação de dívidas de famílias com renda mensal de até R$ 5 mil. A proposta passou pela Comissão de Finanças e Tributação da Câmara e deve seguir para a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ).
Segundo o projeto, caberia ao CMN deliberar sobre o eventual limite aos juros do cartão, que não poderiam “ser superiores a limites já estipulados para modalidades de crédito com perfil de risco semelhante, a exemplo do que já ocorre com as taxas cobradas sobre o valor utilizado do cheque especial”.
O que dizem os bancos e entidades de comércio e serviços
Procurada pela reportagem do Metrópoles, a Associação Brasileira de Bancos (ABBC) afirmou que “o estabelecimento de um teto de juros poderá implicar desdobramentos extremamente contraproducentes, tais como a complexificação de entrada de novos players no mercado, a diminuição do acesso ao crédito e a redução da inclusão financeira”.
“Desconsiderando a alternativa de tabelamento dos juros ou quaisquer outras medidas restritivas de acesso do consumidor aos instrumentos de crédito, acreditamos que poderiam ser eficazes, em termos estruturais, ações como o fomento à portabilidade do crédito e o estabelecimento de uma comunicação mais transparente aos usuários sobre o valor dos juros, encargos e riscos envolvidos na utilização do produto”, diz a associação.
Em nota divulgada na quarta-feira (23/8), um grupo formado por 12 entidades ligadas ao comércio e ao setor de serviços – como a Associação Brasileira de Instituições de Pagamentos (Abipag), a Associação Brasileira de Defesa do Consumidor (Proteste) e o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) – defendeu a manutenção do parcelamento sem juros.
“A modalidade é indispensável para a população, comércio e serviços. Do ponto de vista dos consumidores, o parcelamento sem juros é a oportunidade de adquirir um produto ou serviço em condições que se encaixem melhor em seu orçamento. Para o comércio, o parcelamento é uma linha de crédito para capital de giro mais barata e a chance de fidelizar clientes”, diz o texto.