Exclusivo: esquema com liminares sigilosas oculta R$ 20 bi em dívidas
Associações usadas como fachada obtêm decisões judiciais que obrigam retirada dos nomes de empresas das consultas de protestos de dívidas
atualizado
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“Tá com nome sujo? Limpe seu nome!”. “Restauramos seu poder de compra”. “Tire seu nome do Serasa”. Promessas como essas, anunciadas na internet e até em outdoor em estradas, são a vitrine de um esquema utilizado por associações de fachada para ocultar protestos de dívidas nas bases de consultas públicas em todo o país, por meio de dezenas de liminares sigilosas (decisões provisórias) obtidas na Justiça.
Não importa o tamanho da dívida, por até R$ 1,5 mil a indústria limpa-nome já conseguiu ocultar ao menos R$ 20,4 bilhões em protestos dos sistemas de busca mais conhecidos, como Serasa, SPC Brasil e o Instituto de Estudos de Protesto de Títulos do Brasil (IEPTB). Só em São Paulo, mais de 745 mil protestos foram retirados do ar por força de decisão judicial — 512 mil envolvendo empresas e 233 mil CPFs.
No Brasil, por lei, os cartórios de protestos são obrigados a manter consulta gratuita sobre devedores, lista que é disponibilizada pelo IEPTB. Esta base de dados é extremamente relevante para o mercado, porque empresas e instituições financeiras a utilizam para saber se pessoas e companhias com as quais pretendem fazer negócios estão inadimplentes. Se a pesquisa retorna repleta de protestos, é um alerta para evitar calote.
O problema é que o instituto tem recebido diariamente dezenas de notificações judiciais para tirar nomes de empresas e pessoas físicas da sua base de dados. Além disso, as decisões proíbem que seja mencionado que os casos estão judicializados. Dessa forma, quem fizer uma consulta pelo CNPJ ou CPF de um beneficiário dessas liminares vai encontrar um nome limpo, sem nenhuma pendência.
As decisões, porém, não derrubam os protestos, nem as dívidas, que continuam ativas em cada cartório onde foram registradas e estão apenas ocultadas da lista para consultas públicas. O benefício para o caloteiro é que fica praticamente inviável fazer a pesquisa, que é paga, em todos os cartórios do país.
“Isso que está acontecendo é uma verdadeira praga, nunca tivemos esse tipo de situação. É um mal enorme para o mercado de crédito porque tem pessoas que têm um, dois, dez, cem, mil protestos e ficam de uma hora para a outra todas positivadas”, afirma o presidente do IEPTB em São Paulo, José Carlos Alves.
Em um caso concreto relatado ao Metrópoles, uma empresa gaúcha fechou um contrato de mais de R$ 600 mil com uma construtora, após constatar que ela estava com o nome limpo na consulta pública de protestos e uma boa avaliação (score) junto aos serviços de proteção ao crédito. Resultado: a empresa levou um calote e registrou dois protestos contra a construtora.
Como o nome não apareceu nas consultas, os advogados questionaram os cartórios e descobriram que a construtora havia conseguido limpar seu nome graças a uma liminar da Justiça do Piauí. Após uma apuração, eles constataram que a construtora havia ocultado 238 protestos, que correspondem a R$ 3,5 milhões em dívidas. Com o calote escondido, ela detém um score (avaliação) de 895 no Serasa — em uma escala de 0 a 1.000 — e uma probabilidade de inadimplência de apenas 0,4%.
O Metrópoles apurou outros 17 casos de empresários e pessoas físicas que tomaram calote após fecharem negócios com inadimplentes que estavam com seus nomes “limpos” nas bases de consulta, em razão de liminares judiciais. As vítimas acabaram descobrindo só no cartório de protestos que essas empresas e pessoas estavam atoladas em dívidas.
Segredo de Justiça
Em regra, as liminares que determinam a exclusão do nome dos inadimplentes estão em segredo de Justiça, mas o Metrópoles teve acesso a algumas delas. Uma mesma canetada chega a beneficiar milhares de pessoas e empresas. As decisões recaem tanto sobre o IEPTB quanto o Serasa, que mantém um sistema pago para consulta de dados de crédito — as duas ficam sediadas em São Paulo.
Os processos são movidos em comarcas no interior e nas capitais de Pernambuco, Paraíba e Piauí. Só nesses estados há 60 ações judiciais com o mesmo pedido em curso. Em Luis Correia, cidade de 30 mil habitantes no litoral piuauiense, são sete processos. Em Cortês, cidade pernambucana de 12 mil habitantes e a 109 quilômetros de Recife, quatro ações judiciais chegaram a beneficiar milhares de pessoas em todo o país.
Todas essas ações são movidas por associações, que conseguem o direito à Justiça gratuita por não terem fins lucrativos — isso seria mais difícil caso o processo fosse ajuizado por um dos devedores. O Metrópoles apurou que essas entidades, na verdade, são uma fachada para os interesses de quem vende a limpeza de nomes na praça e usa justamente essas decisões judiciais para cumprir a promessa.
Em uma estratégia para escolher os juízes que vão julgar essas ações, parte destas entidades faz o mesmo pedido à Justiça mais de uma dezena de vezes e desiste das ações até que o sorteio caia com um determinado magistrado. Em outra frente, também escolhem comarcas pequenas onde só há um juiz. Parte dos juízes têm aceitado os pedidos para beneficiar, em uma mesma decisão, centenas de associados.
Operação conjunta
Uma das empresas que vendem o serviço limpa-nome nas bases do Serasa é a CredCem, que fica em uma casa no centro de Barueri, na Grande São Paulo. De acordo com registro em cartório, na mesma cidade foi fundada a Associação Brasileira de Defesa do Consumidor (Abrae). O cadastro da entidade foi feito em nome de seu vice-presidente, Geová Nunes, que também é o único sócio da CredCem. No site da Associação, consta o endereço do escritório da empresa.
A entidade aprovou, no cartório, a constituição de uma nova “sede” em Pernambuco, onde entra na Justiça estadual para obter as liminares para beneficiar seus associados. O Metrópoles encontrou apenas a sede da CredCem. Questionada sobre a Abrae, uma atendente da empresa disse: “Quando os clientes [da associação] vêm fechar, eles vêm aqui porque é o local mais fácil de acesso. É como se fosse um parceiro da associação, mais ou menos isso”, disse.
Já Geová diz que não pode dar “muitos detalhes” porque o processo das decisões liminares “ocorreu há algum tempo”. “Não possuo conhecimento exato nem estudei o caso a fundo para fornecer informações precisas. Acredito que tudo que foi realizado na época foi discutido com as autoridades de créditos pertinentes”, disse. “Qualquer questão relacionada só pode ser tratada dentro do processo”.
“Novos associados”
A Abrae moveu o mesmo pedido diversas vezes na Justiça Estadual de Pernambuco para tirar os nomes de seus associados do cadastro público de protestos. Pediu desistência de mais de uma dezena das ações, menos daquela que caiu com o juiz Robinson José de Albuquerque Lima, que a julgou procedente.
O Metrópoles obteve acesso a seis decisões favoráveis do magistrado para a Abrae e outras entidades, que autorizaram a retirada de nomes do ar. Em parte desses despachos, ele aceita pedidos de extensão para outras pessoas físicas e jurídicas, que, segundo a entidade, são “novos associados”.
O argumento da Abrae e de todas as outras entidades é o mesmo: seus associados não foram notificados previamente e não puderam se defender dos protestos em cartório. Portanto, não poderiam constar em bases públicas e gratuitas como nomes sujos e devem ter seus scores (avaliações) recuperados.
Para além de fichas de inscrição dessas pessoas e empresas, as associações não anexam qualquer prova de que essa seja a realidade de cada um desses associados. O fato de esses nomes serem de clientes de uma empresa que vende a limpeza indiscriminada em seu site põe essa versão em maior descrédito. Também não há análise individual do juiz de nenhum caso específico.
Campeã de processos com o mesmo argumento, a Associação Brasileira de Defesa do Empresário e Consumidor (Abdec) tem sede em Recife e reúne pelo menos cinco empresários que vendem limpeza de nomes na praça. Parte deles assume abertamente que isso se dá por meio das liminares obtidas pela entidade.
Ao todo, são 15 ações idênticas na Justiça de Pernambuco contra o Serasa e o Instituto de Protestos. Parte na capital e pelo menos três na comarca de Cortês. Lá, há apenas um juiz, Antonio Carlos dos Santos, que decidiu favoravelmente à entidade, beneficiando milhares de pessoas e empresas associadas em todo o país. Ambos os juízes, de Recife e de Cortês, escrevem parágrafos idênticos em suas decisões.
O que dizem os envolvidos
O advogado Delmo Ferreira Neto, que defende a Abdec, afirma que a associação tem como foco a “luta jurídica pelos interesses dos vulneráveis que tiveram seus nomes inscritos em listas de negativação ou protesto sem a prévia notificação que é exigida pelo Código de Defesa dos Consumidores e pela Súmula 359 do Superior Tribunal de Justiça”.
Ele argumenta ainda que “a demanda coletiva é um instrumento constitucionalmente assegurado para evitar o congestionamento do Poder Judiciário, evitando que uma multiplicidade de ações individuais sejam interpostas e abarrotem a Justiça”.
Segundo o advogado, “todos os associados estão sob a mesma condição de fato e de direito, pois foram desabonados no mercado sem a garantia do contraditório e da ampla defesa”. Ele cita também uma norma do Código do Consumidor que define que a prova da “prévia notificação deve ser dos órgãos de negativação, prova esta jamais constituída por aquelas entidades, já que em momento algum evidenciam que realmente notificaram os consumidores filiados”.
Ferreira Neto menciona que, além das liminares dos juízes de primeira instância, algumas decisões favoráveis à entidade foram proferidas por desembargadores em agravos (recursos não definitivos), para ressaltar que “todas as ações coletivas foram chanceladas pelo Ministério Público e muitas referendadas pelo Tribunal de Justiça”.
Após a publicação da reportagem, juiz Robinson de Albuquerque afirmou que não pode comentar processos em curso. “Ao longo de 29 anos de magistratura, sempre procurei conduzir-me dentro dos mais rigorosos princípios legais e, portanto, estou vetado de emitir quaisquer opiniões, interpretações e ou entendimentos fora dos autos, acerca de temas discutidos em ações judiciais em geral, antes, em curso, ou após a respectiva propositura, demandas essas que quase sempre se encontram sob a apreciação do juízo ad quem, instância revisora por excelência”.
“Por derradeiro, registro que todos os aspectos relevantes são devidamente submetidos ao crivo do contraditório e apurados apenas dentro dos autos, segundo o rigor da Jurisprudência, da Lei e da Constituição, a fim de se repelitrem eventuais abusos de qualquer dos integrantes do processo”, disse.
Procurado pelo Metrópoles, o juiz Antonio Carlos dos Santos não se manifestou. O espaço segue aberto para manifestações.