Economistas veem com ceticismo criação de moeda comum com Argentina
Com uma inflação de 100% ao ano e com reservas internacionais quase zeradas, a Argentina volta a colocar à mesa uma proposta de moeda comum
atualizado
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Ainda que primária, a proposta da criação de uma moeda comum entre Brasil e Argentina suscitou debates – e muito ceticismo – entre economistas e investidores. Entre as razões para se crer que uma ideia assim não sairia do papel está as diferenças estruturais entre as duas economias.
Especialistas ouvidos pelo Metrópoles apontaram os possíveis obstáculos para a moeda comum, que teria o nome de “sur” (sul, em espanhol). Embora o governo não tenha divulgado informações detalhadas da proposta, o que se sabe, até aqui, é que a moeda teria o uso limitado a transações comerciais, para que os importadores e exportadores não precisassem lidar com o dólar.
Integrante da comitiva do presidente Lula à Argentina, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e o ministro da Economia da Argentina, Sergio Massa, assinaram um memorando de entendimento de integração financeira entre os dois países. O plano prevê a criação da “unidade comum de troca” para uso no comércio bilateral.
“Estamos defendendo nova engenharia que não chegue a pagamento em moedas locais, que deram errado anteriormente. Mas que não chegue ao estágio de unificação monetária, como é o caso do euro”, afirmou Haddad em entrevista a jornalistas em Buenos Aires.
O tema, que ainda será alvo de um grupo de trabalho criado por ambos governos, não é novo. O economista Affonso Celso Pastore, ex-presidente do Banco Central (BC), observa que, se o objetivo da medida é favorecer o comércio entre os dois países, já existe um recurso para isso.
O convênio de crédito recíproco foi um dispositivo utilizado entre Brasil e Argentina durante a crise econômica mundial de 2008, quando a oferta de dólares no mercado foi reduzida.
Esse mecanismo é acionado sempre que um país, a Argentina, por exemplo, exporta para o Brasil e fica com crédito. O mesmo vale no sentido contrário, quando o Brasil é o exportador.
“Nesse caso, é estabelecido um limite de crédito para os dois lados e, uma vez que ele é atingido, a operação é liquidada em uma moeda conversível”, diz Pastore. “Se for esse tipo de arranjo que está em debate, é natural. Se não for, é facilmente criticável. Mas é preciso aguardar.”
Reservas no vermelho
Se em 2008 o “gancho” para a discussão foi a crise econômica mundial, o principal impulsionador para a retomada da proposta parece ser o problema econômico na Argentina.
O vizinho sul-americano tem tido dificuldade para manter o nível de reservas internacionais em dólares, em razão da crise de credibilidade e pelo quadro de desvalorização crônica da moeda local. A inflação no país se aproxima de 100% ao ano, as reservas internacionais, na casa dos US$ 7 bilhões, são insuficientes para custear um semestre de comércio externo. Sem reservas, há uma limitação operacional para a venda para outros países.
“A Argentina tem problemas históricos com o balanço de pagamentos. Como é um país que tem dificuldade em obter moeda forte, a ideia foi tentar tirar o dólar de cena. A questão é qual seria a segurança e o lastro de uma nova moeda. Há muitas dúvidas sobre como operacionalizar”, diz Silvio Campos Neto, especialista em economia internacional da consultoria Tendências.
Ele cita, por exemplo, o saldo da balança entre os dois países, caso as transações sejam feitas em outra moeda. “Imaginando que o Brasil fique superavitário, o que fazer com a moeda excedente? Vamos ter uma reserva internacional que não em dólares? E o que fazer com essa reserva, se ela não será aceita no comércio com outros países?”, questiona o economista.
Na opinião de Tony Volpon, ex-diretor da área internacional do Banco Central (BC), entre 2015 e 2016, a história mais se parece um grande mal-entendido. Ele observa que tudo começou com uma reportagem publicada neste domingo (22/1) pelo jornal britânico Financial Times.
“O texto diz, literalmente, que os dois países estão preparando uma moeda comum”, nota Volpon. “Daí, começou a confusão.”
Para o economista, contudo, as notícias sobre esse tema não fazem sentido. “Em termos de uma aspiração, bem vaga, a longo prazo, pode ser”, afirma. “Nas condições atuais é um absurdo. Além do mais, é preciso ver os detalhes desse tipo de proposta para que o nosso sofrido contribuinte não leve um calote.”