Distância entre neoliberal e comunista é de 0,4 ponto, calcula Haddad
Em evento na USP, ministro narrou dilemas da equipe econômica na transição, quando decidiu “atender dois grupos, contrariando ambos”
atualizado
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O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, afirmou, em evento realizado na Universidade de São Paulo (USP), na sexta-feira (20/9), que a distância entre um neoliberal e um comunista, na prática, pode ser bem pequena.
Narrando uma história contada por um amigo, disse o ministro: “Se você defende um superávit (saldo positivo das contas públicas) de 0,2% do PIB, é considerado um neoliberal”, afirmou. “Mas se você defende um déficit de 0,2%, vai ser chamado de comunista. Então, a distância entre um neoliberal e um comunista é de 0,4 ponto.”
Para o ministro, não é possível que o país “tenha chegado a essa conclusão”. “E o que se vê é esse nervosismo, cada dia um susto”, afirmou, referindo aos solavancos recorrentes no mercado, em particular na cotação do dólar e na Bolsa de Valores. “E todo mundo quer o ajuste fiscal, contanto que não mexa com o seu. É simples assim no Brasil.”
Haddad disse que, se numa discussão concorda com o ajuste, mas indica que ele resultará no corte de um benefício fiscal, por exemplo, os interlocutores respondem: “Isso não, isso é direito adquirido”. “Você pode ser trilionário, mas o benefício fiscal é direito adquirido, não pode mexer”, disse. “Você pode estar no topo da carreira do serviço público, mas o benefício fiscal é direito adquirido, não pode mexer.”
Gasto de tempo
O ministro observou que gasta hoje ao menos 20% do tempo estudando ações judiciais, que, se perdidas pelo governo, podem desequilibrar as contas públicas. Essa análise, pode ocorrer com a interpretação de uma lei que “alguém colocou uma vírgula, justamente para ensejar uma dúvida, uma possibilidade de reinterpretação”. “E isso é uma indústria, você não consegue se livrar disso”, afirmou.
Na palestra, Haddad fez um relato dos conflitos que antecederam a posse do atual governo, que, para o ministro, não se deu em um processo normal. “Estávamos diante de riscos institucionais que tinham de ser considerados não só pelo presidente da República, mas por todos os ministros”, disse. “E o Ministério da Fazenda era uma peça-chave na transição para que o Brasil não corresse o risco de descarrilar.”
Grupos antagônicos
Ele observou que, em relação às questões econômicas, lidava com dois grupos antagônicos. “Nos encontrávamos naquele momento num dilema. Entre as forças políticas, havia um grupo de pessoas que entendia que não deveríamos levar em consideração, pela situação social que estávamos enfrentando, o equilíbrio das contas públicas”, disse.
Em contrapartida, “algumas pessoas, que também têm legitimidade, diziam que havia riscos concretos” naquele momento de um desarranjo econômico. “Nós não estávamos vivendo uma situação de normalidade nas finanças públicas”, afirmou.
Tensão
“Como se lida com essa tensão?”, perguntou o ministro. “Lembrando que um erro naquele momento poderia ter repercussões sociais e políticas muito consideráveis. Nós não estávamos em um processo normal de transição. Não era o Fernando Henrique passando o bastão para o Lula. Era uma equação difícil de resolver do ponto de vista político, econômico e social.”
Haddad disse que foi a seguinte a solução encontrada para o impasse: “Procuramos atender os dois lados, contrariando os dois lados”.
Ajuste sem recessão
Nesse contexto, veio foi formulada a PEC da Transição, segundo Haddad, “colocando uma série de despesas que o governo anterior não havia contemplado no orçamento”. “A estimativa era de que faltaria R$ 150 bilhões para fechar a conta”, afirmou. “Isso pagando as despesas que haviam sido contratadas até então. Veio depois a desconstitucionalização do teto dos gastos.”
Para Haddad, o objetivo era realizar um “ajuste fiscal não recessivo”. “Algo que não comprometesse o crescimento”, disse. “Era isso que o mercado não esperava.”
Confronto maior
O resultado, acrescentou o ministro da Fazenda, foi que o mercado previa um crescimento de 0,8% no ano passado e o país cresceu 2,9%. “Neste ano, o mercado previa 1,5%, mas o Brasil vai crescer 3,2%. Num trimestre (o segundo de 2024), o Brasil cresceu 1,4%. Ou seja, o que o mercado previa para o ano inteiro.”
Haddad acrescentou que a “economia muitas vezes não é a escolha do governo eleito”. “Às vezes, o confronto é muito maior do que isso”, afirmou.