Crédito de carbono é “mercado de boutique” no Brasil, diz pesquisador
Daniel Vargas, coordenador do Observatório de Bioeconomia da FGV, em SP, afirma que setor ainda é “pequeno, caro e elitista” no país
atualizado
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É provável que o termo “mercado voluntário de crédito de carbono” esteja entre os mais citados e, ao mesmo tempo, entre os mais incompreendidos nos debates econômicos do planeta. Mas faz sentido. A coisa toda soa um pouco estranha mesmo.
Afinal, tudo começa quando um país ou uma empresa fixa voluntariamente um limite para a emissão de gases do efeito estufa (GEE), que provocam o aquecimento global. Se ultrapassar essa cota, esse emissor compensa os GEE que espalhou pelo ambiente pagando uma quantia, como um prêmio, para quem preserva áreas verdes ou usa técnicas de produção menos poluentes.
Assim, esse mercado é um mecanismo de compensação. Quem contribui para o aquecimento, mas quer minimizar o impacto global desse problema, oferece um crédito que pode ser utilizado por aqueles que já contribuem com a preservação do ambiente.
E funciona? As estimativas apontam que esse mercado movimentará cerca de US$ 2 bilhões no mundo neste ano. O Brasil responde por 12% da emissão dos créditos. “E isso é muito pouco diante do nosso potencial”, diz Daniel Vargas, coordenador do Observatório de Bioeconomia, da Fundação Getulio Vargas, em São Paulo.
“O fato é que, apesar de tudo o que é dito e de todas as expectativas, aqui ainda temos uma espécie de ‘mercado de boutique’, que é pequeno, caro e elitista.” Por quê? É o que Vargas explica a seguir, em entrevista ao Metrópoles.
Há grande expectativa do potencial do Brasil como protagonista na área ambiental. Isso se reflete no mercado de crédito de carbono?
Não. Existe um tremendo descompasso entre o potencial do Brasil nesse campo e a realidade. É verdade que temos um imenso maciço florestal, uma matriz energética limpa e uma capacidade enorme de produção sustentável de alimentos. Também temos nossos pecados, como o desmatamento da Amazônia, mas, se isso parar, nosso cenário é muito positivo. Mas estamos distantes de conseguir aproveitá-lo.
O quão distantes?
Na prática, em todo o país, temos em andamento apenas 159 projetos de crédito de carbono. No quesito volume, o Brasil ocupa a oitava posição no mundo. Estamos atrás de países como Ruanda, Uganda e Quênia.
Por que são tão poucos projetos?
A maioria é de proteção florestal na Amazônia. Eles são tocados por pouquíssimos e grandes proprietários, com um custo de certificação que não fica por menos de R$ 1 milhão e demora dois anos para sair do papel.
Então, é um mercado limitado?
É um mercado de boutique. Ele é pequeno, caro e elitista.
Por que é assim?
De um lado, temos uma organização internacional, uma ONG, chamada Verra, que detém quase o monopólio da certificação desses créditos. Ela tem uma imensa credibilidade no mercado. Por isso, pode dizer se um projeto de fato economizou as toneladas de carbono previstas na proposta. Mas atua quase sozinha e isso é um tremendo gargalo. Hoje, a lista de metodologias usadas por essa empresa também é muito limitada, restringe a possibilidade de concessão de créditos para pouquíssimas atividades. No Brasil, as principais são preservação ou regeneração de áreas florestais.
Mas esse é um bom mercado? As pessoas ganham dinheiro com isso?
A resposta é sim, ganham.
Se é bom, por que tem tão poucos?
A porta de entrada é muito estreita. A montanha que você tem de escalar para conseguir esse tipo de crédito é muito íngreme. O projeto tem de ser feito por uma “desenvolvedora” específica e são poucas no mercado, não mais do que cinco ou seis. A Verra, como disse, é uma das únicas certificadoras mundiais dessas propostas. Todo esse material tem de ser produzido em inglês. E, de novo, tudo é caro e demorado.
Quais as chances de uma comunidade ribeirinha se valer desse tipo de crédito por preservar áreas florestais?
Zero. Nas atuais condições, zero. E elas ainda têm um risco adicional.
Qual?
À medida que o desmatamento aumenta, o valor do crédito se eleva. Mesmo porque cresce o risco e paga-se mais pela preservação. Por isso, agora, estamos vendo voltar à cena o que as pessoas chamavam de “carbon cowboys”. São pessoas que enganam os fazendeiros e aplicam golpes com esses créditos.
Quais os outros problemas desse mercado no Brasil?
Um dos maiores gargalos é que a agropecuária está fora dele. Hoje sabemos que as atividades desse setor, se bem-conduzidas, podem ter um papel fenomenal no sequestro de carbono. Essa ausência do segmento nesse mercado é resultado de um misto de ignorância com preconceito ideológico, que exclui tudo o que tem a ver com o agro como fonte de créditos. A Europa, por exemplo, usa um critério que é o oposto disso.
Qual é o critério na Europa?
Lá, a essência do mercado de carbono é financiar a inovação tecnológica e o aprimoramento técnico. Assim, beneficiam-se dos créditos fabricantes de veículos elétricos, ou mesmo, uma petroleira que desenvolve uma inovação para evitar a emissão de metano, por exemplo.
O crédito lá está ligado à produção?
Sim. Na Europa, ele é produtivo. Aqui, é contra a produção. Ou seja, dou crédito para você não tocar na floresta, para garantir que a economia não vai entrar naquele solo. Nada contra a preservação, claro. Mas não pode ser só isso. Na Europa, nos Estados Unidos e em outros países o papel do crédito de carbono é acelerar a economia para que ela seja mais eficiente na utilização dos recursos naturais.
Nesse contexto, qual a perspectiva desse mercado?
Enquanto os países desenvolvidos não conseguem superar o gargalo tecnológico, eles vão comprar créditos de países como o Brasil para compensar a sujeira que fazem. Mas isso vai mudar. Daqui a dez anos, quando estiverem com a tecnologia domesticada, quem sabe, nós teremos de limpar nossa economia e pagar para eles.
Como se resolve esse problema?
É preciso abrir o mercado de carbono para as nossas atividades produtivas, como a agricultura e a pecuária. Isso para começar. Quem faz bem-feito, merece um prêmio. Ao fazer isso, aceleramos a escalada da sustentabilidade no Brasil. E o produtor pode passar a ver a agenda ambiental como sócia da produção e não como uma ameaça.
E como se muda um mercado tão concentrado?
Hoje, como disse, temos basicamente uma organização que certifica esses créditos e meia dúzia de empresas que desenvolvem projetos. Dessa forma não dá para atender à demanda potencial do mercado brasileiro. Mas essa mudança não é simples. Para atuar nessa área em âmbito global, é preciso ter credibilidade. Essas empresas têm. Agora, considerando a ciência e a técnica das instituições brasileiras nesse campo, tenho certeza que também podemos fazer isso. Nesse sentido, o mais importante é entender a natureza estratégica dessa demanda.