Como o “caso Americanas” contaminou empresas como Marisa, CVC e Light
Possível manipulação da Americanas para esconder dívidas de R$ 20 bi levou bancos a fechar as portas para a concessão de crédito no mercado
atualizado
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Uma crise do tamanho da Americanas não ficaria restrita ao próprio universo da empresa. Desde que a varejista comunicou ao mercado a identificação de “inconsistências contábeis” de R$ 20 bilhões, um mês atrás, os bancos fizeram uma mudança radical na sua política de concessão de crédito.
Especialistas do setor ouvidos pelo Metrópoles são unânimes: a torneira dos financiamentos secou. Até que os bancos consigam entender a engenharia do problema contábil da Americanas e até que consigam absorver o baque do não-pagamento da dívida de mais de R$ 25 bilhões da varejista, o mercado de crédito está fechado para negócios.
“Empresas que já tinham problemas pontuais, como um endividamento elevado ou dificuldade para gerar receita, não estão conseguindo rolar as dívidas. O mercado está bagunçado pelo evento da Americanas, então foi necessário contratar um assessor financeiro para renegociar o passivo, em alguns casos”, explica Mariana Fenelon, especialista em crédito privado na gestora de investimentos do banco Inter.
Só nas últimas duas semanas, três empresas recorreram a essa ajuda: a concessionária de energia Light, a empresa de viagens CVC e a varejista de moda Marisa.
Em nenhum dos casos, a reestruturação de dívida é uma evidência imediata de que tais empresas entrarão em recuperação judicial. De qualquer forma, em um momento de gestores e bancos desconfiados, qualquer notícia como essa serve para deixar o clima ainda pior.
“Inferno particular”
Cada uma das empresas que buscou ajuda para renegociar a dívida tem um “inferno particular”. No caso da Light, o vencimento do contrato de distribuição de energia no Rio de Janeiro já em 2026 é o começo do problema. A concessão carioca é a única administrada pela Light, o que significa que, caso o contrato não seja renovado, as receitas irão a praticamente zero. Por isso, os bancos não querem conceder empréstimos para além desse prazo.
“Os bancos têm uma capacidade de liquidez enorme para absorver até mesmo impactos relevantes, como o das Americanas. Não há um risco sistêmico, mas certamente há muita desconfiança e exigência de prêmios e juros maiores para renegociar, o que piora a situação das empresas que têm custos financeiros elevados”, diz Luis Gustavo Pereira, responsável pela área de Mercado de Capitais da Guide Investimentos.
A empresa de energia tenta negociar com a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) a antecipação da renovação da concessão. Para piorar, a Light tem um dos piores índices de perda energética, causado por problemas como o roubo de energia, o que afeta sua capacidade de gerar receitas.
O caso da CVC é diferente. A empresa tem conseguido melhorar os dados operacionais, em razão da retomada de viagens no pós-pandemia. Durante os meses de restrições sanitárias, a CVC buscou o mercado para conseguir recursos para sobreviver.
A dívida acumulada ficou elevada e o pagamento dos juros e rolagem está consumindo todo o lucro da empresa. Muitos desses créditos vencem já ao longo de 2023, o que torna a renegociação mais urgente.
“Quando os juros estavam baixos, a maior parte das empresas decidiu buscar o alongamento e renegociação de dívidas de forma proativa. Quem não fez isso antes e agora precisa tentar resolver o problema está encontrando dificuldades, porque a Selic está alta e as portas estão fechadas”, afirma David Camacho, sócio da gestora de crédito privado Devant.
Varejo
A Marisa tenta renegociar uma dívida de curto prazo de R$ 600 milhões com os bancos. Das três empresas que pediram para rediscutir as dívidas, ela é a que tem maior exposição ao “caso Americanas”, embora não esteja diretamente ligada ao problema financeiro que engoliu a varejista.
Ressabiados com a falta de pagamento da Americanas, fornecedores do varejo estão adotando regras mais restritivas em todas as negociações. O caixa de empresas do setor está sendo queimado mais rapidamente, por causa das mudanças.
A exigência de quitação à vista pelas mercadorias, por exemplo, ficou mais frequente, uma vez que os bancos deixaram de fazer a intermediação entre o varejista e os fornecedores, financiando os recebíveis. Tal operação é chamada de risco-sacado e foi justamente o calcanhar de aquiles da Americanas.
O que se sabe até agora é que a varejista não lançou o passivo de risco-sacado corretamente e por isso teve uma diferença contábil de R$ 20 bilhões em sua dívida oficial.
O pessimismo atinge o varejo como um todo, mas baqueou primeiro a Marisa, empresa que tenta há mais de cinco anos reestruturar operações e financiar suas dívidas para continuar de portas abertas. O cenário de inflação e juros elevados deprime o consumo e seca o faturamento das empresas.
“Quando se fala em Bolsa de Valores, o varejo é um dos mercados de pior crescimento, por causa de questões econômicas, como o baixo poder aquisitivo do consumidor”, observa Caio Camargo, especialista em varejo.
Ontem (9/2), após a notícia da reestruturação das dívidas, as ações da Marisa caíram 22% e entraram no grupo de “penny stocks” – ações que valem menos do que R$ 1.