Americanas trocou auditoria que fechava cerco sobre “fraude”
Segundo o comitê independente que apurou o caso, os Conselhos de Administração e Fiscal não questionaram mudança. Versão é contestada
atualizado
Compartilhar notícia
A Americanas decidiu trocar a empresa que realizava a auditoria externa de seus balanços, a KPMG, no momento em que os auditores fechavam o cerco sobre a análise de operações contábeis, que estavam na base da suposta fraude de R$ 25,2 bilhões registrada na varejista. A informação consta no relatório do comitê independente – ao qual o Metrópoles teve acesso –, criado pela própria companhia para apurar o episódio.
De acordo com o relatório, a KPMG atuou como a auditora das Lojas Americanas S.A. (Lasa, responsável pelo comércio físico), B2W (o braço digital da varejista) e demais empresas do grupo entre 2016 e 2019. “No terceiro trimestre deste ano (2019), é realizado um distrato”, diz o texto do comitê, acrescentando que a PwC foi escolhida para reassumir o trabalho (ela já havia trabalhado com a varejista entre 2011 e 1015).
O comitê acrescenta que foram apresentadas aos Conselhos de Administração de Lasa e da B2W duas justificativas para a mudança. Uma delas diz respeito aos “valores comerciais” – ou seja, o preço. O segundo argumento era de uma “alegada intenção de que a auditoria conduzisse um projeto para implementar um sistema de gerenciamento de banco de dados nas companhias”. A execução desse trabalho, argumentaram os diretores, criaria um potencial conflito de interesses, uma vez que a KPMG já atuava como auditora externa da empresa.
O documento do comitê afirma que, “tal projeto, contudo, não foi implementado”. “Não foram identificadas evidências, com base nos documentos revisados, de que a KPMG estivesse trabalhando em outros projetos ou prestasse serviços para a Lasa ou a B2W no período da troca ou imediatamente após a sua ocorrência”, diz o texto. Ou seja, os integrantes do comitê não confirmaram o segundo motivo para a dispensa.
“Flexibilidade”
O comitê informou ainda que, para a definição da troca de auditor, documentos indicam que diretores e funcionários da Lasa e da B2W avaliaram diferentes firmas com base em alguns critérios. Os parâmetros utilizados estavam centrados em questões como a “flexibilidade em assuntos de julgamento”.
O documento destaca ainda que “não foram identificados questionamentos por parte dos membros dos Conselhos de Administração e Conselhos Fiscais de LASA e B2W sobre a troca antecipada de auditores”. Antecipada porque, em tese, a KPMG poderia atuar como auditora externa da Americanas ao menos até 2020. [O Conselho de Administração da Americanas contesta a versão da ausência de questionamentos. Leia nota abaixo.]
O comitê independente nota que, no ano de 2019, a KPMG reportou à empresa assuntos relacionados a operações de “risco sacado” e Verbas de Propaganda Cooperada (VPCs). Ambas as ações, segundo as investigações preliminares da Polícia Federal (PF) e manifestações da atual diretoria da Americanas, estariam na base da arquitetura da suposta fraude registrada na varejista [Leia, abaixo, mais informações sobre “risco sacado” e VCP.]
Várias instâncias
Esses informes da KPMG foram feitos em várias instâncias e ocasiões. Elas incluíram apresentações trimestrais aos Conselhos Fiscais de LASA e B2W e ao Comitê de Auditoria de B2W. Isso além de Cartas de Controles Internos (CCIs), documentos usados pelas auditorias , da LASA e da B2W e em correspondência com os responsáveis pela área de finanças (os CFOs, sigla em inglês para Chief Financial Officer) das duas empresas. Em agosto de 2019, a KPMG chegou a comunicar que “planejava ‘circularizar’ VPC em janeiro de 2020”.
“Risco sacado” e VPC
Aqui, cabe uma explicação sobre essas operações. No “risco sacado” (também chamado de “forfait” ou “confirming”), a dívida que uma varejista (caso da Americanas) tem com um fornecedor (um fabricante de eletrônicos, por exemplo) é assumida por um banco. Mediante um desconto, a instituição financeira antecipa o pagamento ao fornecedor e a varejista passa a ser devedora do banco. Nessa triangulação, em tese, todos ganham.
Nas cartas de Verba de Propaganda Cooperada (VPC), uma indústria remunera as varejistas (a Americanas, no caso) por seus esforços de vendas. Isso acontece quando o varejo inclui produtos de algum fabricante em seus materiais de publicidade, ou ainda, quando expõe com destaque um produto de determinado fabricante em suas prateleiras.
O “risco sacado” e as VPCs são amplamente usadas no mercado. Na varejista, apontam as investigações, elas eram supostamente combinadas para inflar o balanço da empresa artificialmente.
Conferência do VPC
Assim, no jargão das auditorias, quando a KPMG informou que iria “circularizar VPC”, isso significa que ela pretendia verificar se os dados fornecidos pela Americanas sobre essa operação eram corretos. Na prática, ela mandaria para os fornecedores cartas questionando se os valores correspondentes às VPCs eram verdadeiros. Uma fonte próxima do caso disse ao Metrópoles que, provavelmente, as companhias iriam responder que não, uma vez que alguns desses dados eram fraudados, conforme indicam as investigações realizadas até aqui.
As informações do comitê independente sobre o cerco que a KPMG fazia sobre essas operações, notadamente o VPC, condizem com as declarações feitas por Carla Bellangero, sócia da KPMG, à Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Câmara dos Deputados, encerrada em setembro de 2023. O depoimento ocorreu um mês antes, em agosto.
Versão sobre a troca
Bellangero disse que a Americanas rescindiu o contrato seis dias depois que a auditoria enviou um documento à empresa, apontando “deficiências” sobre as operações de VPC. Ela acrescentou que foi remetida à varejista uma carta de controle extraordinária (usada para apontar problemas encontrados na auditoria) em agosto de 2019 que relatava “deficiências e necessidades de melhorias de controles internos”. “Seis dias depois, a administração rescindiu o contrato alegando motivos comerciais”, afirmou a auditora
Na CPI, Bellangero afirmou ainda que os problemas identificados foram comunicados em encontros periódicos com a cúpula da companhia. “Eu estive presente em 50 reuniões junto aos conselhos fiscais das duas companhias (Lasa e B2W) e do comitê fiscal da B2W ao longo de três anos e meio”, afirmou. Segundo a auditora, em boa parte dessas ocasiões, o tema VCP foi abordado.
Versão do Conselho
Por meio de nota, a assessoria do Conselho de Administração da Americanas informou que a “troca de auditoria foi uma proposta da antiga diretoria, com justificativas apresentadas por escrito e debatidas na reunião de Conselho, num contexto em que não havia qualquer suspeita de fraude”.
“As justificativas”, segue o texto, “eram plausíveis do ponto de vista empresarial, inclusive porque a nova empresa a ser contratada [a PwC] também tinha reputação ilibada e reconhecimento internacional. A auditoria substituída deu anuência à mudança, na época, e não fez qualquer ressalva junto a Comissão de Valores Imobiliários (CVM), como lhe cumpria caso houvesse qualquer suspeita de que a alteração fosse motivada por razões espúrias”.
Por fim, diz o texto: “É importante lembrar que todos os pareceres de auditoria foram emitidos sem ressalva e que as auditorias jamais apontaram qualquer deficiência significativa, que merecesse atenção do Conselho de Administração. Todas as recomendações de melhoria eram, ainda, monitoradas pelo Comitê de Auditoria.”
Outras notas
Também por nota a KPMG informou que, “por motivos de cláusulas de sigilo e regras da profissão, está impedida de se manifestar sobre casos envolvendo clientes ou ex-clientes da firma”.
A Americanas disse que “reitera que os resultados do trabalho do comitê independente – sobre o qual a empresa não teve qualquer ingerência – evidenciam a fraude cometida pela antiga diretoria, que manipulou controles internos omitindo informações dos órgãos de governança para garantir impunidade. A Americanas reafirma que é a maior interessada no esclarecimento dos fatos e na responsabilização judicial de todos os envolvidos”.