Americanas: mensagens inéditas mostram diálogos da cúpula pré-crise
Conversas citam conselheiros da Americanas, como Paulo Lemann e Beto Sicupira, e foram extraídas pela PF de celulares de dois delatores
atualizado
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Pelo menos duas dezenas de mensagens trocadas entre ex-diretores da Americanas citam os nomes de Paulo Alberto Lemann e Carlos Alberto Sicupira, conhecido como Beto. Ambos são membros do conselho de administração da varejista. Paulo é filho de Jorge Paulo Lemann, sócio do 3G Capital, que, ao lado de Beto e Marcel Telles, forma o trio de acionistas de referência da companhia.
As mensagens constam no inquérito da Polícia Federal (PF) que investiga o rombo contábil de cerca de R$ 25,2 bilhões registrado na Americanas. As conversas foram extraídas dos celulares de Marcelo Nunes, ex-diretor financeiro da empresa, e de Flavia Pereira Carneiro Mota, responsável pela área de controladoria da companhia. Ambos colaboram com a PF na investigação do caso, por meio de delações premiadas.
Boa parte das mensagens revela, sob a ótica dos dois delatores – Nunes e Flavia – a antevéspera da explosão da crise, deflagrada em 11 de janeiro de 2023 com a divulgação da suposta fraude na empresa. A maior parte das discussões nas quais Paulo Lemann é citado ocorre entre Nunes e o ex-CEO da Americanas, Miguel Gutierrez. Elas datam de 2021 a dezembro de 2022.
Algumas mostram Paulo Lemann cobrando informações de Nunes sobre o desempenho da companhia. Outras formam um retrato do dia a dia de uma gestão, em que um subordinado – no caso, Nunes – consulta seu superior – o então CEO Gutierrez –, para saber como responder a uma série de questionamentos feitos por integrantes do conselho de administração.
“Bastante preocupado”
Em 10 de novembro de 2023, por exemplo, dois meses antes de a crise da Americanas explodir – o que ocorreu em 11 de janeiro –, Nunes enviou a Gutierrez uma mensagem recebida de Paulo Lemann. Nela, o conselheiro e filho do acionista de referência da empresa afirma estar “bastante preocupado” com o nível de estoque da companhia. (Veja, a seguir, o teor das conversas, instante a instante, nas quais foram mantidos os textos originais, com eventuais explicações de termos técnicos ou siglas, feitas entre colchetes):
Num primeiro momento, Nunes apenas repassa a Gutierrez um pedido feito por Paulo Lemann.
[15h16] “Bom dia Marcelo,
1) saí do conselho bastante preocupado com esse estoque acima de 180 dias. Tem mais detalhes disso? E mais antigo que 180 dias? E celular? Etc.
2) preocupado que estamos sem estoque “quente” para Black Friday, Copa, Natal, etc. Procede?
3) quem vai liderar o webcast amanhã?
Abs.”
[15h17] Na sequência, Nunes indica a Gutierrez a origem do texto: “Mensagem do Paulo Lemann.”
[15h32] A seguir, o ex-diretor envia ao chefe uma primeira “sugestão de resposta” à pergunta do conselheiro. Ele escreve a Gutierrez:
“Sugestão de resposta:
O estoque acima de 180 dias está concentrado nos itens importados e em itens de eletroeletrônicos que compramos nos últimos 2 trimestres. Importante reforçar que essa métrica de cobertura é calculada com base na venda dos últimos 30 dias. Isto é, a desaceleração da venda no curto prazo provoca um aumento imediato. Dado essa dinâmica, apertamos a compra e tivemos que ser mas [mais] assertivos na escolha e volumes dos itens, mas temos os itens de desejo dos clientes no estoque. Será na mesma dinâmica dos últimos calls, com a participação dos CEOs.”
[15h36] Gutierrez responde, indicando uma alteração.
“Me parece uma boa resposta, salvo a do estoque, que colocaria de forma mais abrangente. Ou seja, não caracterizaria que é decorrente de compra dos últimos 2 trimestres… colocaria de forma genérica.”
Em 15 de dezembro de 2022, menos de um mês antes da crise, Nunes enviou a Gutierrez, outra mensagem recebida de Paulo Lemann.
[15h44] Pede Paulo Lemann a Nunes: “Oi Marcelo, Tudo bem? Você pode nos dar um update sobre geração de caixa no 4t [quarto trimestre] e dívida fim do ano? Obrigado. Abs. Paulo”
[15h59] A seguir, Nunes envia a Gutierrez uma sugestão de resposta à dúvida de Lemann.
“Oi Paulo, Tudo bem e você?
O cenário desafiador de venda que vimos no 3T22 [3º trimestre de 2022] se intensificou no 4T22 [4º trimestre de 2022], principalmente no digital (nas categorias de alto ticket médio). Estamos estimando um atingimento entre 75%-80% da venda projetada (apresentada no último CFIN [comitê financeiro]. Essa perda de venda deverá afetar o consumo de caixa de acordo com a análise de sensibilidade que apresentamos (slide 33), algo em torno de 3,5Bi no trimestre.”
[16 horas] Nunes, pergunta a Gutierrez: “O que acha?”.
[17h28] A sequência de mensagens não traz a resposta do ex-CEO da Americanas, mas, menos de meia hora depois, Nunes envia a Gutierrez outra versão do texto, um pouco mais enxuta:
“Segue nova sugestão, conforme falamos.
Oi Paulo, Tudo bem e você?
O cenário desafiador de venda do 3T22 [terceiro trimestre de 2022] se intensificou no 4T22 [quarto trimestre]. O atingimento da venda no trimestre vs. a projeção apresentada no último CFIN está em torno de 77%, podendo chegar em 83%, caso consigamos recuperar a venda de dezembro, com a aproximação do Natal. Com esse atingimento, projetamos o consumo de caixa muito próximo à análise de sensibilidade que apresentamos em novembro, entre 2,5Bi e 3,5Bi.”
[18 horas] Gutierrez retorna:
“Me parece bom. Mostrou para os demais?”
[18h14] Nunes responde:
“Para o Marcio e Timotheo sim. Enviei para a Anna. Ainda preciso falar com ela.”
Note-se que Marcio Cruz Meirelles, José Timotheo de Barros e Anna Christina Saicali também integravam a cúpula da Americanas nessa época. Eles fazem parte do grupo de 14 ex-executivos da companhia investigados pela PF, por suposta participação na fraude, embora o grupo negue qualquer envolvimento no caso.
Antes disso, em 31 de outubro, Nunes já havia consultado Gutierrez a respeito de outro pedido do conselheiro Paulo Lemann:
[17h43] “Recebi essa mensagem do Paulo Lemann”, diz Marcelo Nunes, que inclui o seguinte texto no corpo da mensagem: “Oi Marcelo, Tudo bem? Para o CF [comitê de finanças] da semana que vem, você pode detalhar o resultado do 3Q [terceiro trimestre] e alguma previsão do 4Q [quarto trimestre]. Seria importante uma olhada na evolução do caixa e dívida do ano (com e sem recebíveis) e uma forecast [previsão] para o ano. No K [capital] de giro, você consegue nos [dar] mais transparência da piora entre normalização pgto fornecedores, antecipação fornecedores e aumento do estoque? Obrigado. Abs”
Em 2 de novembro de 2022, Paulo Lemann segue sabatinando Nunes, que informou Gutierrez ter recebido a seguinte consulta:
[13h22] “Marcelo,
Qdo apresentar projeção do 4t [quarto trimestre], o ideal seria ir mais para frente para vermos a situação do caixa, k [capital de giro], etc. Acho que o ideal seria também apresentar um cenário de estresse para o 4t para sabermos o que pode vir, também indo mais para frente. Vamos focar o comitê nisto. Comitê precisa entender bem o que aconteceu no trimestre e o que está por vir. Abs.”
A seguir, uma nova batelada de pedidos desaba na caixa de mensagens de Nunes, em 5 de novembro, quase um mês antes da crise. Desta vez, o texto cita “Beto” Sicupira, o conselheiro e acionista de referência, e “Eduardo” Saggioro, presidente do conselho de administração da Americanas. Nunes repassa a Gutierrez a seguinte mensagem de Paulo Lemann:
[8h41] “Oi Marcelo,
Pontos que o Beto e Eduardo pediram para serem endereçados no CF [comitê financeiro]. Complementar ao que tinha sido pedido. Abs
Seguem pontos que falamos para endereçar via comitê financeiro. Avisem por favor caso tenham alguma consideração.
Capital de Giro
Deve-se trazer análise que responda o quanto da piora do WK é pontual (efeito do descasamento da queda da venda com o estoque e contas a pagar) e o quanto é estrutural (novo patamar de dias de contas a pagar). Para tal, deve-se responder:
– Qual é o atraso atual de fornecedores vs. histórico?
– Qual é o impacto no estoque do que não foi vendido?
– Qual é [a] expectativa de ajuste de compras para os próximos meses?
Além disso, deve-se trazer a projeção do consumo/geração de caixa nos próximos 12 meses.”
[8h43] Gutierrez, questiona: “Igual ao enviado pelo Saggioro?”
[8h43] “Sim. Os mesmos tópicos”, responde Nunes.
Na caixa de mensagens de Marcelo Nunes, havia repasses de mensagens menos detalhistas enviadas por Paulo Lemann. Numa delas, em 11 de setembro de 2022, o conselheiro questiona, segundo informou o ex-diretor da varejista ao chefe:
[12h41] “Bom dia Marcelo, Gostaria de te pedir uma atualização sobre as projeções financeiras de 2022 para o CF [comitê financeiro] de agosto. Pode ser? Muita mudança de cenário, crescimento, etc. Grande abs.” Nunes comenta: “Mensagem que acabei de receber do Paulo Lemann”.
[12h57] Sucinto, Gutierrez devolve: “Interessante”.
Outras menções a Beto Sicupira são menos específicas – e, em geral, mais antigas. Muitas delas contam em conversas por celular entre Carlos Padilha, ex-diretor financeiro da Americanas, e a outra colaboradora da PF, Flavia Pereira Carneiro Mota, ex-responsável pela área controladoria da Americanas. Em 7 de fevereiro de 2019, Padilha cita numa cobrança um tanto genérica do conselheiro:
[9:46] “Beto está pedindo o resultado consolidado para ver. Pode fazer um joguinho?”, diz o texto.
Em 15 de abril de 2020, diz Padilha a Flavia:
[16:52] “Miguel vai enviar Beto e pedir ajuda tb junto ministro”.
Nas conversas, não está claro o contexto dessa mensagem. Nesta época, contudo, a Americanas tentava manter lojas abertas, em meio ao fechamento do comércio durante a pandemia.
Sicupira também em comunicações triviais, como em 22 de dezembro de 2018, quando Padilha e Flavia discutem a compra de um presente para Gutierrez. No caso, trata-se de um livro, para o qual o ex-executivo sugere:
[17h24] “Ele [Gutierrez] gosta daquele bilionário sócio do Beto na Heinz. Qual nome dele?”, diz Padilha, referindo-se, possivelmente, ao megainvestidor americano Warren Buffett, a sexta pessoa mais rica do mundo, segundo a lista de bilionários de 2024 da Forbes.
Manifestações
O Metrópoles consultou a assessoria de comunicação da Americanas e os advogados dos colaboradores das investigações realizadas pela PF e dos ex-dirigentes da varejista. A empresa não se manifestou sobre o tema.
A assessoria dos conselheiros afirmou que “as trocas de mensagens apresentadas corroboram sua atuação dentro dos mais altos padrões de ética e diligência e comprovam que os ex-executivos ocultaram, até o ultimo momento, a real situação econômica da empresa e a existência das operações de risco sacado que hoje se sabe estavam escondidas nos balanços”.
Os advogados do ex-CEO Miguel Gutierrez informaram:
“A defesa de Miguel Gutierrez reforça que todos os seus atos de gestão eram conhecidos pela governança corporativa da Americanas e que as trocas de mensagens em questão tornam evidente que tudo o que acontecia na companhia era de pleno conhecimento do conselho de administração e dos acionistas controladores. Documentos fora de contexto continuam sendo usados na tentativa de construir uma narrativa absolutamente falsa, mas Miguel confia que a verdade sobre os fatos irá prevalecer.
“A defesa reitera ainda que Miguel jamais participou ou teve conhecimento de qualquer fraude e que segue colaborando com as autoridades, prestando os esclarecimentos devidos nos foros próprios.”
O representante legal de Marcelo Nunes afirmou que não faria comentários, uma vez que a “colaboração segue sigilosa”. O advogado de Flavia Carneiro não quis se manifestar.
A defesa de José Thimoteo de Barros informou que “não comenta as mensagens, indevidamente vazadas, em especial aquelas provenientes de terceiros”. A reportagem segue tentando contato com os representantes legais de Márcio Cruz e Anna Saicali.