À beira do abismo: o que explica a crise do mercado imobiliário na China
Símbolo da ascensão chinesa, mercado imobiliário enfrenta calotes e obras atrasadas. Economistas não esperam, no entanto, uma crise global
atualizado
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Agosto tem sido um mês para esquecer nos mercados globais, e boa parte do motivo vem da China. Para além dos desafios cada vez maiores – do crescimento baixo ao desemprego juvenil –, a má notícia são os atrasos em pagamentos da construtora Country Garden, a maior incorporadora privada do país.
A Country Garden é outra grande empresa do setor em apuros. A primeira foi a Evergrande, que entrou em crise em 2021 e hoje respira por aparelhos.
As histórias vêm se acumulando, e o risco é de um efeito dominó que afete a já abalada confiança dos consumidores, as contas das províncias e o setor financeiro chinês. Nos últimos três anos, ao menos 50 incorporadoras chinesas deram calote ou atrasaram pagamentos, segundo a agência de risco Standard & Poor’s.
O caso da Country Garden derrubou as bolsas pelo risco ainda mais grave que ela representa: a incorporadora tem ao menos quatro vezes mais projetos do que tinha a Evergrande e uma dívida muito mais alta, constata Rodrigo Knudsen, gestor de fundos da Empiricus Investimentos.
“Nesse novo capítulo, temos agora a preocupação com o setor financeiro da China, que é quem está dando crédito para as construtoras”, diz Knudsen.
Como a construção civil responde por mais de um quarto do PIB chinês, cada movimento importa. No auge, o setor foi uma das estrelas da ascensão chinesa, e as incorporadoras locais figuram até hoje entre as maiores do mundo.
Esse crescimento alcançou o Brasil, no fim dos anos 2000 e início dos anos 2010, com a alta na cotação de commodities, como o minério de ferro.
“A expansão frenética da construção de residências é um dos símbolos da transformação que levou a China ao posto de segunda maior economia do mundo”, diz Danilo Igliori, economista-chefe da Nomad.
“Durante algum tempo, o desenvolvimento urbano acelerado foi considerado como um marco da mudança de patamar de vida de grandes contingentes da população chinesa. No entanto, está cada vez mais claro que houve exageros e existem dificuldades crescentes de absorção na produção imobiliária, o que vem pressionando os balanços de empresas no setor”, diz Igliori.
Os novos (e velhos) problemas
Mesmo antes do caso da Evergrande, o mercado imobiliário já levantava dúvidas fora da China, porque o governo Xi Jinping vinha fazendo um cerco ao setor nos últimos anos, na tentativa de conter a escalada dos preços nas grandes cidades.
Além disso, as próprias dinâmicas da economia indicavam que o auge do setor havia chegado ao fim. Após os picos dos anos 2010, estima-se que os preços dos imóveis caíram mais de 20% e as construtoras, altamente alavancadas nos anos de bonança, passaram a ter dificuldade em honrar seus compromissos e entregar as obras.
No limite, parte dos consumidores, sem ver as casas entregues, ameaçou parar de pagar seus financiamentos. Fundos e bancos nacionais e internacionais também fecharam as torneiras para muitas empresas desde então.
“O que estava relativamente restrito aos segmentos da construção civil passou a impactar outros ramos de atividade. O governo central vem tentando algumas medidas para estimular a demanda, mas até o momento não parecem ser suficientes”, diz Igliori.
A leitura é que a situação deve desacelerar ainda mais a economia chinesa. As principais casas do mercado, como UBS, J.P. Morgan e Morgan Stanley, revisaram as projeções de crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) para 4,7% ou 4,8%. Ou seja, abaixo da meta do governo chinês para o ano, que é de 5%.
“A atividade imobiliária mais fraca deve suprimir a demanda por bens industriais e, portanto, o investimento industrial, além de restringir os gastos do governo local e o investimento em infraestrutura. A atividade econômica enfraquecida resultante disso deve enfraquecer a recuperação do mercado de trabalho e da renda familiar”, escreveram em relatório os analistas do banco suíço UBS.
Economia da China pisa no freio
Quando divulgada, a meta de crescer 5% estabelecida pelo governo chinês foi até mesmo vista como modesta. Havia alta expectativa para a reabertura da economia do país após anos de restrições da chamada política de “covid zero”.
No entanto, a demanda dos consumidores não cresceu como o esperado, e a China registrou sua primeira deflação em dois anos. As más notícias internas se somaram a uma demanda mais fraca no exterior, reduzindo as exportações chinesas.
Para o resto do mundo, uma atividade mais fraca na China é sempre relevante, afirmam os economistas, embora não seja possível cravar ainda o tamanho desses efeitos.
“As dificuldades no setor imobiliário não podem ser negligenciadas, e tudo indica que uma redução relevante de velocidade no crescimento chinês está contratada. Países exportadores de commodities, como o Brasil, devem ser afetados”, afirma Igliori, da Nomad.
“Mas em que medida teremos algo mais sério ainda é muito cedo para afirmar. Não temos informações suficientes e não podemos subestimar o poder do governo chinês em interferir no processo, caso a situação comece a sair do controle”, diz o economista.
Knudsen, da Empiricus, afirma também que o cenário não chega perto de riscos como a bolha imobiliária nos EUA – que levou o mundo a uma recessão em 2008.
“Não vejo uma crise mundial, porque muito disso já era esperado e estava precificado. Há um contágio em países como o Brasil, mas também é pontual, não é algo estrutural”, diz Knudsen.
“A China é forte o suficiente para diminuir o PIB mundial, e todos os países podem crescer menos. Mas não é forte o suficiente para gerar uma crise financeira global. Para isso, ainda é preciso que impacte o setor financeiro dos EUA, e não parece que isso vá acontecer por ora.”