Vaticano confirma diretrizes secretas para padres que têm filhos
Entidade revelou a existência de documentos sobre o que fazer quando clérigos quebram votos de celibato
atualizado
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O psicoterapeuta Vincent Doyle, da Irlanda, tinha 28 anos quando a mãe lhe contou que o padre católico que ele sempre considerara seu padrinho era na verdade seu pai biológico. A descoberta o levou a criar um grupo de apoio global para ajudar os filhos de outros padres, como ele, que sofrem com a vergonha internalizada decorrente de terem nascido de tamanho escândalo na igreja.
Quando ele pressionou os bispos a assumirem esses filhos, alguns líderes da igreja lhe disseram que ele era o produto de uma raríssima transgressão. Mas um arcebispo lhe mostrou o que estava procurando: um documento com diretrizes do Vaticano para lidar com padres que têm filhos, provando que ele não estava nem um pouco sozinho.
Ele pediu para fazer uma cópia, mas o arcebispo negou o pedido dele – o material era secreto. Agora, o Vaticano confirmou (aparentemente pela primeira vez) que seu departamento encarregado de supervisionar os padres tem diretrizes gerais para o que fazer quando os padres rompem os votos de celibato e têm filhos.
Está se tornando cada vez mais difícil ignorar o problema. “É o próximo grande escândalo”, disse Doyle. “Há crianças assim por toda parte”. Os filhos às vezes são resultado de casos envolvendo padres e mulheres leigas ou freiras – outros nasceram de episódios de abuso ou estupro. Não há estimativa para o número de crianças nessa situação.
Mas Doyle disse que o site do seu grupo de apoio, Coping International, tem 50 mil usuários em 175 países. “Eles realmente nos chamam de ‘rebentos dos ordenados’”, disse Doyle lembrando do bispo que lhe mostrou as diretrizes. “Fiquei chocado ao saber que eles têm um termo para nós.”
O porta-voz do Vaticano, Alessandro Gisotti, disse que o documento interno sintetizava uma década de procedimentos. Ele disse que as diretrizes “requerem” que o pai deixe a batina para “assumir as responsabilidades da paternidade, dedicando-se exclusivamente à criança”.
Mas outro funcionário do Vaticano disse que o “requerimento” não passa de formalidade. O monsenhor Andrea Ripa, subsecretário da Congregação do Clero, que supervisiona mais de 400 mil padres, disse que “é impossível impor” o afastamento do padre, que pode “apenas ser solicitado” para o padre. Ele acrescentou que, se o padre não pedir para ser afastado de suas obrigações do sacerdócio, a igreja é obrigada a agir: “Os que não pedem o afastamento acabam afastados também”.
Advogados canônicos dizem que não há nada na lei da igreja que obrigue os padres a abandonar o sacerdócio quando têm filhos. “Não há absolutamente nada abordando esses casos, nada”, disse Laura Sgro, advogada canônica em Roma. “Como não se trata de crime pelo direito canônico, não há motivo para o afastamento compulsório.”
Alguns filhos estão recorrendo a testes de DNA para provar que seus pais pertencem ao clero. O reverendo Pietro Tosi tinha 54 anos quando estuprou a mãe de Erik Zattoni, que na época tinha 14 anos, disse Zattoni. A família dela tentou obrigar o padre a assumir o filho, mas ele se recusou. Em 2010, Zattoni processou o padre Tosi num tribunal italiano, exigindo o reconhecimento do pai. Um teste de DNA requisitado pelo tribunal demonstrou que ele era de fato filho do padre.
O Vaticano acabou instruindo o bispo do padre Tosi a repreendê-lo, mas não exigiu seu afastamento do sacerdócio. O padre Tosi morreu em 2014, ainda ordenado. “A única justiça feita no meu caso”, disse Zattoni, “foi uma sentença de tribunal baseada em testes de DNA”.