Síria: terremoto acentua tragédia humanitária após décadas em guerra
Após terremoto, especialistas avaliam diferença no tratamento ocidental entre Turquia e Síria e como a guerra impacta o socorro humanitário
atualizado
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No início deste mês de fevereiro, terremotos devastadores tremeram o chão do território entre a Turquia e a Síria, local que já sofre com outros tipos de instabilidades, em razão de mais de uma década de conflito. Nos dois países, mais de 50 mil morreram, além de 1 milhão de pessoas que ficaram desabrigadas. Escolas, estradas e hospitais foram destruídos em um cenário de aprofundamento da crise humanitária na região.
A reação ocidental ao conflito, no entanto, foi diferente para os dois lados da fronteira. As sanções ao regime do presidente Bashar Al-Assad e a guerra civil dificultaram o acesso de ajuda humanitária à população síria, que encontrava dificuldades em sobreviver antes mesmo de ver o chão tremer sobre os próprios pés.
Especialistas consultados pelo Metrópoles avaliam que entraves como sanções norte-americanas ao regime Bashar Al-Assad, e a dificuldade de atravessar zonas de conflito armado dificultam o envio de ajuda humanitária aos sobreviventes sírios.
Por outro lado, a tragédia também pode abrir caminhos para restabelecer vínculos com outros países do Oriente Médio, tensionados por divergências com o atual regime sírio que lida, internamente, com forças rebeldes e extremistas.
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Abalos estruturais
O primeiro terremoto, em 6/2, teve 7,8 graus de magnitude na escala Richter e foi considerado o pior abalo sísmico na região em quase 50 anos. Ele foi seguido por uma série de tremores secundários, obrigando as pessoas a saírem das próprias casas com medo da instabilidade no solo. No último domingo (20/2), um novo terremoto de 6,3 graus atingiu o mesmo local, em meio aos resgates de vítimas sobre os escombros.
Além da possibilidade de novos tremores, equipes – reduzidas – de ajuda humanitária trabalham em meio a incertezas, devido ao conflito que se arrasta por mais de uma década na Síria. Os locais mais atingidos no país foram Harim, Salqin e Ma’arrat Misrin, regiões localizadas a noroeste do território e cercadas por grupos armados, dissidentes do regime de Bashar Al-Assad.
Na terça-feira (21/2), a Organização Mundial da Saúde (OMS) visitou a região, e o que especialistas encontraram foi um sistema de saúde em “frangalhos”, devastado pela guerra civil. Segundo a organização, apenas metade de todas as instalações de saúde estavam operacionais antes do terremoto.
Diante do cenário, o secretário-geral das Nações Unidas (OMS), António Guterres, pediu à comunidade internacional US$ 397 milhões (cerca de R$ 1,7 bilhão) para ajuda humanitária aos 5 milhões de sobreviventes. A OMS estima que, somente para a ajuda médica ,serão necessários US$ 43 milhões (R$ 223 milhões).
Além da mobilização financeira, é necessário fazer com que insumos médicos e outros suprimentos cheguem até os atingidos. De acordo com o professor Alberto do Amaral Júnior, especialista em direito internacional da Universidade de São Paulo (USP), o desafio é abrir caminhos para a chegada da ajuda humanitária. Outro ponto é fazer a comunidade internacional voltar o olhar para a Síria com interesse.
“A questão aqui é garantir que os afetados pelo terremoto é que eles recebam ajuda. Abrir corredores humanitários, com áreas de exclusão de qualquer hostilidade armada”, frisou.
Ao longo da semana, o regime Assad acolheu o pedido da ONU e abriu dois novos pontos de passagem da Turquia, por um período inicial de três meses. Antes, a organização estava autorizada a adentrar o território e fornecer ajuda humanitária à área noroeste de Idlib por uma única travessia em Bab Al-Hawa, e ainda assim, após insistência da Rússia, aliada da Síria.
O professor também explicou que há uma diferença no tratamento dado para a Síria e para a Turquia no socorro às vítimas devido às alianças dos respectivos governos. “A Síria é uma aliada da Rússia e a Turquia é da Otan. Isso não significa que os ocidentais não queiram ajudar os sírios. Mas, há um prejuízo de interlocução com o governo Assad devido à aliança com Vladimir Putin”, explicou.
Vale lembrar também que a Turquia é um país bastante alinhado ao ocidente, membro da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) e importante para o comércio internacional devido à posição geográfica estratégica. “A Turquia ganha mais atenção da comunidade internacional, por conta do peso estratégico nas relações internacionais”, afirmou Alberto Júnior.
Em fevereiro de 2022, a Rússia invadiu a Ucrânia após uma intensa escalada de tensão entre esses países. Entre as motivações de Moscou, está a tentativa de Kiev de entrar na Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) — grupo do qual a Turquia faz parte. O conflito se arrasta por mais de um ano, sem perspectivas de paz.
“Mais uma crise” na Síria
O prolongamento da guerra civil, a complexidade do conflito e o enorme movimento de refugiados, em especial, para o continente europeu, contribuem para uma espécie de “falta de sensibilidade” à guerra na Síria, conforme avaliam especialistas. Para muitos no ocidente, a crise humanitária ocasionada pelo terremoto é apenas mais uma sob uma série de outras tragédias vistas no Oriente Médio.
“Há total diferença de tratamento [entre a Turquia e a Síria], isso é muito claro”, explica o professor Salem Nasser, especialista em direito internacional da Fundação Getúlio Vargas (FGV). “Não tenho a menor dúvida que chegou muito menos ajuda para a Síria, pelo menos por parte do Ocidente”.
Na visão do especialista, a comunidade internacional demorou a reagir, perdendo “um tempo precioso para a vida das pessoas”. Nasser acredita que essa demora é consequência de uma espécie de ‘bloqueio midiático’, que vem sendo posto em torno da Síria, em termos de informação.
“A intenção americana e ocidental até agora é sufocar o governo Assad na Síria, eles não vão decidir deixar de sufocar porque teve um terremoto. Existe uma grande limitação sobre o que interessa informar sobre países do Oriente Médio, e o que não interessa dizer”, avalia Nasser.
Brasil
O governo brasileiro, por exemplo, anunciou envio de equipamentos para abastecimento de água e energia para a Síria na última quarta-feira (22/2), quase 20 dias após o terremoto. Por outro lado, equipes de resgate chegaram a Ancara, na Turquia, ainda em 8/2, onde permaneceram até sexta-feira (24/2).
As sanções impostas pelo governo dos Estados Unidos também contribuíram para dificultar a mobilização de outros países, de acordo com o professor da FGV.
Em 2020, o governo dos Estados Unidos anunciou uma campanha de pressão econômica e política contra o governo da Síria, com sanções para 39 indivíduos e entidades oficiais, incluindo o presidente Bashar al-Assad e a esposa. Em comunicado, Washington afirmou que: “Qualquer um que fizer negócios com o regime Assad, em qualquer parte do mundo, está exposto a restrições de viagens e sanções financeiras”.
Em contrapartida, o terremoto aparece como uma luz no fim do túnel para o presidente sírio, que está determinado a sair do isolamento regional. Em busca de legitimidade e de uma reconciliação com o mundo árabe, Assad visitou Omã esta semana, país conhecido pelo papel mediador na região.
O terremoto na região tem potencial para resultar em uma espécie de “diplomacia pós-tragédia”, permitindo que países do Oriente Médio, liderados pelos Emirados Árabes Unidos voltarem a estender a mão para o líder sírio, após mais de 12 anos de combates.
Tragédia humanitária
Após décadas de conflito armado com os separatistas curdos, a guerra na Síria contra o regime do presidente Bashar Al-Assad começou em 2011, e teve como estopim a insatisfação da população contra o autoritarismo do governante.
Na esteira da Primavera Árabe, as manifestações contra o regime foram violentamente reprimidas, o que abriu caminhos para o surgimento de áreas sob o controle de grupos armados.
Mesmo sob escombros após terremoto, Turquia e Síria seguem em conflito. Poucas horas após os primeiros terremotos atingirem a Turquia e Síria, bombas e mísseis entre rebeldes curdos e forças militares turcas voltaram explodir.
O professor Salem Nasser explica que após mais de uma década de conflito, a questão principal entre o governo Assad e os rebeldes foi fixada.
“Na época da primavera árabe, havia uma campanha muito forte para tentar derrubar o regime, tentar ‘mudar a cara do Oriente Médio’. E isso está estabelecido, não vai acontecer”, explica Nasser. “O que resta resolver é o que fazer dos grupos armados contra o governo”.
As organizações armadas, consideradas derrotadas no território, ainda controlam pequenas partes do país. Os grupos são compostos pela Frente Al-Nusra (hoje conhecida como Jabhat Fatah al-Sham) e o Estado Islâmico (também conhecido como Daesh), além de outros que lutam pela autonomia de parte do território, como os curdos.
Os grupos rebeldes tiveram algum sucesso no início do conflito armado. Em 2012, houve episódios violentos como a batalha e tomada de Aleppo e Idlip. Porém, a Rússia interveio em socorro à Síria e forneceu suporte militar ao governo Assad, estancando e contendo o avanços dos dissidentes.
Desde então, o conflito tem gerado um grande crise humanitária, com 6 milhões de sírios fugiram do país e mais de 6,7 milhões deslocados internamente. Agora, o terremoto aprofunda mais a crise humanitária, econômica e política no território.