Postura anti-Mercosul de Javier Milei pode travar acordo com a UE?
A UE sinalizou disposição para firmar acordo de livre comércio com o Mercosul até 7 de dezembro, dias antes de Milei assumir na Argentina
atualizado
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Prestes a ser o representante da Argentina no Mercosul, o presidente eleito Javier Milei é conhecido por tecer críticas ao bloco econômico sul-americano, que ele considera um “fracasso fenomenal”. Mas, após a União Europeia (UE) mostrar interesse em “assinar os papéis” do há décadas negociado acordo de livre comércio com o Mercosul até 7 de dezembro, o político argentino pode tentar travar a negociação?
Apesar do tom crítico de Milei, especialistas ouvidos pelo Metrópoles afirmam que embarreirar o acordo ou sair do Mercosul não deve estar nos planos do futuro presidente da Argentina. É consenso entre eles que o político ultraliberal não vai conseguir comprar muitas brigas, pois tem tímida bancada no Congresso argentino.
Uma declaração de integrantes do governo do chefe da Casa Rosada ao Itamaraty sustenta a análise dos especialistas. Na quinta-feira (23/11), a secretária de Europa e América Latina do Norte, Luisa Escorel, disse que a equipe de Milei sinalizou interesse em avançar nas negociações do acordo de livre comércio do Mercosul com a UE.
Nesse curto período pós-eleições, Javier Milei já voltou atrás em várias declarações polêmicas ditas durante a campanha eleitoral. Uma delas inclusive é o distanciamento de Brasil e China, países que ele considera “comunistas”.
Para João Ricardo Costa Filho, pesquisador na Universidade Nova de Lisboa e professor do Ibmec São Paulo, essa agilização do acordo por parte da Comissão Europeia dá um recado do tipo: “Acabar com o Mercosul pode ser um pouco mais custoso”.
Em consonância com Costa Filho, o professor de relações internacionais na Universidade de São Paulo (USP) Pedro Feliu não acredita que Milei vá barrar o acordo, mesmo sendo capaz de tentar dificultar o processo.
No entanto, ele destaca que o resultado das eleições na Argentina foi responsável por impulsionar e motivar essa movimentação da UE, mas, ainda segundo Feliu, é um equívoco observar apenas esse aspecto. Isso porque o acordo passou por anos de desenvolvimento, deliberações e concessões até chegar a um texto “90% definido”.
“Aumenta muito a pressão. Com certeza é um movimento que pode ser crucial para o timing do jogo político argentino”, explica.
Por outro lado, o professor de história da Universidade de Brasília (UnB) Carlos Eduardo Vidigal acredita que a “pressa” da Comissão Europeia não tem relação com o resultado da eleição argentina.
Ele ressalta que “tratados internacionais são negociados com o maior cuidado possível, o que significa que o tempo despendido não é, normalmente, objeto de preocupação”.
Milei precisará escolher quais “brigas” entrar
Com minoria no Congresso e pautas de difícil aprovação, na perspectiva dos especialistas, Javier Milei precisará escolher quais promessas de campanha valem o esforço para “brigar”.
Costa filho afirma que, no momento, o foco deve ser reestruturar a economia, que está em “frangalhos”. “Quando se compra muitas brigas ao mesmo tempo, você não tem força e capital político para vencer todas elas”, analisa.
De acordo com os especialistas, Milei pode adotar a seguinte estratégia: não briga para sair do Mercosul, mas também não investe e continua desmobilizando o capital político e, consequentemente, enfraquece o bloco.
Já Feliu “chuta” que o político argentino vai abandonar pequenas batalhas e se agarrar às principais propostas, como acabar com o Banco Central, dolarizar a economia e reduzir o número de ministérios.
O comércio exterior
A busca por parcerias comerciais com outros países seria fundamental na missão de Milei em reerguer a economia argentina. Logo, cortar laços com Brasil e China, principais parceiros comerciais do país, é “impossível”, segundo Feliu.
“Ele não vai cumprir essa promessa. Tem uma interdependência enorme. Os países não vão parar de importar e exportar porque o presidente ficou ‘maluco’”, explica.
Anualmente, Argentina e Brasil movimentam em torno de US$ 30 bilhões (cerca de R$ 147 bilhões). Nosso país é o segundo maior parceiro dos hermanos, ficando atrás apenas dos chineses.
Vidigal reforça que, por Milei levantar a bandeira de um governo liberal, o país terá interesse em promover o comércio exterior, além de “buscar investimentos no Mercosul e junto a países europeus”. De acordo com o professor da UnB, isso pode gerar impactos “positivos”.
Ele reafirma que o país não deixará o bloco econômico sul-americano devido à “dependência” de empresários argentinos do mercado brasileiro. Para o professor, a Argentina não está em condições de dispensar qualquer mercado.
Acordo entre UE e Mercosul
A declaração desta segunda indica que pode chegar ao fim uma negociação que dura mais de duas décadas. Tal acordo de livre comércio entre Mercosul e União Europeia é uma das apostas do terceiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que chegou a pressionar o andamento das tratativas entre os blocos.
Durante um encontro de cúpula do G20, na Índia, o petista disse: “Nos próximos meses, a gente tem que chegar a um acordo: ou sim ou não. Ou parar de discutir o acordo, porque, depois de 22 anos, ninguém acredita mais”.
Em nome do bloco sul-americano, Lula cobrou dos europeus “uma postura mais clara em torno da real possibilidade de acordo”. O titular do Planalto também chegou a conversar pessoalmente com o presidente da França, Emmanuel Macron, sobre o tema.
As primeiras conversas sobre o acordo começaram em 2000, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), mas as bases do acordo de livre comércio entre o bloco e a UE só foram fechadas em 2019, no decorrer do governo de Jair Bolsonaro (PL). Porém, tudo ainda depende da assinatura de ambas as partes.
O texto final abrange a eliminação de tarifas de importação para quase todos os produtos, além de medidas sanitárias e regulatórias, propriedade intelectual e outras frentes.
“Salvar o Mercosul”
Após Javier Milei ser eleito presidente da Argentina, o assessor de assuntos internacionais da Presidência da República, Celso Amorim, afirmou ao jornal O Globo que uma das preocupações do governo brasileiro é “salvar o Mercosul”.
“Temos que respeitar o resultado da eleição, por um lado, manter as relações como dois Estados e, se possível, salvar o Mercosul. A relação entre Brasil e Argentina é a base do Mercosul e tem reflexo em toda a América do Sul”, declarou Amorim.