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Entenda por que desastres do Brasil são julgados no exterior

Tragédias de Mariana e Brumadinho e afundamento de bairros em Maceió motivaram ações abertas por brasileiros em tribunais internacionais

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Gustavo Basso/NurPhoto via Getty Images
Helicóptero sobrevoa a lama após o desastre ambiental causado pela Sanmarco em Mariana
1 de 1 Helicóptero sobrevoa a lama após o desastre ambiental causado pela Sanmarco em Mariana - Foto: Gustavo Basso/NurPhoto via Getty Images

Na última década, o Brasil sofreu vários desastres ambientais de repercussão internacional, entre eles o rompimento das barragens de Mariana e Brumadinho, em Minas Gerais, e o afundamento de bairros inteiros em Maceió, Alagoas. Além de deixarem um rastro de destruição na natureza e nas comunidades locais, essas tragédias têm outro ponto em comum: se transformaram em ações judiciais no exterior.

O Caso Mariana está em julgamento até março do próximo ano no Reino Unido e também motivou uma ação aberta na Holanda. Nos tribunais holandeses, também tramita o caso do afundamento do solo em Maceió.

As ações relativas aos desastres brasileiros apresentadas no exterior são propostas por indivíduos, empresas, organizações religiosas e prefeituras que, de alguma forma, se consideram vítimas de danos causados pela atividade de multinacionais estrangeiras no Brasil. No caso de Mariana, centenas de milhares de pessoas e entidades recorreram à Justiça fora do país.

Esses casos impulsionam o debate sobre a soberania nacional para julgar e responsabilizar grandes corporações que atuam no território brasileiro e são reflexo de um movimento cada vez mais comum em todo o mundo: a judicialização de ações ambientais ou climáticas contra empresas e governos.

Litígios ambientais em ascensão no mundo

Vítimas de desastres ambientais e comunidades impactadas pelas mudanças climáticas têm recorrido com cada vez mais frequência à Justiça internacional em busca de ações de reparação e mitigação aos danos provocados por empresas privadas e governos. As pessoas e entidades atingidas argumentam que acordos estabelecidos localmente não são justos ou não promovem as intervenções necessárias para prevenir ou reparar um dano.

Casos do tipo são chamados de litígios ambientais e/ou climáticos. Um relatório do Programa da ONU para o Meio Ambiente (Pnuma) e do Centro Sabin para Leis de Mudanças Climáticas da Universidade de Columbia, nos EUA, mostrou que o número de processos judiciais no mundo relativos a mudanças climáticas mais do que dobrou desde 2017, passando de 884 naquele ano para 2.180 em 2022. Atualmente, há mais de 2,8 mil em tramitação, a maioria nos Estados Unidos.

De acordo com o relatório Tendências Globais em Litígio Climático 2024, divulgado no fim de junho pelo Instituto Grantham de Pesquisa em Mudanças Climáticas e Meio Ambiente, da London School of Economics and Political Science (LSE), somente no ano passado foram abertos 230 novos processos de litígio climático no mundo.

Segundo o professor de Direito Ambiental do MBA de ESG (governança ambiental, social e corporativa, na sigla em inglês) da Fundação Getulio Vargas (FGV) Bruno Teixeira Peixoto, há um fenômeno de ascensão de grandes litígios complexos e estruturais contra governos, atores públicos e empresas nos últimos cinco anos. Tribunais nacionais e internacionais passaram a aceitar com mais frequência ações e pedidos envolvendo o cumprimento de deveres ambientais, climáticos e de direitos humanos.

Peixoto credita isso a uma evolução nas discussões sobre a governança e gestão dos impactos ambientais de grandes multinacionais, sobretudo as que trabalham com mineração, óleo e gás, assim como ao destaque dado à chamada agenda ESG de responsabilidade empresarial e à pressão social.

“As ações judiciais movidas em tribunais internacionais têm se confirmado como um mecanismo estratégico por meio do qual vítimas ou grupos sociais afetados por grandes danos ou desastres buscam não só reparações financeiras ou materiais, como também maior cumprimento de leis, metas, acordos e deveres”, diz Peixoto.

Decisão sobre Mariana em Londres pode estabelecer precedente

No Brasil, os casos de litígio climático são contabilizados numa base de dados do Grupo de Pesquisa Direito, Ambiente e Justiça no Antropoceno (Juma) da PUC-Rio. Até março, havia 80 ações tramitando, tornando o Brasil a jurisdição do Sul Global com mais casos reportados e a quarta do mundo (atrás dos Estados Unidos, Austrália e Reino Unido).

Embora o julgamento do Caso Mariana em Londres não se enquadre como um litígio climático, já que não tem como objetivo combater diretamente ações que contribuem para a mudança climática, o relatório da LSE afirma que o resultado dele pode influenciar o futuro dos processos ambientais e climáticos.

De acordo com documento, o julgamento poderá redefinir o cenário da reparação de danos ambientais e incentivar mais litígios em grupo contra empresas multinacionais. “A decisão, tão aguardada, pode ir além dos autores do desastre [da barragem] de Fundão e estabelecer um precedente mais amplo para futuros litígios climáticos e de ESG, especialmente contra grandes emissores”, diz o relatório.

Em busca de repercussão mundial

As ações como as que brasileiros estão abrindo envolvem demandar as empresas em seus países-sede e gerenciar equipes de defesa no país onde ocorreu o fato. São, na maioria das vezes, processos estratégicos, que visam influenciar a sociedade civil, outros tribunais, a esfera regulatória e o mercado, gerando mudanças nas corporações e em políticas públicas.

As ações envolvem o deslocamento constante de vítimas para os países onde ocorrem as audiências. Nesta semana, por exemplo, representantes de comunidades indígenas e quilombolas e moradores do distrito de Bento Rodrigues atingidos pelo desastre de Mariana foram a Londres para protestar diante do tribunal que julga a ação e da sede da mineradora BHP.

O líder indígena Marcelo Krenak já foi ao Reino Unido pelo menos seis vezes desde 2022 no âmbito do processo em curso. “Nossa pressa é para que [um desastre do tipo] não aconteça com outras pessoas e que esse caso, ao final, possa ter uma repercussão mundial, de forma que as empresas possam ter consciência de que a vida vale mais do que qualquer riqueza”, afirma.

Indenizações bilionárias

As ações no exterior chamam a atenção pelas indenizações bilionárias requisitadas e são reflexo de uma estratégia em crescimento, o uso do financiamento de litígios por terceiros (em inglês, Third-Party Litigation Funding). É quando investidores ou fundos de investimento alocam grandes quantias financeiras na promoção ou processamento dessas ações e litígios complexos.

“Esses litígios são financiados, via de regra, por fundos e entidades que adiantam dinheiro a demandantes ou escritórios de advocacia para ajuizar litígios ou suportar os custos de recursos, produção de provas, entre outras medidas processuais, que na maioria destas ações envolve altos valores”, detalha Peixoto.

O julgamento do Caso Mariana é um exemplo desse modelo, no qual o escritório de advocacia que defende as vítimas, o Pogust Goodhead, vendeu para uma gestora de fundos os honorários que eventualmente receberá em caso de sucesso na ação. O escritório afirma que as vítimas não têm nenhum compromisso direto com os fundos, e que essa é uma forma de garantir acesso à justiça independentemente da condição financeira das pessoas.

Enquanto isso, os processos envolvendo os desastres ambientais brasileiros e principalmente a compensação financeira envolvida neles têm alimentado uma discussão no Brasil sobre a violação ou não à soberania nacional. Tramita no Supremo Tribunal Federal (STF) uma ação que discute se os municípios teriam legitimidade para promover os litígios judiciais no exterior.

Para Ana Carolina Salomão, sócia e chief investment officer do Pogust Goodhead, as ações no exterior não estão em concorrência com o sistema judicial brasileiro ou com a soberania nacional. “Fazem parte de um esforço global para garantir que os culpados pelo rompimento da barragem do Fundão sejam responsabilizados e as vítimas recebam uma indenização compatível com os danos sofridos”, diz.

Segundo ela, por exemplo, toda a base legal ambiental usada na ação é a brasileira, classificada por ela como uma das mais rigorosas do mundo. “Ao se utilizar dela na Inglaterra, o Brasil reafirma sua posição como um dos polos mais importantes, ou mesmo o mais importante, na vanguarda do direito ambiental global”, acrescentou.

Casos brasileiros em tramitação no exterior

O escritório de advocacia que defende os brasileiros no Caso Mariana representa vítimas em um total de oito processos no exterior que envolvem desastres ambientais ocorridos no Brasil. Ao todo, são cerca de 652 mil brasileiros por trás das ações, sendo 95% deles, ou seja, 620 mil, afetados pelo rompimento da barragem de Fundão.

O processo relativo à Mariana que tramita em Londres chegou à Justiça inglesa em 2018 envolve uma indenização que pode variar entre R$ 230 e R$ 260 bilhões. Também no âmbito da tragédia, a ação aberta na Holanda contra a Vale SA e a Samarco Iron Ore Europe BV inclui sete municípios brasileiros e uma fundação que representa mil empresas e 77 mil pessoas.

O Pogust também atua no caso do colapso da barragem Mina Córrego do Feijão, ocorrido em 25 de janeiro de 2019 em Brumadinho. Há uma ação judicial em andamento no Tribunal Regional de Munique, contra a empresa alemã TÜV SÜD AG, desde outubro de 2019, pois a filial brasileira da empresa foi contratada pela Vale para avaliar a segurança da barragem. A ação envolve 1,4 mil pessoas e prefeituras de dois municípios. O julgamento é esperado para o ano que vem. Entre danos materiais e morais, o valor reivindicado é de 600 milhões de euros (cerca de R$ 3,7 bilhões).

Outro caso defendido pelo escritório é o do afundamento de bairros em Maceió. Nove vítimas entraram com uma ação no Tribunal Distrital de Roterdã em 2022. Em julho deste ano, a Braskem S.A foi responsabilizada, e o caso foi para a segunda instância.

Também está nas mãos do Pogust a ação judicial aberta em dezembro de 2020 na Inglaterra contra a Salic (UK) Limited (a atual empresa controladora da Minerva S.A.), em nome de 18 mil pessoas que buscam indenizações pelas contaminações causadas pelo naufrágio do navio Haidar. A embarcação afundou em outubro de 2015, em Barcarena, no Pará, causando o afogamento de bovinos vivos e o derramamento de 730 mil litros de óleo diesel marítimo. A empresa contestou a jurisdição nos tribunais ingleses, e o caso está suspenso até 2025 para tentativa de acordo entre as partes.

Barcarena também é o território de outro caso que tramita no exterior e é defendido pelo Pogust, no qual se alega poluição da água, do solo e do ar na região durante a produção de alumínio pelo grupo Norsk Hydro. Uma ação contra o grupo Norsk Hydro movida por 11 mil pessoas tramita desde fevereiro de 2021 no Tribunal Distrital de Roterdã.

Empresas questionam ações no exterior

As empresas demandadas judicialmente no exterior questionam a necessidade de abrir ações em outros países e argumentam que já realizam intervenções no Brasil para lidar com a reparação.

Para a BHP, a ação legal relativa à Mariana que tramita no Reino Unido “duplica e prejudica os esforços já em andamento no Brasil”. Atualmente, a Vale, a BHP e a Samarco negociam com o governo brasileiro um acordo de R$ 170 bilhões para ações de reparação integral dos danos causados pelo rompimento da barragem de Fundão.

A Vale disse que “entende que as ações judiciais movidas na Holanda e no Reino Unido tratam com questões já abarcadas nas ações em trâmite no Brasil, seja por processos judiciais, seja pelo trabalho de reparação realizado pela Fundação Renova”. A empresa afirma que a Fundação Renova, criada para coordenar as ações de reparação, já indenizou aproximadamente 430 mil pessoas e usou mais de R$ 38 bilhões entre indenizações, ações de compensação, reparação do meio ambiente e infraestruturas impactadas.

Em resposta à DW, a Minerva S.A., por sua vez, afirmou que “não é parte em nenhuma ação em trâmite no exterior”. De acordo com o escritório Pogust Goodhead, a ação relativa ao navio Haidar aberta na Inglaterra tem como alvo a Salic UK, a empresa controladora da Minerva S.A.

A TÜV SÜD expressou solidariedade às vítimas do desastre em Brumadinho, mas reiterou que está convencida de que a empresa “não tem nenhuma responsabilidade legal pelo rompimento da barragem” e que “as declarações de estabilidade [da estrutura] foram emitidas legalmente”.

A Norsk Hydro, acusada de poluição ambiental no Pará, afirmou que “alegações apresentadas ao tribunal holandês se sobrepõem às alegações já apresentadas aos tribunais brasileiros, onde algumas delas já foram julgadas improcedentes”. A empresa negou as acusações e disse que, por meio da Alunorte (da qual a Norsk Hydro é a maior acionista), assinou voluntariamente um Termo de Conduta Ajustada (TAC) com o Ministério Público e outras autoridades em setembro de 2018, “a fim de realizar investigações abrangentes por especialistas especializados”.

Em nota, a Braskem respondeu que a decisão da Justiça holandesa concluiu pela inexistência de conexão entre as subsidiárias da companhia e o evento de subsidência em Maceió e que seis autores da ação [que tinha 15 indivíduos como autores iniciais] desistiram porque celebraram acordo no Brasil. A Braskem reforçou que 99,9% das propostas de indenização previstas no seu programa de compensação foram apresentadas e 97,8% já foram pagas, totalizando um valor superior a R$ 4,1 bilhões. “Os [outros] nove autores da ação já receberam proposta de compensação financeira no âmbito do programa”, disse, em nota.

Confira mais informações no DW Brasil, parceiro do Metrópoles.

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