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Um morador de Cité Soleil, uma das zonas mais precárias do Haiti viu de perto a ação das gangues que dominam essa região do país. Ele conta que o chefe de um dos grupos organizou julgamentos em praça pública e assassinou diante de todos aqueles que considerava “malfeitores”.
Mais de 180 foram mortos no fim de semana na periferia da capital Porto Príncipe. O envolvimento das vítimas com atividades vodu foi um dos argumentos avançados pelos autores dos disparos, que visavam idosos.
“Tudo aconteceu a alguns metros de casa, em Wharf Jeremie”, conta o morador dessa zona de Cité Soleil, favela na periferia de Porto Príncipe. “Na sexta-feira (6/12), por volta das 16h, capturaram uns colegas de trabalho. Eu fui procurar alguém do bairro para entender o que havia acontecido e, após perguntar para várias pessoas, cheguei em um local onde tinha uma multidão, com cerca de 200, 300 pessoas reunidas”, relata em entrevista exclusiva à RFI.
Temendo represálias, o morador prefere não ter sua identidade revelada, mas conta em detalhes o que viu ao chegar ao local, não muito longe do mar. “Eles levavam as pessoas capturadas até esse chefe da gangue, Micanor Altès [também conhecido como Monel Felix], dizendo que eram malfeitores. Diziam apenas que essas pessoas faziam o mal. Que faziam magia”, relembra.
Em seguida, o próprio líder do grupo realizou julgamentos sumários, diante de todos. “Se ele julgasse que a pessoa não tinha nenhum envolvimento [com o vodu ou atividades que considerava ilícitas], mandava ir embora. Mas se julgasse que a pessoa tinha algum envolvimento, a colocava em outro espaço, perto do mar, com as mãos amarradas nas costas. Nesse primeiro dia 76 foram colocadas de lado, com as mãos amarradas, a 10 metros do mar. Ele foi fazendo esse julgamento até por volta das 20h30”, detalha.
“Eu só fui lá por conta desses colegas que foram capturados, mas logo me disseram para ir embora senão sobraria para mim”, explica. “Depois, por volta das 21h, eu comecei a ouvir disparos e uma pessoa que estava próxima do lugar disse que esse chefe da gangue atirou nas pessoas [que havia julgado].
Ele matou nesta noite 76. Depois eles continuaram no bairro, pegando mais pessoas, e mataram mais 14. Então, na primeira noite foram 90 mortos”. A operação continuou no dia seguinte quando, segundo testemunhos ouvidos pelo morador, pelo menos outras 50 pessoas foram mortas.
Idosos não eram os únicos alvos
Ao contrário do que vinha sendo informado até então, os idosos não eram o único alvo. Segundo esse morador, Micanor Altès matou pessoas mais velhas pois “geralmente os sacerdotes [do vodu] não são jovens. Mas as pessoas que trabalhavam comigo tinham 50 e 45 anos. Teve ainda uma jovem de 30 anos. Então não foram só idosos que eles mataram”, conta.
Vários rumores sobre as motivações do massacre circulam pela cidade e se intensificam desde que o caso ganhou a mídia. O principal deles é que Monel Felix não teria se conformado com a doença de um de seus filhos e teria acusado os idosos de Cité Soleil de terem realizado um trabalho vodu contra o menino. “Tudo isso foi uma desculpa para tentar explicar o que ele fez”, aponta esse morador, afirmando tratar-se de uma estratégia criada pelo rebelde para tentar justificar o massacre.
“No início estava em vigor uma lei do silêncio. Ninguém podia falar o que aconteceu. Mas no domingo (8) as pessoas começaram a procurar rádios e redes sociais para relatar o ocorrido. Sabendo disso, uma pessoa do grupo dele foi incumbida de propagar na mídia [essa versão do ataque aos idosos praticantes de vodu] para justificar o que ele tinha feito”.
Clima de tensão e nenhum policiamento
Desde o início da semana, Cité Soleil vive uma aparente calmaria. “Hoje o bairro está silencioso. Mas as pessoas estão com medo”, conta o morador, que vê alguns poucos vizinhos passando pela rua e crianças que começam a retornar às escolas. No entanto, ele ressalta que não há nenhuma intervenção das forças de ordem na região, tomada pelas gangues. “Há pelo menos três ou quatro anos a polícia não entra aqui em Wharf Jeremie”, desabafa.
Durante décadas, o Haiti sofreu com a instabilidade política crônica e uma crise de segurança ligada à presença de gangues armadas acusadas de assassinatos, sequestros e violência sexual generalizados. Mas a violência das gangues, já endêmica nesse país caribenho, piorou desde fevereiro, quando grupos armados lançaram ataques coordenados em Porto Príncipe para derrubar o então primeiro-ministro, Ariel Henry.
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