EUA: crise sobre aborto é reflexo da era Trump, analisam especialistas
Especialistas ouvidos pelo Metrópoles avaliam que possível revogação do aborto nos EUA pode impactar países da América Latina, como o Brasil
atualizado
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A possível revogação da lei que permite o aborto nos Estados Unidos é consequência da passagem de Donald Trump pela Presidência do país. É o que analisam especialistas ouvidos pelo Metrópoles, que, após a polêmica, vislumbram um impacto no debate sobre interrupção da gravidez no Brasil e em outros países da América Latina.
Na noite de segunda-feira (2/5), o site Politico publicou uma minuta que indica maioria na Suprema Corte americana para derrubar a lei conhecida como Roe versus Wade. O documento é assinado pelo ministro Samuel Alito.
A legislação sobre o aborto nos EUA foi sancionada em 1973. Na ocasião, o júri concluiu que o acesso ao aborto é um direito constitucional da mulher até a 28ª semana de gestação. Em 1992, a lei foi alterada para 24 semanas, no caso Planned Parenthood versus Casey.
Nesta terça-feira (3/5), o chefe da Corte norte-americana, John Roberts, confirmou a veracidade do documento. No entanto, disse que ele não reflete a “posição final” da Justiça.
Formada por 9 membros, a Suprema Corte dos EUA é majoritariamente ocupada por juízes conservadores. Do total, três foram nomeados na gestão de Donald Trump: Amy Coney Barrett, Neil Gorsuch e Brett Kavanaugh.
“Estamos vendo na Corte dos EUA o que significou a passagem de Trump pelo poder”, analisou a professora e antropóloga Débora Diniz, da Universidade de Brasília (UnB).
A especialista é vinculada ao Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero (Anis) e foi uma das principais articuladoras que pautaram o aborto na agenda do Supremo Tribunal Federal (STF) brasileiro.
A doutora ressalta que uma eventual decisão da Corte norte-americana afetaria principalmente as mulheres mais vulneráveis, e que os efeitos poderão ser sentidos em países da América Latina.
“Há um efeito para as mulheres dos EUA, especialmente para as mulheres mais vulneráveis, as mulheres negras, mulheres latinas. Mas também para as mulheres do que chamamos do sul global, particularmente América do Sul e Caribe, por causa de uma geopolítica regional. A Corte dos EUA tem uma força colonial sobre nós, de colonização das interpretações, colonização de dizer o que é justo ou não na interpretação de direitos fundamentais — que uma corte como a da Colômbia, como a do México [que aprovaram o aborto recentemente], não têm igualmente.”, explica.
A especialista pontua que a Corte brasileira dialoga com decisões dos Estados Unidos, especialmente quando as pautas são ligadas a direitos fundamentais.
“No Brasil, em particular, a Corte brasileira conversa com as decisões da corte dos EUA. Isso foi [semelhante] na questão de cotas, especialmente em questões relacionadas aos direitos fundamentais. Questões de cotas, questões raciais e na questão do direito das mulheres”, analisa.
Débora também faz um paralelo ao conservadorismo do presidente Jair Bolsonaro (PL). “Assim como o trumpismo vai além de Trump, o bolsonarismo vai além de Bolsonaro. Se Bolsonaro é reeleito, ele faz maioria na Corte. E é uma matéria que não será resolvida”, afirma.
Aborto no Brasil
De acordo com a Pesquisa Nacional do Aborto, publicada em 2016, e uma em cada cinco mulheres até os 40 anos de idade já fez um aborto.
O estudo também mostra que aproximadamente 500 mil mulheres brasileiras interrompem a gravidez a cada ano. Do total, 88% tem religião e 67% tem outros filhos.
A legislação brasileira atual permite que a gravidez seja interrompida apenas em casos de estupro; quando a gestação oferece riscos à vida da mulher; e em caso de anencefalia do feto.
Questão de saúde pública
O médico ginecologista Cristião Rosas, coordenador da Rede Médica pelo Direito de Decidir no Brasil, explica que a descriminalização do aborto significa queda nas taxas de mortalidade materna.
“O aborto interrompido legalmente em clínicas seguras é o evento materno mais seguro que existe. É uma questão ética. Estamos falando de dar ou não acesso a uma mulher, que tem autonomia sobre o seu corpo, a um procedimento em que, se feito de forma segura, o risco de complicações e mortes é ínfimo, quase zero”, afirma.
Segundo o ginecologista, a criminalização do aborto leva milhares de mulheres a fazerem o procedimento de forma clandestina. “Muitas provocam o aborto com talo de bambu, inserem remédios na vagina, que causam queimaduras graves, tomam veneno de rato e morrem”, cita.
O médico pontua que o direito reprodutivo é fundamental, mas corre riscos em locais onde ideologias religiosas se sobressaem. “A gente corre esse risco. Aqui ou em qualquer outra nação onde presidentes nomeiem ministros vinculados à ideologias religiosas. Isso pode atrapalhar o desenvolvimento e as decisões judiciais. A influência religiosa nas decisões políticas públicas faz mal à saúde e coloca vidas em risco”, conclui.
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