E-mails contrapõem versão do Itamaraty sobre crianças presas em Gaza
Diplomata do Itamaraty reconheceu em e-mail o direito ao visto de reunião familiar para crianças presas em Gaza, mas caso segue sem solução
atualizado
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Documentos e e-mails aos quais o Metrópoles teve acesso contrapõem versão do Itamaraty sobre a situação de três crianças palestinas que estão presas na Faixa de Gaza e que já poderiam estar no Brasil, conforme regra da Lei de Migração. O órgão alegou, em primeiro momento, que não há mais pedidos de repatriação protocolados, mas famílias buscam ajuda da diplomacia brasileira desde março, pelo menos.
Khaled, Alaa e Ansharah, de 6, 7 e 8 anos de idade, são filhos do primeiro casamento de Ramadan Abdou, palestino de 30 anos repatriado pelo governo federal no primeiro voo que veio de Gaza, há um ano. Conforme análise feita, via e-mail, pelo próprio Itamaraty, elas se enquadram na regra da reunião familiar, que é uma das diretrizes da política migratória do Brasil, e poderiam estar vivendo ao lado do pai.
Ramadan chegou ao Brasil em 13 de novembro de 2023, junto da segunda esposa, que estava grávida, e de uma outra filha recém-nascida, ambas brasileiras. Na ocasião, eles foram recebidos na Base Aérea de Brasília pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e ouviram a promessa de que o governo faria de tudo para trazer o restante da família.
“Nós não vamos deixar nenhum brasileiro ficar lá, mesmo que seja nascido lá, palestino de origem, mas se os parentes estiverem aqui e pedirem, vamos tentar trazer”, declarou Lula.
Mãe das crianças morreu em dezembro
Até o momento, apesar do pedido feito por Ramadan e do enquadramento do caso na lei nacional, os filhos do palestino seguem sem perspectiva, presos em Gaza. Eles não puderam vir com o pai, inicialmente, e ele acreditou que logo estariam todos juntos. Um mês após a chegada de Ramadan ao Brasil, a mãe das crianças, ex-esposa dele, teve a casa bombardeada no norte de Gaza e morreu.
O Metrópoles mostrou o drama dos três irmãos neste domingo (10/11). Desde a morte da mãe e sem a presença do pai, eles vivem órfãos na zona de guerra, sob os cuidados de uma tia, irmã do palestino. Segundo Ramadan, os filhos estão em uma tenda improvisada em Deir al-Balah, região central de Gaza, submetidas à fome, sede, frio e sem acesso à escola. “Meu coração treme pelos meus filhos”, diz ele.
Em nota enviada à reportagem na sexta-feira (8/11), apesar da promessa de Lula há um ano e do pedido de ajuda feito pelo palestino repatriado, o Itamaraty informou o seguinte: “Os últimos quatro brasileiros em condições de deixar a Faixa de Gaza foram retirados daquele território em 8 de fevereiro. Não há previsão de realização de novos voos de repatriação, já que não há brasileiros a serem repatriados”.
Do “sinal positivo” à falta de ação
O caso dos irmãos, no entanto, chegou ao conhecimento do Ministério das Relações Exteriores (MRE) em 14 de março, quando representantes dos brasileiros e palestinos repatriados entregaram uma lista de 104 familiares que continuavam em Gaza e esperavam por uma resposta do governo sobre a concessão do direito de reunião familiar. Os nomes de Khaled, Alaa e Ansharah estavam entre os primeiros da lista.
A partir de então, a advogada do grupo passou a acompanhar, junto a servidores do Itamaraty, a análise de cada um dos casos, sempre atualizando a lista e buscando as documentações necessárias. Em 26 de março, conforme a troca de e-mails, o diretor do Departamento de Imigração e Cooperação Jurídica do MRE, André Veras Guimarães, disse que o órgão estava ciente “da necessidade de medidas urgentes”.
Em análise dos 104 nomes da lista, o departamento do próprio Itamaraty concluiu que cerca de 15 pessoas se enquadrariam nos critérios do visto de reunião familiar – entre elas, as três crianças de Ramadan. O diplomata responsável, no entanto, expôs que a parte burocrática seria fácil de resolver. Já o processo de repatriação e saída das pessoas de Gaza, que é a resposta mais aguardada, extrapolaria sua competência.
A Lei de Migração brasileira assegura ao migrante, em território nacional, o direito à reunião familiar com cônjuge ou companheiro, filhos, familiares e dependentes. No caso específico dos filhos de Ramadan, que são palestinos de origem, eles poderiam ser contemplados, ainda, por serem irmãos de brasileiros. O pai tem outros dois filhos pequenos com a atual esposa, ambos nascidos no Brasil.
“Preocupados com a falta de retorno”
Em abril deste ano, a advogada Maira Machado Frota Pinheiro voltou a cobrar uma posição do Itamaraty diante do caso. “Estamos muito preocupados com a falta de retorno”, escreveu ela via e-mail. “Enquanto isso, a cada dia que passa, nossos solicitantes seguem correndo risco de morrer, seja de fome, seja de doença, seja de bombardeios”, complementou.
Maira chegou a perguntar o que seria necessário para providenciar a vinda das pessoas restantes em Gaza, colocando-se à disposição para buscar uma ação interministerial, a edição de uma portaria específica ou a estruturação de um grupo de trabalho interdisciplinar, assim como ocorreu na Operação Voltando em Paz, que atuou na evacuação até fevereiro deste ano. O caso, no entanto, não evoluiu.
Conforme os documentos entregues pela advogada ao MRE, Ramadan Abdou solicitou ajuda do governo para garantir a vinda dos três filhos e de duas irmãs. A análise feita pelo Departamento de Imigração concluiu que as crianças se encaixam na regra da reunião familiar, enquanto as irmãs dele, maiores de 24 anos, precisariam comprovar dependência econômica em relação a Ramadan.
Em maio, Maira voltou a cobrar o Itamaraty, informando que crianças e tias estavam com passaportes emitidos pela Autoridade Nacional Palestina, mas foi surpreendida por um novo pedido de documentações. O órgão solicitou fotos no padrão do site do Serpro, traduções das certidões de nascimento das crianças e da declaração de morte da mãe, cujo corpo está sob os escombros da guerra, e documento traduzido que comprova vínculo de parentesco das irmãs de Ramadan.
À época, a única saída possível de Gaza, que é a fronteira com o Egito, foi ocupada pelo exército israelense, representado pela Coordenação das Atividades Governamentais nos Territórios Ocupados (Cogat), e, desde então, o processo de evacuação ficou ainda mais complicado.
Advogada rebate versão do Itamaraty
Procurado pelo Metrópoles, novamente, o Itamaraty alega que o encontro que teve com representantes dos repatriados em março deste ano foi para “auxiliar e facilitar a concessão de vistos por reunião familiar”, e isso “não pode ser confundido com operações de repatriação a partir da Palestina”. Confira trecho da nota:
“A operação de repatriação ‘Voltando em Paz’ contemplou, conforme anteriormente mencionado, brasileiros binacionais e seus parentes em primeiro grau, nos termos da legislação vigente. O tema suscitado agora diz respeito à concessão de vistos de reunião familiar.
A reunião a que faz alusão discutiu formas de concessão de vistos da categoria mencionada (‘reunião familiar’) a palestinos indicados em lista apresentada em março ao governo brasileiro. O encontro teve por objetivo auxiliar e facilitar a concessão de vistos por reunião familiar, o que, conforme observado, não deve ser confundido com operações de repatriação a partir da Palestina. Sublinha-se que a reunião se deu em março. Conforme informado anteriormete, os últimos 4 brasileiros em condições de deixar a Faixa de Gaza foram retirados daquele território em 8 de fevereiro”.
O órgão respondeu, ainda, sobre a avaliação feita pelo diplomata diretor do Departamento de Imigração e Cooperação Jurídica sobre o caso dos filhos de Ramadan:
“A avaliação de diplomata brasileiro acerca da situação legal de três filhos do Sr. Hasan Abdou dizia respeito, portanto, ao fato de terem direito a visto por reunião familiar, conforme a legislação vigente. A documentação mínima requerida para dar início à tramitação dos pedidos de vistos dos filhos do sr. Hasan Abdou não foi apresentada até o presente momento. A advogada responsável por acompanhar o pedido foi orientada, em maio, sobre a documentação necessária para análise do pedido”, diz o texto da nota enviada à reportagem.
A advogada Maira Machado rebate, dizendo que os documentos exigidos para os repatriados, à época da Operação Voltando em Paz, foram bem mais flexíveis e lembra o fato de que a guerra segue em curso, em contexto de calamidade para quem continua em Gaza.
“Essas crianças têm passaporte. Foi apresentada documentação comprovando o vínculo de parentesco. Se eles, realmente, quisessem trazer essas crianças, eles estariam trabalhando com outros parâmetros, mas não tem a menor intenção por parte do Itamaraty de intervir junto ao Cogat de Israel para que essas crianças atravessem a fronteira. Se acontecer alguma coisa com essas crianças, foi por falta de vontade política do Itamaraty de viabilizar que elas saíssem da Faixa de Gaza. Isso é um fato”, diz ela.