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Após chegar de jatinho na capital de Gana, o comerciante internacional de armas que se autointitulava “Excelência” cumprimentou seus clientes no hotel Golden Tulip e propôs um negócio secreto: milhões de dólares em mísseis e granadas para usar contra tropas americanas.
“Quem mais sabe que eu estou com o Hezbollah?”, perguntou Faouzi Jaber aos compradores naquele início de noite no hotel quatro estrelas. Jaber, que representava um dos principais operadores da organização terrorista apoiada pelo Irã, dispôs-se a tornar a proposta ainda mais interessante. Ele ajudaria seus compradores a conseguir a cobiçada posição de diplomatas especiais — conhecidos como cônsules honorários —, que podem transitar facilmente por aeroportos e transportar bagagens protegidas contra a fiscalização de agentes da lei.
“Eu farei com que você seja cônsul no seu país”, disse Jaber. “Todos os seus amigos serão cônsules, porque quando viajamos…”
“… vocês terão passaporte diplomático”, interrompeu seu sócio.
A oferta secreta de Jaber no Outono de 2012, gravada e transcrita por investigadores federais dos Estados Unidos, prometia proteção por meio do sistema de cônsules honorários, um mecanismo pouco conhecido que permite que países possam nomear cidadãos comuns para servir como diplomatas voluntários mundo afora, mas que foi desvirtuado por alguns desses personagens.
Diplomacia nas sombras, uma investigação global inédita do Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos e do site americano ProPublica, com a participação no Brasil do Metrópoles e da Agência Pública, identificou pelo menos 500 atuais e antigos cônsules honorários que já foram acusados publicamente de cometer atos ilegais ou se envolveram em controvérsias públicas. Alguns dentre eles chegaram a ser condenados por crimes graves ou foram pegos explorando seus status para ganho próprio; outros foram criticados por apoio a regimes autoritários. Esse número pode ser ainda maior, já que nenhuma agência internacional os monitora e dezenas de governos não divulgam seus nomes publicamente.
A função de cônsules honorários, criada há séculos, foi pensada para ajudar países incapazes de custear a manutenção de embaixadas estrangeiras, mas se tornou, desde então, um dos pilares das relações internacionais, sendo adotado pela maioria dos governos mundiais.
Diferentemente de embaixadores e outros emissários profissionais, cônsules trabalham a partir de seus próprios países, valendo-se de conexões e influência para promover os interesses dos governos estrangeiros pelos quais são nomeados. Em troca, os cônsules ganham entrada para o nobre mundo da diplomacia e recebem algumas das mesmas proteções e privilégios que diplomatas de carreira.
De acordo com o acordo internacional, seus arquivos e correspondências não podem ser apreendidos. Suas “malas” consulares — bolsas, caixas e containers de qualquer peso e tamanho — são protegidas contra buscas. O título e os benefícios, incluindo passaportes e placas de identificação de veículos especiais, podem abrir portas na indústria e na política.
Mas a nomeação de pessoas corruptas, violentas e perigosas para essas posições, incluindo acusados de colaborar com regimes terroristas, tornou um sistema criado para tirar partido da generosidade de cidadãos honestos em uma perigosa forma de diplomacia selvagem que ameaça o Estado de direito pelo mundo.
O ICIJ e a ProPublica descobriram que pessoas condenadas por tráfico de drogas, venda de armas, crimes sexuais e fraude já atuaram como cônsules honorários. Assim como assessores de alguns dos governos mais corruptos do mundo, como Coreia do Norte, Síria e Sudão do Sul. Trinta cônsules honorários já foram sancionados pelo governo dos EUA e de outros países, incluindo 17 que sofreram sanção enquanto ocupavam a posição. Alguns deles eram integrantes do círculo íntimo de Vladimir Putin, incluídos na lista de sancionados após a invasão da Ucrânia pela Rússia no início deste ano.
Nove cônsules honorários identificados pela ProPublica e pelo ICIJ foram apontados por agentes da lei e governos por ter vínculos com grupos terroristas. A maioria deles eram ligados ao Hezbollah, um partido político, prestador de serviços sociais e grupo militante do Líbano apontado pelos EUA e outros países como uma organização terrorista.
Ex-agentes dos EUA que investigaram a rede financeira do Hezbollah afirmam que o uso do status de cônsul honorário pelo grupo terrorista é intencional, bem organizado e precariamente monitorado. Em março, o Departamento do Tesouro dos Estados Unidos sancionou um importante empresário na Guiné, acusando-o de enviar dinheiro ao Hezbollah e usar seu status de cônsul honorário para entrar e sair do país sem fiscalização.
“O Hezbollah percebeu que, se eles usam esses cônsules honorários (…), eles podem basicamente transportar coisas impunemente e ninguém nunca vai pegar eles — você mostra seu passaporte diplomático, e nada é perguntado”, afirma David Asher, ex-assessor financeiro sênior de contraterrorismo no Departamento de Defesa dos Estados Unidos, nomeado em 2008 para auxiliar na coordenação de uma investigação federal da rede criminosa do Hezbollah. “É um enorme ponto fraco no alcance da nossa capacidade de aplicação da lei internacional.”
Para identificar operadores do terrorismo e outros cônsules honorários acusados de crimes, a ProPublica e o ICIJ analisaram registros judiciais, relatórios de governos e políticas públicas e arquivos de imprensa de seis continentes. Repórteres de mais de 50 veículos no mundo e estudantes de jornalismo da Universidade Northwestern, nos Estados Unidos, também participaram da investigação.
Alguns dos cônsules identificados foram acusados previamente de práticas criminosas mas nomeados assim mesmo para posições diplomáticas. A maioria dos cônsules foi investigada enquanto detinha suas posições.
Na Macedônia do Norte, agentes de inteligência descobriram que dois cônsules permitiram que suas instalações consulares fossem usadas como base para uma operação russa de propaganda que visava limitar a expansão da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN). Em Myanmar, um cônsul sancionado pelos Estados Unidos e outros governos supostamente se utilizou de suas conexões para ajudar no fornecimento de armas para a brutal junta militar do país durante sua campanha genocida contra minorias étnicas. Até o momento, a reportagem não conseguiu contato com o cônsul.
Quando acusados, alguns cônsules tentaram e, em alguns casos, até conseguiram escapar de inquéritos criminais alegando falsamente ter imunidade legal generalizada, confundindo e obstruindo o trabalho de policiais e procuradores.
As ilegalidades e reivindicações de impunidade têm sido, em grande medida, recebidas com silêncio: poucos governos já defenderam publicamente a implementação de medidas de prevenção, apesar dos alertas de autoridades responsáveis pela aplicação da lei, entre outros.
“Cônsules agem de maneira completamente autônoma e não são controlados pelos Estados que eles representam. (…) O governo espanhol não tem como interferir em suas atividades”, escreveram investigadores espanhóis em um relatório confidencial de 2019 sobre três cônsules honorários sob investigação de lavagem dinheiro para um suspeito de tráfico de drogas.
Os poucos governos que decidiram tomar medidas, como Canadá, Bolívia, Costa Rica e Montenegro, relatam lacunas na fiscalização e perigosas falhas. Em uma ocasião, o governo da Libéria exonerou quase todos os seus cônsules honorários, citando relatos de atividades criminosas.
Após questionamentos de jornalistas, a Alemanha e a Áustria exoneraram um cônsul no Brasil. Outro cônsul, na Suíça, — previamente condenado por evasão fiscal — anunciou sua resignação.
Milhares de cônsules honorários permanecem em atividade ao redor do mundo, apesar de não haver nenhum dado confiável ou maneira de determinar com que frequência eles infringem as leis ou abusam de seus privilégios.
O agente especial de supervisão aposentado da Agência Antidrogas dos Estados Unidos (DEA) Jack Kelly, que ajudou a levar Jaber à justiça, se preocupa com o fato de que cônsules perigosos passem despercebidos.
“O que as pessoas fazem de fato com essa imunidade parlamentar”, afirmou Kelly, “na maior parte das vezes, nós nunca saberemos de verdade.”
O uso do sistema por financiadores e apoiadores do terrorismo é o mais preocupante, segundo especialistas, por representar uma ameaça iminente aos Estados Unidos e a outros países ao redor do mundo. Jack Kelly afirma que o uso do status de cônsul honorário por agentes ligados ao Hezbollah é intencional e perigoso.
“Essa coisa de cônsul honorário — essa é a questão”, afirma o ex-supervisor do DEA Jack Kelly, que passou uma década investigando o Hezbollah, até sua aposentadoria em 2016. “Isso mostra [que há] uma abordagem bem organizada da condução de atividades na África e provavelmente no mundo todo.”
Kelly sabia muito pouco sobre cônsules honorários no final de 2008, quando números em um celular que estava sendo rastreado pelo governo dos EUA o levaram até um elusivo empresário libanês que rapidamente se tornaria um dos principais alvos do DEA.
Naquela época, Kelly estava ajudando a chefiar uma operação federal conhecida como Projeto Cassandra, criada para desmantelar o extenso império criminoso do Hezbollah. Em um cubículo de um estabelecimento secreto do governo em Chantilly, na Virgínia, Kelly estudava os contatos de um telefone usado por um emissário do Hezbollah suspeito de ajudar no avanço de programas secretos nuclear e de mísseis balísticos do Irã. Kelly acabou se concentrando em um número de telefone no Líbano. Era o número de Mohammad Ibrahim Bazzi.
“Ei, eu encontrei esse cara que parece ser bem importante”, Kelly lembra de ter contado a Asher, assessor do Departamento de Defesa que também chefiava o Projeto Cassandra. Kelly e Asher suspeitavam que Bazzi fosse um importante financiador do Hezbollah e alguém muito próximo do regime iraniano, que estaria lavando dinheiro ilícito através de suas empresas no Líbano e na África.
Na Gâmbia, Bazzi era importador de petróleo e um importante parceiro do presidente Yahya Jammeh, um antigo coronel do exército acusado por um painel governamental do país de sequestro, estupro, assassinato e tortura. Jammeh nega o cometimento dos crimes.
Kelly e seus colegas estavam focados nas atividades criminosas de Bazzi, mas descobriram que ele era cônsul honorário, nomeado pelo governo da Gâmbia em 2005.
Acusado de pagar propina a Jammeh e contribuir para o que as autoridades chamaram de “quase ruína” do país, Bazzi se apresentou como cônsul perante ao painel do governo da Gâmbia em 2017. Funcionários gambianos afirmaram que seu status de cônsul honorário havia sido revogado vários meses antes.
“Ele não tinha o menor respeito pelos gambianos e pelas instituições gambianas”, concluíram as autoridades no relatório final. “Em sua busca por riqueza, ele pensava apenas no lucro, obtido majoritariamente de maneira ilegal.”
Naquele mesmo ano, Bazzi tentou colocar seu filho como cônsul para que pudesse “exercer sua influência” sobre ele, de acordo com o Departamento do Tesouro dos EUA.
Mesmo que Bazzi nunca tenha sido indiciado criminalmente nos Estados Unidos, ele foi apontado como financiador do Hezbollah e sancionado em 2018. Seu filho também foi sancionado um ano depois por trabalhar em favor de seu pai.
O advogado de Bazzi não quis responder às questões enviadas pela reportagem, que também não conseguiu contato com o filho, Wael Bazzi. Em 2019, os dois homens processaram separadamente o governo dos Estados Unidos, em uma tentativa de reverter as sanções impostas. Em registros judiciais, Bazzi afirma que o governo exagerou as transações e eventos que teriam ocorrido anos antes e não conseguiu provar que ele financiou o Hezbollah.
Bazzi também afirma que um de seus deveres enquanto cônsul honorário era “fortalecer laços de investimento estrangeiro entre o Líbano e a Gâmbia”, e que ele havia rompido sua relação com Jammeh em 2016, devido a uma série de ameaças. Ele também alega que havia concordado previamente em trabalhar como informante para o governo dos EUA e que havia sido informado de que não seria sancionado.
Em 2020, um juiz federal arquivou o processo aberto pelo filho de Bazzi. No ano passado, Bazzi encerrou seu próprio processo contra o governo dos EUA. Bazzi e seu filho permanecem sob sanção, e o Departamento de Estado está oferecendo uma recompensa de até 10 milhões de dólares por informações sobre Bazzi e outros que possam levar à ruptura da rede financeira do Hezbollah.
Com o avanço do Projeto Cassandra, o status de cônsul honorário apareceria novamente — dessa vez, durante uma operação que capturou Jaber, o vendedor de armas ligado ao Hezbollah que se encontrou com compradores em um hotel em Gana em 2012.
Os compradores eram informantes do DEA que se passavam por representantes de um grupo internacionalmente conhecido de guerrilha e cartel de drogas da Colômbia, que estariam tentando derrubar o governo e atacar as forças americanas destacadas no país.
“Nós estamos lutando contra os americanos (…) eles estão invadindo meu país”, disse a Jaber um informante, de acordo com a transcrição de uma conversa obtida pela ProPublica e pelo ICIJ. “O que nós precisamos realmente (…) é de uma pessoa boa que possa nos fornecer armas.”
“O Hezbollah vende”, disse Jaber. “Que tipo de armas?”
“Você sabe, M14, M16?”, disse o informante, se referindo a rifles. “Granadas, pistolas, rifles.”
“Explosivos”, disse Jaber. “Dinamite e tal… Bum, bum, bum, bum.”
Como forma de proteção, Jaber ofereceu acesso ao status consular dizendo que “Todas as pessoas importantes, todas as pessoas ricas, [são] todos cônsules.”
“O melhor é a África”, disse Jaber, acrescentando que “muitos homens brancos europeus trabalham como [cônsules]” a partir de seus próprios países, onde não há embaixadas próximas.
Em um segundo encontro com os compradores três meses depois, Jaber disse: “Nós vamos para qualquer país da África. Podemos te tornar cônsul da Guiné Equatorial [ou] da Guiné-Bissau (…) Você paga 200 mil dólares, você é o cônsul oficial do país. E você tem um outro passaporte.”
Em 2014, Kelly viajou para Praga, onde uma nova reunião havia sido planejada, para se certificar de que Jaber e seu sócio Khaled el-Merebi, além do alvo principal do DEA, o vendedor de armas libanês Ali Fayad, fossem levados sob custódia. Fayad e Merebi foram posteriormente soltos pelo governo tcheco, supostamente em troca de cinco cidadão tchecos sequestrados no Líbano.
Jaber, que havia prometido o fornecimento de mísseis superfície-ar (SAM, por sua sigla em inglês), fuzis de assalto e granadas, o transporte e armazenamento de cocaína na África Ocidental, e lavagem dos lucros através de contas em Nova York, foi extraditado para os Estados Unidos. Em 2017, ele se declarou culpado de conspirar para ajudar um grupo terrorista colombiano e foi sentenciado à prisão.
Na audiência, ele pleiteou sua liberdade, alegando que estava sob influência de drogas na ocasião e que havia cometido aquele erro “uma vez só na vida.”
“Eu admito que eu cometi um crime, mas não o fiz de caso pensado”, afirmou. “Não é como se eu tivesse desejado cometer aquele crime (…) Eu estou pedindo perdão para vocês e para a nação americana e para o governo americano. Eu amo o povo americano.”
Em uma entrevista de dentro da prisão federal na Virgínia Ocidental, Jaber admitiu ter oferecido posições de cônsul honorário, mas afirmou que o governo americano havia alterado as transcrições de reuniões para “capturá-lo”. Ele acrescentou que se opõe ao Hezbollah.
“Cônsules honorários, eu sei como eles trabalham, eu sei como eles são criados”, afirmou. “Cônsules honorários transportam drogas, dinheiro. Eu conheço muitos cônsules honorários que se envolvem com todo tipo de besteira.”
Por Debbie Cenziper, Will Fitzgibbon, Delphine Reuter, Eva Herscowitz e Emily Anderson Stern.
Colaboradores: Nicole Sadek, Jelena Cosic, Margot Williams, Miriam Pensack, Emilia Díaz- Struck, Benedikt Strunz, Jan Strozyk, Jesús Albalat, Akoumba Diallo, Noel Konan, Diana Moukalled, Emmanuel K. Dogbevi, Saska Cvetkovska, Bernd Schlenther, Sophia Baumann, Jordan Anderson, Hannah Feuer, Michael Korsh, Michelle Liu, Grace Wu, Linus Hoeller, Dhivya Sridar, Quinn Clark e Henry Roach.
Tradução: Barbara D’Osualdo