“Crises humanitárias silenciosas”: conheça as guerras que ninguém vê
Além das duas grandes guerras em curso, Rússia x Ucrânia e Israel x Hamas, o mundo tem diversos conflitos históricos e recentes
atualizado
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Além das duas grandes guerras em curso, Rússia x Ucrânia e Israel x Hamas, o mundo tem diversos conflitos, históricos e recentes, que não ganham atenção das potências globais e de organizações internacionais. Dessa forma, perdem espaço nos meios de comunicação. O Metrópoles separou algumas disputas fora dos eixos da Eurásia e do Oriente Médio que ocorrem neste ano e devem seguir a todo vapor em 2024.
Em 2022, foram registrados 55 conflitos em 38 países — destes, oito atingiram o status de guerra —, assim como 22 deles foram internacionalizados, ou seja, um ou ambos os envolvidos receberam apoio militar de nações externas, conforme o Uppsala Conflict Data Program, programa de coleta de dados sobre violência organizada da Universidade de Uppsala, na Suécia.
De acordo com o levantamento, os tipos de conflitos mais recorrentes são os não-estatais, que podem envolver grupos criminosos armados, mercenários e terroristas. Em sua maioria, eles acontecem na África, Ásia e Oriente Médio. Os pesquisadores atribuem o aumento do número de mortes à expansão do Estado Islâmico nesses continentes.
Outro dado preocupante é a quantidade de mortes provocadas por essas disputas armadas. Só no ano passado foram contabilizados mais de 238 mil óbitos em conflitos. Assim, 2022 tornou-se o ano mais mortal desde o genocídio em Ruanda, em 1994, quando cerca de 800 mil pessoas morreram em 100 dias.
A pesquisa ainda destaca que dois conflitos são os grandes responsáveis por essa marca negativa: a guerra entre Rússia e Ucrânia e a guerra na Etiópia contra a Frente Popular de Libertação do Tigré (TPLF, na sigla em inglês). Cada uma delas ceifou mais de 81,5 mil e 101 mil, respectivamente.
Com o aumento das guerras, uma questão vem à tona: por que potências mundiais e organizações internacionais não tentam encontrar uma resolução desses conflitos?
Para a professora de relações internacionais da ESPM Denilde Holzhacker, a mediação dessas guerras envolve fatores internos (interesse dos envolvidos de buscar uma resolução pacífica), externos (impacto na economia e segurança nacional) e opinião pública do país “mediador” sobre os conflitos.
Conflitos “invisíveis”
- Haiti
Devido à constante insegurança na capital haitiana, Porto Príncipe, alimentada pelo aumento de homicídios e sequestros, assim como a crescente disputa de grupos armados pela expansão do controle territorial na região, a ONU afirmou que o país caribenho atingiu níveis semelhantes aos de países em guerra.
O secretário-geral da ONU, António Guterres, por meio de relatório publicado em abril de 2023, alertou que “o povo haitiano continua enfrentando uma das piores crises de direitos humanos em décadas e uma grande emergência humanitária”.
“Devido ao elevado número de mortos e ao crescente número de áreas controladas por grupos armados, a insegurança na capital atingiu níveis comparáveis com os de países em situação de conflito armado”, prossegue.
O país permanece mergulhado em uma crise política, de segurança e humanitária. Segundo a Rede Nacional de Defesa dos Direitos Humanos do Haiti (RNDDH), ataques armados esporádicos e massacres contra a sociedade civil se intensificaram desde o início de 2023.
Além dos assassinatos, os grupos armados promovem estupro coletivos de mulheres e crianças. Um dos dias mais sangrentos dessa onda de violência ocorreu de 29 para 30 de novembro, com 72 mortes e 29 estupros, em Sous Matela. Essa noite de terror culminou no incêndio de centenas de casas.
- Mianmar
Desde o golpe de Estado em fevereiro de 2021, Mianmar, país do sudeste asiático, sofre com uma guerra civil que ceifou vidas e provocou o êxodo de milhares de pessoas para países vizinhos, como Bangladesh. O exército independente do Kachin (KIA), grupo composto por diversas minorias étnicas e um movimento de resistência, está em conflito com o regime militar.
Em um relatório do Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários (OCHA, sigla em inglês), publicado no início de dezembro, a ONU alerta que Mianmar está à “beira do precipício em 2024, com uma crise humanitária cada vez mais profunda”.
A organização reforça que a crise no país do sudeste asiático “cresceu em espiral desde a tomada militar em fevereiro de 2021, com a população civil que agora vive com medo”.
Segundo a ONU, um terço da população do país (18,6 milhões) necessita de ajuda humanitária. Esse número é 19 vezes maior do que em 2020, antes do golpe de Estado. Para conter o agravamento dessa crise, a OCHA apelou por US$ 994 milhões em doações.
- Nagorno-Karabakh (conflito entre Armênia e Azerbaijão)
O embate entre Nagorno-Karabakh e o Azerbaijão começou há quase um século, quando a então República Soviética do Azerbaijão decidiu, em 1923, anexá-lo ao seu território. No entanto, essa medida não foi aceita pela população local, de maioria armênia.
Dentro do Azerbaijão, Nagorno-Karabakh tornou-se uma região autônoma. Em 1988, as autoridades aprovaram resolução na qual declarava a intenção de aderir à república da Armênia. Isso desencadeou uma série de conflitos:
- Primeira Guerra de Nagorno-Karabakh (1988-1994): a força da Armênia prevalece, e o país conquista o controle da região.
- Segunda Guerra de Nagorno-Karabakh (2020): o Azerbaijão, com apoio da Turquia, consegue recuperar um terço da região, em apenas 44 dias.
- Terceira Guerra de Nagorno-Karabakh (2023): durou apenas um dia depois de o governo da autoproclamada República de Nagorno-Karabakh afirmar que as forças armadas tinham sido superadas pelo exército do Azerbaijão.
Em setembro, rendidos pelo governo de Baku, o presidente Samvel Shahramanyan assinou decreto que determina a dissolução de todas as instituições estatais de Nagorno-Karabakh. Essa derrota provocou um êxodo em massa dos armênios étnicos que viviam no território.
- Etiópia
O conflito mais mortal de 2022 não é a guerra da Ucrânia, mas sim a guerra civil da Etiópia que ceifou mais de 100 mil vidas no Tigré — uma das nove regiões do país da África Oriental —, de acordo com o Instituto de Pesquisas de Paz de Oslo (Prio, sigla em inglês).
Entre 2020 e 2022, a Etiópia travou uma guerra brutal, e quase desconhecida, contra o movimento de resistência Frente Popular de Libertação do Tigré (TPLF, na sigla em inglês). O exército etiope foi acusado de cometer crimes de guerra, violar os direitos humanos e promover a limpeza étnica dos tigrínios — grupo formado por apenas 6% da população do país.
A guerra do Tigré chegou ao fim em novembro de 2022, quando a região devastada foi entregue ao governo etiope. O conflito é o segundo mais sangrento do século 21, perdendo apenas para a guerra civil da República Democrática do Congo (RDC).
- República Democrática do Congo
Desde 1996, o conflito no leste da República Democrática do Congo provocou quase seis milhões de mortes. O território congolês está mergulhado em uma crescente onda de violência, envolvendo, principalmente, disputas de milícias por território e recursos naturais, violência política e tensão com o país vizinho Ruanda.
Durante giro na África, o papa Francisco discursou contra o que ele chamou de “colonialismo econômico” e pediu para que “tirem as mãos” do Congo. “Tirem as mãos da República Democrática do Congo. Tirem as mãos da África. Parem de asfixiar a África. Ela não é uma mina ou um terreno a ser explorado”, exclamou o papa.
“É uma tragédia que estas terras, e de modo mais generalizado, todo o continente africano siga enfrentando várias formas de exploração. O veneno da ganância manchou seus diamantes com sangue”, completou Francisco.
- Golpes de Estado
Em um período de três anos, Burkina Faso, Mali, Guiné, Sudão e mais recentemente o Níger somam oito golpes militares. O Gabão, que não faz parte da faixa do Sahel, se juntou à lista recentemente com a deposição de Ali Bongo do poder.
- Iêmen
Faz nove anos que a população do Iêmen convive com um cenário de guerra civil, responsável por desencadear uma crise humanitária, com milhares de mortos e refugiados deslocados.
O conflito começou em 16 de setembro de 2014, quando um grupo de insurgentes Houthi — rebeldes xiitas ligados ao Irã e com histórico de revolta contra o governo sunita — assumiu o controle de Sanaa, capital e maior cidade do Iêmen, exigindo a redução do preço de combustíveis e um novo governo.
Em 2023, os combates no país diminuíram, mas os ataques não cessaram. O diálogo entre os Houthis e a Arábia Saudita aumentou a esperança de um cessar-fogo permanente entre os rebeldes e as forças armadas iemenitas.
A Organização das Nações Unidas estima que dos 377 mil óbitos, contabilizados entre 2015 e 2022, 60% resultaram de causas indiretas ao conflito, como insegurança alimentar e falta de atendimento médico acessível. Ainda conforme a ONU, mais de 11 milhões de crianças necessitam de ajuda humanitária no país do Oriente Médio.
- Síria
Na história recente, uma das guerras mais emblemáticas ocorre na Síria. O conflito civil armado começou, em 2011, depois do governo do presidente Bashar al Assad reprimir violentamente uma série de manifestações, inclusive com uso de armas químicas.
Quatro facções alimentam o conflito: os fiéis a Assad, uma série de grupos de oposição, as forças curdas e o Estado Islâmico. A ONU estima que esse conflito ceifou pelo menos 350 mil pessoas, além de provocar o deslocamento de 6,6 milhões.