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Brasileira deputada na Espanha: “Consegui levar as ruas ao Congresso”

A sergipana Maria Carvalho Dantas foi eleita como deputada na Espanha em 2019 e apostou o mandato na defesa de migrantes e minorias

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1 de 1 Imagem colorida mostra Maria Carvalho Dantas é brasileira e deputada na Espanha - Metrópoles - Foto: Arquivo pessoal

Barcelona – Em 21 de maio de 2019, pela primeira vez na história das Cortes espanholas, uma brasileira conquistou assento no Congresso dos Deputados. A sergipana Maria Carvalho Dantas arrebatou a quarta vaga das 13 obtidas nas eleições gerais pelo partido Esquerda Republicana da Catalunha (ERC).

A poucos meses do final da legislatura, que se finaliza em outubro, ela encerra o mandato destacando-se como uma das mais atuantes entre os 350 parlamentares da casa. Sua firme defesa dos direitos das pessoas migrantes e de coletivos vulneráveis, além da postura nos debates em plenário, muitas vezes em confronto com o governo de Pedro Sánchez (Psoe), não passaram despercebidas.

Em entrevista ao Metrópoles, desde Barcelona, onde tem residência há quase 29 anos, Dantas falou sobre a experiência de ocupar espaço no centro da política espanhola após mais de duas décadas de militância em direitos humanos. A advogada, que no Brasil foi delegada, e nos primeiros anos como migrante sem documentos na Espanha chegou a trabalhar fazendo faxinas, destacou o trabalho no Congresso, onde é a primeira a chegar, no início da semana, e a última a ir embora, na sexta-feira.

“Consegui levar as ruas ao Congresso”, relata, se referindo às demandas da sociedade civil que debateu em comissões e no plenário e nos enfrentamentos ao partido de extrema direita Vox. Confira a entrevista.

Como é ser deputada na Espanha?

Não sei quantos assessores tem cada deputado no Brasil, mas não tenho assessor particular. Obviamente, existem os partidos com muita representação no Congresso, como o Partido Socialista (Psoe), que tem o maior número de deputados, 120, e dispõe de muitos assessores. Claro que temos assessores, mas não exclusivos. Contamos com 10, que se dividem com nossa base do Congresso e do Senado, ou seja, trabalham para 15 senadores e 13 deputados. Há mais quatro, só que duas são assessoras para agenda no Congresso e há um na comunicação geral e outra que é chefa de imprensa e trabalha diretamente com o porta-voz do nosso grupo parlamentar, mas tampouco fazem a comunicação direta e exclusiva de cada deputado e senador do nosso grupo. Ou seja, os meus vídeos e as minhas falas sou eu quem edito. Obviamente, quando se trata de elaboração de leis temos o apoio da assessoria jurídica. Ressalto isso, porque muita gente do Brasil me manda mensagem pelas redes sociais e, pelo o que leio, as pessoas pensam que sou assim uma “estrela”. Aqui, o deputado é funcionário público, obviamente há algumas estrelas nesses grandes partidos. Mas sou republicana, o meu partido é republicano e temos a consciência de que somos funcionários públicos e temporários.

Você foi ativista durante 26 anos. O que essa bagagem contribuiu no trabalho do mandato?

Eu utilizo essa experiência de ativismo na rua a cada dia no meu trabalho parlamentar. Eu falei sobre isso, inclusive, no discurso final da comissão que analisou a Lei da Mordaça (Lei Orgânica 4/2015, de proteção da segurança cidadã). Isso é reconhecido, inclusive, por outros deputados que estiveram trabalhando nesse espaço comigo, que dizem que não houve outros parlamentares que colocassem em cima da mesa casos reais vividos nas ruas do que eu nos debates. Por exemplo, nesta comissão debatemos sobre a presunção de veracidade da palavra de um agente da lei e a falta de respeito à autoridade policial, o que provoca muitas detenções e multas na Espanha. Nas discussões, eu sempre esperava que todos falassem. Neste caso, eu coloquei a seguinte situação de rua, que testemunhei em protestos. Por exemplo, uma pessoa que não escuta bem ou que não entende o idioma (acontece com muitos migrantes). Vem a polícia e diz: ‘Documentação!’ Esta pessoa que não escuta bem ou não entende o idioma nem olha para a polícia. Após o policial insistir, a pessoa olha sem entender nada. O que acontece? Enquadram esta pessoa na a Lei da Mordaça, aplicam multas imensas e a levam para a delegacia e podem até enquadrá-la no Código Penal. Então acabou a vida dessa pessoa. Nessas décadas de movimento social, de base na rua, de situações que eu vivi, inclusive na própria pele, de situações que as minhas companheiras e os meus companheiros viveram na própria pele, eu posso debater com situações concretas. E conheço também a polícia. Porque quando você está nos movimentos sociais, de alguma maneira você interage com o corpo de polícia. É importante deixar claro que eu não vou contra o agente policial, que haja um corpo especializado do Estado para proteger a cidadania. Só que sabemos que aqui na Espanha como também no Brasil, o modelo policial é que tem que mudar. Porque não é um modelo policial de proteção aos direitos fundamentais e aos direitos humanos da cidadania.

Você citou o trabalho na comissão montada para propor reformulação da Lei da Mordaça. Após um ano, seu partido através do seu voto e o partido EH Bildu derrubaram a proposta de reforma. Por que não concordaram em aprovar o texto final? O que é a Lei da Mordaça?

Começo a responder com uma afirmação: dialogar e negociar é estar dispostos a perder uma parte do teu projeto em benefício do bem comum; o grande problema nesse tal “bem comum” nunca, nunca entram as pessoas migrantes, as refugiadas, e também grande parte da população em situação de precariedade e de vulnerabilidade. Dito isto, a Lei Orgânica de proteção da segurança cidadã, a qual chamamos de Lei da Mordaça, é uma lei reacionária, aprovada em 2015, época de resistência e determinação, quando as pessoas saíram às ruas em grande número da Argélia ao Irã, no Iraque e no Líbano, época do Occupy New York, das grandes mobilizações no Oriente Médio e no Norte da África, de Hong Kong ao Chile, ou seja, na época da indignação contra os poderes fáticos e para defender os seus direitos. Aqui na Espanha houve o movimento 15M, contra o qual as forças de segurança responderam com meios brutais de repressão. Naquela época, o Partido Popular (PP) mudou muito a normativa estatal. Aprovou uma legislação ad-hoc para proibir a liberdade de expressão, de reunião e de movimento, visando desmobilizar movimentos sociais, ONGs, jornalistas, livres pensadores, migrações etc. Para restringir a liberdade de reunião e os protestos nas ruas, principalmente através de multas. Com relação às multas, muita gente diz que a mordaça se trata de uma lei administrativa. Mas cuidado, porque dentro da Lei Mordaça há referências ao Código Penal, inclusive a leis orgânicas terríveis para a cidadania. Também inclui referências à Lei de Estrangeiros para barrar a entrada de refugiados no território espanhol, basicamente na fronteira Sul da Espanha – que é a fronteira Sul da Europa – com a inclusão ad-hoc de uma disposição final que chamam de forma equivocada de ‘rechaço em fronteira’. É uma lei que tem que ser revogada! Se recorrermos à hemeroteca veremos que antes de ser governo, o atual presidente da Espanha, Pedro Sánchez, deu várias entrevistas dizendo que quando estivesse no governo iria revogar a Lei Mordaça. Há perguntas muito diretas sobre as devoluções em ‘caliente’ (devolução imediata de migrantes que atravessam a fronteira). Ele classificava isso como uma barbaridade, uma ilegalidade que vai contra o direito internacional e afirmava: ‘vamos eliminar’. Ele também falou sobre a presunção de veracidade por parte dos agentes da polícia. Não queremos desclassificar o trabalho dos agentes de polícia, porque a maioria faz bem o seu trabalho, mas no calor das manifestações de rua há agentes que podem dizer alguma coisa que algum manifestante não fez. Então há um consenso de revogação dessa lei por parte da 100% dos sócios do governo espanhol, desde o centro até a esquerda, até a extremíssima esquerda. Isto consta no acordo de governo do Pedro Sánchez, ou seja, está lá o compromisso de derrogação da Lei de Segurança Cidadã. O outro partido do governo é o Unidas Podemos, um conglomerado de partidos no qual está o Podemos, que nasceu com essa ideia do movimento 15M, com essa ideia revolucionária de nos mobilizemos. Então, se o PSOE, que desde 2015 vem dizendo que ia revogar a Lei Mordaça, está no mesmo governo com o Podemos, eu estava absolutamente convencida de que essa lei iria ser revogada.

E o que aconteceu?

Uma coisa é fazer uma promessa quando está fora do governo, outra é como atua quando está no governo. E o que ocorreu? O governo não pautou a derrogação da Lei da Mordaça. Outro partido, o PNV, do País Basco, registrou um pedido de reforma desta lei. O que nós de Esquerda Republicana e EH Bildu queríamos era que se revogasse essa lei mordaça. Mas como não tramitou desta maneira, resolvemos engolir sapos e trabalhamos bastante durante mais de um ano. Como uma das relatoras, passei por cima de umas 40 emendas nossas. Deixamos no final 11 emendas, que eram nossas linhas vermelhas. E entre elas estavam quatro pelas quais nós deixamos muito claro que não aprovaríamos a reforma da lei caso as mesmas não fossem incluídas. Destas quatro principais, há dois pontos de extrema importância para a cidadania, que são os dois artigos que realmente deram o nome de mordaça à lei, que é o artigo 36.6, que é o tema da responsabilidade, da resistência à autoridade. Significa, por exemplo, que se uma pessoa, em um protesto ficar mais de 30 segundos no mesmo lugar após uma ordem policial já está infringindo a lei, no tocante à responsabilidade e à resistência à autoridade. O outro é 37.4, que são as faltas de respeito à autoridade; aqui se trata presunção de veracidade dos agentes policiais. Isso existe no mundo inteiro, inclusive no Brasil e também é muito polêmico. O princípio é da veracidade do que diz um agente policial e a fé pública de um policial. Imagine que fé pública, que presunção de veracidade tem um policial que entra nas favelas? Como os “autos de resistência” de acordo com a presunção de veracidade dos agentes policiais no Brasil ou da Colômbia, por exemplo. Esse artigo foi um dos mais controvertidos durante todo debate da reforma da lei. Tanto ERC quanto EH Bildu exigíamos objetivar esse artigo. O que é uma falta de respeito a um agente de polícia? É um olhar? Um gesto? Uma palavra? Existem muitas interpretações. Portanto nós queríamos objetivar o texto, uma vez que não conseguimos eliminar esse artigo, porque o Governo da Espanha (o seu ministério de Interior) não quis.

E qual foi a proposta?

Nós colocamos duas propostas na mesa, objetivar o artigo com “injúrias· e “calúnias”, porque são figuras jurídicas do Código Penal. Existe jurisprudência sobre o que é injúria, o que é calúnia e também difamação. E não quiseram objetivar. Por quê? Querem continuar com a presunção de veracidade dos agentes policiais!

E os dois outros artigos?

Um dos outros dois se refere à utilização das balas de borracha, que atualmente não podem ser utilizadas na Catalunha e no País Basco. Em 2014, foi aprovada uma resolução no Parlamento da Catalunha da não utilização das balas de borracha como material antidistúrbio, assim como há uma instrução do Departamento catalão de Interior no mesmo sentido. Naquele ano, em um protesto em Barcelona, uma manifestante, a Ester Quintana, recebeu o impacto de bala de borracha e perdeu o olho. No País Basco, existe uma instrução do governo com a mesma proibição. Só que isso é complicado, por conta do sistema de competência da Espanha em matéria de segurança. A Catalunha tem uma polícia própria, os Mossos d’Esquadra. Só que quando o Estado atua na Catalunha, através do corpo de polícia estatal, a Polícia Nacional e a Guarda Civil, eles usam as balas de borracha. A polícia catalã não pode usar as balas de borracha, mas espanhola sim, como fizeram nas manifestações do referendo da Catalunha do 1º de outubro de 2017. Neste dia, inclusive, um manifestante, Roger Español, também perdeu um olho com o impacto de uma bala de borracha. Há vários outros casos, inclusive uma morte, como a de Iñigo Cavacas, no País Basco. Há também registro de mutilados, pessoas que perderam a audição ou partes do corpo. Na Espanha, a Polícia Nacional e a Guarda Civil continuam usando balas de borracha, que causaram, nas últimas duas décadas, além da morte Iñigo Cabacas, 24 feridos graves, incluindo 11 casos de lesões oculares graves, como documentou “Stop Balas de Goma”. A Amnistia Internacional considera que as bolas de borracha devem ser proibidas, por serem intrinsecamente imprecisas e pelo elevado risco de lesões graves que a sua utilização acarreta, e que também conseguiram contribuir para a morte de mais dezenas de pessoas nos episódios dos massacres Tarajal em 2014 e de Melilla em 2022. O outro artigo se refere à devolução em ‘caliente’ da qual me referia no início da entrevista, que para o meu partido e para mim, muito pessoalmente, é urgente a sua eliminação do texto legal, tanto da lei mordaça quanto da lei de estrangeiros.

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A brasileira ficou conhecida por defender minorias

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Então, se pode dizer que houve má vontade do governo em reformular a lei ou até derrogá-la?

Houve uma total falta de vontade do governo. O governo poderia, ele próprio, derrogar a lei. Até porque já aconteceu de aprovarem leis em prazo de dois dias, usando o regime de urgência. Existem artigos no regulamento do Congresso para isso. Por mais que neste trabalho tenhamos avançado em outros aspectos, como, por exemplo, conseguimos incluir a rebaixa das multas, sendo relacionadas ao salário mínimo interprofissional; não era o suficiente. Um estudo da Anistia Internacional com dados até 2021 mostra que os dois artigos sobre a presunção de veracidade dos agentes e o desrespeito à autoridade correspondem a 70% das multas aplicadas com base na Lei da Mordaça. Como é que eles queriam que a gente aprovasse uma lei deixando vivas 70% das multas dessa lei e ainda mais as devoluções em ‘caliente’? Ainda mais sem proibir as balas de borracha? Então, tudo o que a gente conseguiu não valia a pena se matinha esses quatro pontos intactos. Volto ao que disse no início sobre o tal “bem comum”, que nunca, nunca está dirigido às pessoas migrantes, refugiadas, e grande parte da população em situação de precariedade e de vulnerabilidade.

E qual seria o motivo do governo relutar em reformar estes quatro pontos da lei?

Durante o processo de tramitação da reforma da Lei Mordaça, os grandes sindicatos de Polícia da Espanha saíram às ruas para defender a manutenção da lei mordaça. O que está passando aqui neste país é que o Corpo Nacional de Polícia, que inclui a Guardia Civil e a Polícia Nacional, estão repletos, segundo afirmam grandes jornalistas, de militância de Vox, extrema direita espanhola. Durante o processo da reforma da Lei da Mordaça se multiplicaram grupos de WhatsApp. Eu acho que isto é bem conhecido dos brasileiros, né? Grupos de WhatsApp com frases criminosas contra as pessoas imigrantes, contra as pessoas ciganas, contra as mulheres, contra o coletivo LGBTQIAPN+. E repito que o problema é de base. Há que mudar o modelo policial, porque desde o final do franquismo quase nada mudou aqui.

Falando nas forças policiais, houve a questão de Melilla, na qual foram mortas, oficialmente, 23 pessoas das centenas que tentaram atravessar a fronteira do Marrocos com a Espanha. Você cobrou muito a responsabilidade do governo espanhol, confrontando-se inclusive com o ministro de Interior Fernando Grande-Marlaska.

O ministro do Interior me adora (ironia). No dia 24 de junho de 2022, 500 pessoas tentaram entrar na Espanha pelo Muro de Melilla, que uma área de fronteira entre Espanha e Marrocos, é um enclave colonial europeu em território africano. É um local terrível! Há um grande cercado com oito metros de altura com arame farpado, e um perímetro de fronteira de 12 quilômetros. Em um dos lugares de passagem há uma espécie de galpão a céu aberto que tem aproximadamente uns 50 por 30 metros; é um espaço de gestão compartilhada entre os dois estados, uma área de trânsito entre suas fronteiras, numa das zonas mais militarizadas por ser a fronteira sul da Europa, onde dividem o mundo que eles chamam de “civilizado” e o que eles chamam de “não civilizado”. É a fronteira do mundo branco com o negro. É a fronteira do mundo ocidental cristão com o mundo não ocidental e muçulmano e pagão. Tudo isso eu estou dizendo não é o eu penso, mas o que se pensa do lado de cá, na Europa. Muitas pessoas estavam na parte da frente, tentando abrir a porta da entrada da fronteira espanhola. Do lado da Espanha, estavam vários agentes da Guardia Civil e outros da Polícia Nacional, que começaram a lançar gás lacrimogêneo e atirar projéteis dentro desse espaço. Algumas pessoas conseguiram subir no teto, muitas estavam se asfixiando. E os agentes jogavam pedras e continuavam disparando e lançando gases nas pessoas, que ficaram encurraladas como gado. A Polícia marroquina fazia o mesmo. Muitos morreram quando conseguiram arrebentar a cerca para Espanha. Houve um grande amontoamento. As pessoas que estavam na frente caíram e as demais, obviamente, tentavam passar uma empurrando a outra. Obviamente, é condição humana de tentar se salvar. Então, havia uns cinco andares de pessoas pisoteadas. Além disso, elas não estavam no chão, estavam em cima de uns ferros. E a polícia entrando do lado do Marrocos. Então várias pessoas morreram e os que conseguiram sair daquela situação voltaram para o Marrocos e foram massacradas pelas forças de segurança marroquinas, torturadas na delegacia. As imagens mostravam dezenas de pessoas, mortas e feridas, uma em cima da outra. Tem imagens da polícia chegando aos corpos de pessoas mortas ou desmaiadas. O ódio era tão grande que existem imagens mostrando policiais com o cassetete dando na cabeça, no corpo, arrastando estes corpos. Uma coisa terrível!

Você foi a Melilla, o que conseguiu descobrir lá?

Uma semana depois, eu fui sozinha para Melilla, onde fiquei cinco dias. Mantive reuniões com várias associações e entidades de direitos humanos, além de repórteres, entre eles o José Palazón, fotojornalista que leva décadas denunciando as violações de direitos humanos na fronteira Sul da Espanha. Também pedi à Delegação do Governo para entrar no Centros de Estadia Temporária para Imigrantes (CETI). Foi complicado conseguir, mas sou muito insistente e consegui falar com o diretor. Fiquei lá quatro horas e meia e o diretor respondeu todas as minhas perguntas. Com ele, estive uma hora e meia e depois fui conversar com alguns dos que conseguiram entrar na Espanha, cerca de 120 pessoas. Tinha gente em cadeira de rodas, com perna quebrada, com pontos na cabeça por conta dos ferimentos das balas de borracha. Teve um rapaz que teve que ser levado a um hospital na Península, por traumatismos na cabeça. Todos pediram proteção internacional. Outros estão desparecidos e este é um dos meus questionamentos ao governo, que desde o primeiro pronunciamento, não somente do ministro de Interior, como do presidente Pedro Sánchez, agradeceram aos corpos de segurança da Espanha e do Marrocos, dizendo que fizeram um bom trabalho. A versão marroquina coloca o número de mortos em 23, mas a Anistia Internacional garante que pelo menos 37 morreram e que mais de 70 pessoas continuam desaparecidas. O Alto Comissário do Congresso Espanhol fez um relatório e afirmou que 470 potenciais refugiados foram expulsos ilegalmente para Marrocos, aquele dia. Fora os desaparecidos, que são centenas. Importante dizer que no dia seguinte jornalistas, entre eles David Bernal, fotografaram a abertura de valas comuns no lado do Marrocos para colocar corpos sem identificar. Pessoas que fugiram de guerras várias do continente africano e que quando tentam entrar na Europa para pedir proteção internacional, como não são branquinhos de olhos azuis como os ucranianos, foram tratados desta forma. Ressalvo que os ucranianos têm esse direito de asilo, que é um direito humano. Mas não é um direito exclusivo das pessoas brancas da Ucrânia. Justamente na época de Melilla foi quando a União Europeia ativou a famosa Diretriz europeia – engavetada há 21- de proteção internacional urgentíssima aos refugiados ucranianos. Tem que ser assim mesmo! Corretíssima aplicação do Direito, mas devem atuar da mesma maneira com as pessoas refugiadas que vêm de guerras do Sul global. Sabemos que as pessoas que sobreviveram ao massacre de Melilha foram expulsar ilegalmente pela Espanha e foram às prisões do Marrocos, torturadas, muitas condenadas e estão presas.

E depois disso, qual foi sua atuação?

Fizemos muitas gestões no Congresso, mas sem conseguir quase nada. Solicitamos por duas vezes a abertura de uma comissão de investigação. A Mesa do Congresso barrou com os votos do Psoe (Governo), do Vox (extrema direita) e do PP (direita extrema). Ou seja, já fizemos de tudo que podíamos fazer a nível de regulamento do Congresso dos Deputados. O que conseguimos foi reprovar o ministro do Interior pelas mentiras que falou, pelas ações que ele fez e pelas omissões. Também pedimos a demissão do ministro, mas até agora nada. É como se não tivesse acontecido nada. Daí eu penso, como é que isso vai ficar assim? A questão é que a garantia da impunidade vem desde cima, da União Europeia, do Pacto Europeu de Migração e Asilo. Sou absolutamente contra esse pacto. Há um processo de muitos anos de externalização de fronteiras da União Europeia, que paga a terceiros países para que não deixem entrar refugiados. Pagam à Turquia, ao Marrocos, à Mauritania, ao Senegal e a diversos governos do continente africano, que são coniventes com os massacres que acontecem na fronteira África e Europa.

Você atua em outras frentes, inclusive foi uma das artífices da Lei Trans, aprovada recentemente?

No Congresso eu trabalho com temas que são cruciais. Não atuo somente da defesa das pessoas migrantes. Faço um trabalho transversal. Estou em muitas comissões (sou porta-voz em quatro e secretária em uma). Nesta legislatura, fui relatora da Lei Orgânica 8/2021, de proteção integral de crianças e adolescentes contra a violência. Esta é uma das leis mais progressistas a nível de recomendações das Nações Unidas e de diversas ONG de proteção e garantia dos direitos da infância e da adolescência na Europa. Estou na Comissão de Igualdade e aprovamos a Lei 4/2023, pela igualdade real e efetiva das pessoas Trans e pela garantia dos direitos das pessoas LGTBI. Essa foi a lei mais discutida e realmente travamos uma batalha. Destaco bastante a figura dos movimentos sociais, do associacionismo das pessoas Trans e LGBTQIAPN+. Um nome que foi muito importante neste debate foi da Mar Cambrollé, mulher trans ativista que sofreu as agruras do franquismo, que é uma ativista histórica pelos direitos humanos e fundamentais das pessoas Trans, mas também de toda a cidadania. Eu sempre digo que sem a participação ativa desde as ruas e estando empurrando os poderes públicos no Legislativo, no Executivo e também no Judiciário, essa lei não tinha sido aprovada. Essa mulher defende a população Trans da Espanha e levava mais de 40 anos esperando uma lei própria, uma vez que no coletivo, a população L (lésbica) e o G (gay) já tinham leis específicas. Obviamente precisávamos de uma lei estatal para que uma pessoa de Extremadura, que está lá perto de Portugal, não tivesse que vir para Barcelona para ter seus direitos reconhecidos e poder fazer sua transição. Outra coisa era que antes desta lei que aprovamos para uma pessoa trans mudar o seu nome e o seu sexo no registro civil, tinha que passar dois anos em uma condição de patologias muito complicada, inclusive a nível psicológico. Ou seja, dois anos de hormônios. Muita gente trans não quer tratamento hormonal, muita gente trans não quer extirpar o seu pênis. Muitas mulheres trans não querem fazer uma plástica vaginal. Então, essa lei trouxe uma mudança de paradigma. Essa mudança de paradigma com a lei trans é a autodeterminação de gênero. Não é uma questão de sentir-se, senão de ser. E de que homens podem, sim, ter uma vagina e de que mulheres podem, sim, ter um pênis. Então aqui é a mudança de paradigma principal que nós aprovamos com essa lei e por isso houve essa batalha campal não só nas ruas. Pessoas do coletivo LGBTQIAPN+ fazendo greves de fome em 70 cidades da Espanha e promovendo manifestações incríveis quase cada fim de semana. Enfrentamos a extrema direita, a direita extrema, e uma parte do feminismo hegemônico, inclusive da esquerda, que não aceita e continuará muito tempo sem aceitar a autodeterminação de gênero, porque é aquele feminismo que não acompanhou o andar da sociedade, que são transfóbicas, e que estão no próprio governo español. Na época em que era vice-presidenta a sra. Carmen Calvo, a política mais transfóbica da Espanha, tentou barrar a lei de muitas formas; porém ela não conseguiu. Primeiro, porque não é a dona da Espanha. Segundo, porque há nesta legislatura uma nova confluência de esquerdas deste Estado plurinacional, que colocou o seu Governo contra a parede. No final, o mesmo pessoal se deu conta que o reconhecimento legal da autodeterminação de gênero estava sendo cobrado por muitos estamentos internacionais, inclusive pelas Nações Unidas. Reconhecer a autodeterminação de gênero está dentro do que é o arcabouço das Nações Unidas pela garantia, proteção e defesa dos direitos humanos. Então, o governo espanhol teve que abaixar a sua cabeça transfóbica e aprovar essa lei. Essa é uma das leis mais progressistas da Europa nesse sentido. Agora vamos continuar lutando pelo reconhecimento dos direitos das pessoas não binárias, e por ampliar o reconhecimento de direitos das pessoas trans migrantes e das pessoas menores trans.

 Em uma entrevista recente que concedeu ao jornal El Público, no Congresso, você disse a frase: “A rua está nesta sala”. Você leva às ruas não só a aquela sala, mas para aonde vai.

Algo que sempre faço é trazer as demandas das ruas para o Congresso. Gosto de receber o povo, gosto de ouvi-lo, de colocar no papel todas as suas reivindicações e de lutar no Congresso para conseguir que seja uma realidade. Como diz o professor Silvio Almeida: “Ainda que essencial, a mera presença de pessoas negras e outras minorias em espaços de poder e decisão não significa que a instituição deixará de atuar de forma racista. A representatividade pode ter dois efeitos importantes no combate à discriminação: 1) propiciar a abertura de um espaço político para que as reivindicações das minorias possam ser repercutidas, especialmente quando a liderança conquistada for resultado de um projeto político coletivo; 2) desmantelar as narrativas discriminatórias que sempre colocam minorias em locais de subalternidade.” Estar deputada no Congresso espanhol (sim, o verbo é “estar” e não “ser”), sendo uma mulher imigrante latino-americana pode servir para que, por exemplo, mulheres imigrantes e racializadas questionem o lugar social que o imaginário racista lhes reserva. Se olhar a agenda do Congresso, você verá que as reuniões plenárias acontecem partir das 15h, da terça-feira e vão até quinta-feira. Os parlamentares e as parlamentares chegam normalmente meio-dia da terça e vão embora às 17h da quinta. Eu vou para Madri no domingo à noite, pego o último trem, que chega lá 23h55, para na segunda-feira de manhã, às 8h30, já poder estar reunida no Congresso com algum coletivo ou ONG. A técnica que faz a agenda fica louca comigo. Passo uns 20 e-mails e digo que quero conseguir receber ao menos a metade dos que solicitaram agenda. Na semana passada, ela olhou a agenda e disse: ‘Você comeu hoje?’ E me deu uma bronca porque eu estava marcando agenda no horário do almoço. Então, ela me disse: ‘Se eu coloco que das 14h às 15h, você não tem compromisso é porque você vai estar almoçando’.

Estás pensando em fazer parte da lista de ERC para reeleição?

O pessoal da Setorial de Cidadania, Migrações do meu partido está pedindo para que eu continue, além de muitas pessoas dos movimentos sociais e das ONG. De momento, eu digo que não. Esse “não”, anteriormente, era “nem pensar!”. Existem mais pessoas que podem entrar e fazer um trabalho maravilhoso de representatividade, com certeza! Devemos perder o medo a abrir a boca em lugares de toma de decisões e de poder. Poderia repetir o mandato se fosse para continuar defendendo contundentemente os direitos humanos, fundamentais, sociais, culturais, meio ambientais, pois esse é o meu leitmotiv de estar no Congresso. Realmente tenho que agradecer ao meu grupo parlamentar e ao meu partido que me apoiam em tudo o que eu faço aqui no Congresso.

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