Bombardeios russos à Ucrânia ameaçam luta mundial contra Covid
Avanço do conflito aumenta tensão entre países e prejudica o combate à doença que já matou milhões
atualizado
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Os bombardeios da Rússia contra a Ucrânia aumentam a instabilidade na geopolítica internacional e põem em alerta a gestão da pandemia da Covid-19. O conflito coloca em risco a cooperação internacional e a solidariedade, que são as principais aliadas dos países no combate à crise sanitária global, e reforça o perigo de mais variantes surgirem em 2022.
Existem diferentes cenários de como a pandemia pode se desenrolar neste ano, mas, de acordo com estudiosos, não é difícil imaginar que a Ômicron está longe de ser a última variante que surgiu, embora já tenha alavancado a disseminação da doença por ser mais transmissível. Já são mais de 430 milhões de casos e quase 6 milhões de mortes no mundo.
Conflitos podem agravar pandemia
A incerteza avança ainda mais em meio às crises diplomáticas. Europa, Estados Unidos, Rússia e China vivem numa guerra de posições em torno da Ucrânia, num teatro de operações em que todos querem ganhar adesão e sair bem na foto, com uma série de promessas não cumpridas e blefes. No entanto, o que isso tem a ver com a covid-19?
“Esse mesmo clima de desconfiança e compromissos não cumpridos das lideranças globais se reflete na gestão global da pandemia e nas negociações sociais, ambientais e de saúde”, diz o presidente da Aliança Latino-Americana de Saúde Global, Paulo Marchiori Buss.
Buss, que também é diretor do Centro de Relações Internacionais em Saúde da Fundação Oswaldo Cruz (Cris/Fiocruz), é enfático ao dizer que, “globalmente, as condições continuam ideais para que surjam mais variantes”. “Resta-nos a certeza de que, para mudar o curso da pandemia, devemos mudar as condições que a geraram e a impulsionaram: sociais, econômicas, ambientais, políticas, ambientais, éticas e sanitárias”.
Riscos concretos
Na Europa, a virada de ano já havia sido marcada pelo avanço da variante Ômicron e pela crise de segurança que se instaurou com o posicionamento militar da Rússia ao longo da fronteira com a Ucrânia e na Bielorrússia. As tropas de Vladimir Putin já bombardearam o país da capital Kiev, e o presidente disse que já está pronto “para reagir” a ameaças de rivais.
Com milhares de tropas, tanques e vasto arsenal bélico, a Rússia antes chegou a negar que estivesse preparando invasão militar, mas disse que o Ocidente deveria levar em conta suas demandas de segurança, que incluem a previsão de garantias vinculantes de que a Ucrânia e a Georgia não se tornem membros da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan).
Agravadas pela pandemia, as incertezas impactam a população porque geram ameaças concretas de danos militares potenciais à vida e à saúde das pessoas, inclusive a mental e a dos diretamente envolvidos, assim como a de moradores de outras partes do mundo.
A avaliação está no segundo volume do ano dos Cadernos Cris/Fiocruz de Saúde Global e Diplomacia da Saúde, divulgado neste mês. No documento, os pesquisadores fazem diversos alertas para os líderes mundiais, sempre focando na importância de preservar o direito à vida.
Enfermidades que estavam próximas da erradicação ou controle já ganham fôlego, pois a pandemia atrapalhou a rotina e as campanhas de imunização. Por outro lado, a crise sanitária também deu força ao movimento antivacina, não só entre caminhoneiros do Canadá, como na pouco democrática Hungria ou em populações dominadas por fundamentalistas.
As economias continuam cambaleantes. Os países ficam no vai e vem de esquemas mais ou menos rígidos de distanciamento físico e outras restrições, pois a distribuição de vacinas e o acesso às campanhas de imunização continuam abissalmente desiguais. Além disso, as cadeias de produção e transporte colapsaram.
Aliadas imprescindíveis
“Sem haver cooperação e solidariedade internacional, definitivamente, não vamos resolver o problema”, alerta Buss. “A Europa vive dias de tensão com a possibilidade de invasão da Ucrânia pela Rússia, que quer impedir o avanço da aliança militar ocidental. A diplomacia vem atuando fortemente, ainda que mesclando tentativas de diálogo e ameaças”, afirma.
Coordenador do Comitê Executivo do Fórum Social Mundial da Saúde e da Seguridade Social e pesquisador sênior do Cris/Fiocruz, o epidemiologista Armando De Negri Filho destaca que “a cooperação internacional e a solidariedade são ferramentas indispensáveis para responder efetivamente à pandemia e outras crises”. “As vacinas covid-19 devem ser bens públicos globais”, defende ele.
“O sistema multilateral e a governança global devem ser fortalecidos. A enorme lacuna global no acesso a vacinas e medicamentos, devido às desigualdades entre os países, colocou em risco milhões de vidas nos países em desenvolvimento”, afirma Armando. Ele também integra o Mecanismo de Especialistas em Direito ao Desenvolvimento do Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU).
Dezenas de colegiados reforçaram a mesma posição. O Relatório do Fórum Social 2021 do Conselho de Direitos Humanos, por exemplo, já havia considerado a importância de boas práticas, histórias de sucesso e lições aprendidas na luta contra a covid-19, com foco especial na cooperação internacional e solidariedade, e do ponto de vista dos direitos humanos. O encontro foi realizado, em outubro do ano passado, em Genebra.
Vulnerabilidade
Pesquisadora sênior do Centro de Desenvolvimento Tecnológico em Saúde (CDTS) da Fiocruz e do Fiocruz e Instituto Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação em Doenças de Populações Negligenciadas, Claudia Chamas faz um alerta do ponto de vista econômico global. “A difusão acelerada da variante Ômicron aprofundou a crise”, diz.
“Pôs em evidência, ainda, as fraturas no sistema econômico internacional. Os países desenvolvidos foram duramente abalados pela nova onda e ficou claro que soluções de rotina não se aplicam a um problema global dessa natureza. Os países pobres continuam vulneráveis à escassez de vacinas e outros cuidados de saúde”, continua Claudia.
É por isso que, apesar de haver contextos diversos sobre como a pandemia pode se desenrolar neste ano, certamente a Ômicron não representa o “final do jogo”, como observa Buss. Essa previsão ganha mais força em meio ao aumento da ameaça de guerra, com a intensificação de tensões entre os países.
O ano de 2022 é decisivo. Voltar ao “normal”, segundo o presidente da Aliança Latino-Americana de Saúde Global, torna certa a eclosão de novas e talvez mais letais pandemias e a permanência das injustiças sociais, econômicas, políticas, ambientais e sanitárias.
“Para superar este quadro, são necessárias respostas que articulem todos os setores do governo e toda a sociedade, bem como agregar às respostas nacionais, respostas globais devidamente coordenadas no âmbito de todos os espaços multilaterais, globais e regionais”, afirma o diretor do Cris/Fiocruz.