Uma mulher cheia de vida, espírito e garra. Aos 50 anos, Pedrolina Silva brilhava como o Sol e, após conquistar boa parte de seus sonhos, nutria a vontade de cumprir sua nova lista de desejos. A quinta década de vida da maranhense estava sendo a melhor, ela estava no controle da própria narrativa.
Em 2012, Lina, como é chamada pelas amigas, embarcou, sem querer, em uma jornada de autodescobrimento e amor próprio. Com vontade de subir alguns degraus no mercado de trabalho, ela retomou os estudos e começou a cursar serviço social. Durante a graduação, superou várias inseguranças, compartilhou traumas e deu um giro: terminou o casamento e comprou um apartamento, sozinha, no Paranoá.
No turbilhão de mudanças, Lina conheceu um tipo de amor diferente e encontrou apoio nas colegas de sala. “As mulheres, a maioria mais velhas, estavam ali para realizar um sonho de longa data, tinha avó, divorciada, solteirona. Umas estavam formando os filhos e resolveram também rever a condição de estudante”, conta Elisa Maria Araújo, colega de turma de Pedrolina.
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A sororidade ocorreu de forma natural e os laços foram se formando. “No primeiro semestre de faculdade, me apresentei dizendo que sou maranhense de Cururupu. Na hora, Lina arregalou aqueles olhões, ela também era da mesma cidade e pensei ‘me achei’”, conta Claudia Regina Carvalho.
Agora, com olhos marejados de saudade, Claudia, Elisa e Francisca Maria Rodrigues – todas se conheceram no começo do curso e se formaram juntas – relembram a vida de Pedrolina como uma história de luta. De origem humilde, as quatro amigas se conectaram trocando experiências durante as aulas. “Era uma mulher normal, que ficava nervosa para se apresentar na faculdade. Mas ela se fortaleceu como pessoa durante o curso e empoderou todas nós”, conta Claudia.
“A Lina lutava muito e, anos atrás, enxergou um mal que hoje vemos com mais clareza na sociedade: a violência contra a mulher, especialmente a negra. Esse foi o tema do Trabalho de Conclusão de Curso dela. A pesquisa era mais um grito para sociedade e governo ouvirem”, completa.
O TCC foi apresentado no início de 2017. Em setembro de 2019, a vida de Pedrolina foi brutalmente interrompida pelo mesmo mal que pesquisou. “Ela trouxe o tema para a nossa roda de conversa, sempre teve visão social e vocação para transformar a sociedade”, afirma Isabel Clavelin, professora e orientadora do trabalho de Lina.
Tímida e reservada no começo da faculdade, na apresentação final ela já exibia confiança, domínio e mostrava crescimento. Isabel lembra de sentir orgulho do trabalho da então aluna. “Ela era muito esforçada, não queria fazer um trabalho ruim, era dotada de garra e de vida”, lembra.
No dia 1º de setembro de 2019, após uma longa semana de trabalho, Pedrolina aceitou o convite de uma amiga para passar o domingo no clube. Já era quase Primavera, o tempo estava mais quente e oferecia um descanso. Sempre com receio de atrasar ou ser inconveniente, Lina saiu cedo de casa para esperar a amiga em uma parada de ônibus na Asa Sul e, ao descer do coletivo, avisou para outras conhecidas onde estava. Quando a amiga chegou, estranhou Lina não estar no local marcado, mas não conseguiu falar com ela.
Na terça-feira, as amigas já estavam desesperadas e foram atrás de informações. Contactaram a polícia e checaram hospitais. Juntas, pararam no ponto de ônibus em frente à Unieuro e, ao chegar lá, notaram um carro dos bombeiros.
Um homem à paisana falava ao celular e perguntava se podia entrar na mata ao lado da universidade. Ouvindo a conversa, Claudia, Francisca e Elisa decidiram ir também e, com a polícia, encontraram o corpo de Pedrolina.
“Só conhecemos a família dela depois do crime. Ela era tão reservada que só sabíamos do ex-marido e do filho, Matheus”, lamenta Claudia. “Ficamos sabendo o quanto ela cuidava da mãe. Pedimos desculpas por não termos entrado em contato com eles, mas realmente não sabíamos desse lado da vida dela”, diz.
Isabel, que tinha ajudado na caminhada acadêmica de Pedrolina, encontrou a família de Lina na cena do crime. “Meu corpo inteiro tremeu, trabalho há anos com esse tema, já fiz campanhas e colhi dados. Mesmo assim me angustiou e me entristeceu muito”, fala.
Devido à brutalidade do crime, o funeral foi realizado com o caixão fechado. “Não pudemos dar o adeus que queríamos. Foi um choque, estávamos acompanhando os casos de feminícidios deste ano”, afirma Elisa. Dias depois, João Marcos Vassalo da Silva Pereira, 20 anos, responsável por outros estupros se disse culpado pelo assassinato de Pedrolina para os policiais.
Em dezembro, houve uma reviravolta no caso quando outro homem foi indiciado pelo crime. Rômulo Ramos Siqueira, 24 anos, era funcionário do Serviço de Limpeza Urbana (SLU), próximo ao matagal onde a vítima foi encontrada. Segundo ele, a intenção era roubar o celular de Pedrolina. Como ela teria reagido, ele a levou até o matagal para pegar o objeto, a estuprou e a assassinou para tentar encobrir os outros crimes.
Quatro dias depois do feminicídio, ele se demitiu. Rômulo alega que estava sob efeito de cocaína no dia do assassinato. Ele foi indiciado por feminicídio, impossibilidade de defesa da vítima, estupro e roubo. Rômulo e Pedrolina não tinham relação alguma, mas ele foi enquadrado em feminicídio por ter subjugado uma mulher.
Além da saudade, o que fica para as amigas da vítima é indignação, perguntas e sensação de vulnerabilidade. “A Pedrolina ficou invisível no momento da abordagem do crime, ninguém fez nada. Passou carro, gente caminhando, ciclista e ela foi arrastada mesmo lutando”, argumenta Francisca. “Foi muito revoltante saber como ela morreu. Ela era muito trabalhadora e estava indo se divertir”, comenta Claudia.
“A gente tenta buscar uma explicação, mas não tem como. Nada justifica”, diz Elisa. Desde a morte de Pedrolina, as amigas tentam carregar o legado e se organizam como podem para conscientizar sobre a violência contra a mulher. Apesar disso, elas criticam a falta de políticas públicas para garantir a segurança.
Outro ensinamento deixado para o grupo de mulheres é a gentileza de Lina. “Mesmo ganhando muito pouco, ela sempre tinha algo para dar”, lembra Claudia, com admiração. “Quantas vezes ela me amparou. A gente se acolhia e criávamos forças ao falar uma com a outra. Isso nos empoderou muito”, ressalta Elisa.
Apesar das grandes conquistas, existe uma amargura sobre os sonhos que Lina não teve a chance de viver. Formada, ela não chegou a exercer a profissão. Além disso, ela almejava comprar um carro e queria se apaixonar de novo. “Ela sempre falava em viver um grande amor, com um homem que a amasse, admirasse e a respeitasse por quem era”, conta Elisa.
Romântica e apaixonada pela vida, Pedrolina era fã de Paula Fernandes, especialmente pela música Pássaro de Fogo. “Lina gostava de uma cervejinha no fim de semana. Íamos ao bar e trocávamos ideias, ela ria muito. Era divertida e gostava de dançar”, fala Francisca.
Pedrolina, como toda mulher, tinha camadas de complexidades. Por mais que fosse tímida e reservada, também era expansiva e estava sempre pronta para ajudar qualquer pessoa. Talvez não tenha sido o amor que ela planejou, mas Lina viveu uma história especial com as amigas, esse relacionamento é cultivado por elas até hoje.
Seja no jeito saudoso em que as palavras saem, nas fotos guardadas com carinho nos celulares e áudios arquivados com a doce voz dela, Lina ainda é muito amada e inspira mudança para as mulheres: tanto as que ela tocou diretamente quanto as que são sensibilizadas por sua trajetória.
Do começo ao fim, Lina estava cercada do amor de irmãs e sororidade. Mesmo depois da trágica interrupção da vida dela, as amigas se espelham em sua força e caminham juntas. As rodas de conversas nunca mais serão as mesmas sem a mulher cuja cor favorita era o amarelo, como o Sol, mas essa história deve continuar a ser contada pelo legado de Pedrolina.
Isabella Cavalcante
Formada em jornalismo pelo Centro Universitário de Brasília (UniCeub), fez parte da equipe de Vida & Estilo do portal por quase dois anos, editoria na qual abordou, principalmente, temas de comportamento e produziu perfis. Em 2018, foi finalista do Prêmio Netherlands Hanseniasis Relief – Brasil. Atualmente, integra a equipe de Redes Sociais e é pós-graduanda em direitos humanos.
Elas por elas
Em 2019, o Metrópoles criou projeto editorial para dar visibilidade às tragédias provocadas pela violência de gênero. As histórias de todas as vítimas de feminicídio do Distrito Federal foram contadas em perfis escritos por profissionais do sexo feminino (jornalistas, fotógrafas, artistas gráficas e cinegrafistas), com o propósito de aproximar as pessoas da trajetória de vida dessas mulheres.
Até terça-feira (31/12/2019), 16.954 mulheres do DF já procuraram delegacias de polícia para relatar abusos, ameaças e agressões que vêm sofrendo por parte de maridos, companheiros, namorados ou pessoas com quem um dia se relacionaram. Foram registrados ainda 33 feminicídios. Com base em informações da PCDF, apenas uma pequena parte das mulheres que vivenciam situações de violência rompe o silêncio para se proteger.
O Elas por Elas propõe manter em pauta, durante todo o ano, o tema da violência contra a mulher para alertar a população e as autoridades sobre as graves consequências da cultura do machismo que persiste no país.
Desde 1° de janeiro, um contador está em destaque na capa do portal para monitorar e ressaltar os casos de Maria da Penha registrados no DF. Mas nossa maior energia será despendida para humanizar as estatísticas frias, que dão uma dimensão da gravidade do problema, porém não alcançam o poder da empatia, o único capaz de interromper a indiferença diante dos pedidos de socorro de tantas brasileiras.