No dia de sua morte, Jacqueline dos Santos Pereira, 39 anos, estava mais cansada do que o habitual. Desde as 6h30, a gari varria as ruas de Santa Maria com uma vassoura pelo menos dois quilos mais pesada do que estava acostumada. “Ela sentia muita dor nos braços”, lembra a amiga Magda Neiva de Morais, 45 anos, parceira de Jacque, debaixo de sol e chuva, no serviço de limpeza da cidade.
Dona de longos cabelos ondulados, vaidosa e conhecida por manter os lábios sempre pintados, Jacque tinha amanhecido cabisbaixa naquela segunda-feira (06/05/2019). O brilho no olhar e o bom humor presente até mesmo nos momentos de aflição foram substituídos por uma sensação de angústia. À amiga e confidente Magda, contou que o fim de semana tinha sido difícil, pois o filho caçula, de 4 anos, estava doente e ela havia recebido visita inesperada do ex-marido, Maciel Luiz Coutinho da Silva, 41 anos.
Na tarde de sábado (04/05/2019), dois dias antes do assassinato, Maciel foi à casa da antiga companheira e, com comportamento especialmente agressivo, dirigiu-se à Jacqueline com xingamentos e ofensas. “Ele disse que a medida protetiva dela não vigorava mais, porque havia sido derrubada pelo juiz”, lembra Magda. Para dar fim às dúvidas, a vítima e a amiga decidiram perguntar aos policiais que faziam ronda na rua se seria possível um juiz retirar uma medida protetiva sem o conhecimento da mulher ameaçada.
Jacqueline estava com o papel na mochila, retirou-o da bolsa e mostrou aos policiais. Eles confirmaram que a ordem da Justiça continuava válida e se colocaram à disposição caso Maciel voltasse a procurá-la. A gari dobrou a medida protetiva, guardou-a no bolso de trás da calça do uniforme laranja e seguiu para casa. Não se despediu de Magda. Ainda hoje a amiga aguarda pelo “tchau, minha linda, até amanhã”, um ritual das duas no fim do turno de trabalho.
O crime
Jacque morreria cerca de uma hora depois, na casa que havia alugado há 15 dias, no Conjunto P da Quadra Central 1, em Santa Maria. Ela queria recomeçar a vida depois de um casamento de 25 anos com Maciel.
Segundo Rodrigo Têlho, delegado-chefe da 33ª Delegacia de Polícia (Santa Maria), Maciel pulou o portão da casa de Jacqueline por volta das 15h40, logo depois de ela ter chegado. Provavelmente, ele estava à espreita, aguardando a oportunidade de invadir a residência da ex-mulher. Embora válida, a medida protetiva guardada no bolso da calça não lhe serviu de nada.
Maciel a atingiu de frente, com uma faca de uso esportivo, habitualmente utilizada para pesca. Desferiu pelo menos três golpes, que acertaram a barriga da ex-mulher, deixando-a com as vísceras expostas. Nas mãos de Jacqueline, ficaram marcas indicando que ela teria tentado se defender.
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Os vizinhos ouviram os gritos do momento em que a vítima foi surpreendida pelo ex-marido, mas não conseguiram deter Maciel. O assassino pulou o muro novamente e fugiu de moto. Quando o socorro chegou, Jacque estava morta.
Horas depois, com o mandado de prisão de Maciel expedido, o delegado Rodrigo Têlho recebeu a informação de que um homem havia morrido atropelado na BR-040 e que, pela placa da moto abandonada próximo à via, seria o ex-marido de Jacqueline. Ao lado do corpo, foi encontrada uma mochila com algumas mudas de roupas – provavelmente, ele fugiria.
No calor do desespero, Maciel teria descido da moto e se atirado em frente a um ônibus, encerrando com dois cadáveres – o dele e o dela – a tempestuosa história do ex-casal.
O relacionamento
A medida protetiva que acabou manchada de sangue não havia sido a primeira solicitada por Jacqueline. Em 5 de março, após uma briga envolvendo injúria, ameaça e lesão corporal, ela conseguiu uma ordem de afastamento contra Maciel.
Na discussão, a gari pegou uma faca para se proteger do então marido, que não parava de agredi-la. Para ela, apanhar na frente dos filhos, em especial do caçula, de apenas 4 anos, teria sido uma cicatriz profunda demais. A briga os levou à delegacia e foi decisiva para ela encerrar o relacionamento dos dois.
Intimado para depor sobre o caso, Maciel foi encaminhado para um acolhimento psicossocial, também concedido à Jacqueline. Ao longo do tratamento com especialistas em saúde mental, ele teria compreendido: o amor que dizia sentir por ela não era saudável. Enviou para a então esposa um áudio de 10 minutos e 39 segundos, no qual, repetidamente, pediu perdão, reconheceu os sentimentos de posse e admitiu que a desejava longe das amigas e de todas as outras pessoas porque temia que a tirassem dele.
Trechos do áudio de Maciel serão distribuídos ao longo do texto para mostrar como ele estava consciente de todas as suas ações. Ligue o som para escutar a mensagem original.
A mensagem de Maciel aliviou o coração de Jacqueline e no Dia Internacional da Mulher, 8 de março, ela decidiu rasgar a medida protetiva. O casal tentou reatar o relacionamento, mas as marcas psicológicas das agressões distanciaram os dois e Jacque estava cada dia mais cansada de uma rotina que a torturava emocionalmente.
Após jornadas estafantes limpando ruas ao sol, a mulher não tinha sossego na própria casa. A gari confessou a uma amiga que todas as vezes que ia tomar banho o marido observava cada parte do seu corpo. Procurava marcas imaginárias, investigando se ela não havia sido tocada por outro homem. “Ele cheirava a calcinha dela, vistoriava tudo e depois eles se relacionavam sexualmente”, relata a amiga, que preferiu não se identificar.
Uma vez, Jacqueline chegou a tomar remédios para ficar dopada e evitar contato íntimo com Maciel. A estratégia não deu certo e ele a obrigou a transar mesmo grogue. “Ele abusou dela dormindo. Foi a primeira vez que falamos sobre ela sair de casa e ir à delegacia, denunciá-lo”, lembra a amiga.
Em 21 de abril, Jacqueline mudou-se, foi morar de aluguel com os dois filhos menores de idade. O mais velho, de 18 anos, resolveu ficar com o pai. Essa situação a manteve próxima do ex-marido. Após a separação, ela continuou fazendo comida e cuidando das compras da casa onde os dois um dia moraram juntos.
Maciel aparentemente estava lidando bem com a situação, mas logo os familiares souberam que ele hackeou o celular da ex-mulher. Ele também pedia aos filhos para a vigiarem, informando-o todos os passos dela.
Perturbado com a possibilidade de Jacqueline estar em um novo relacionamento, Maciel foi à casa da ex-companheira e pediu a chave do carro dos dois de volta. No dia 26 de abril, Jacqueline voltou à delegacia para fazer um novo boletim de ocorrência sobre o assunto. Segundo consta do depoimento prestado por ela na 33ª DP, ele não a ameaçou, mas a atitude intempestiva a deixou preocupada. Em 27 de abril, Jacque conseguiu a segunda medida protetiva contra o ex.
No sábado anterior ao crime, Maciel apareceu de supetão na casa da ex-mulher e, logo em seguida, ligou para Tatiane, irmã de Jacque, exigindo que ela pegasse o chip do celular hackeado. No relato dela, o ex-cunhado teria dito coisas assim: “Pega o meu chip que está no celular dessa vagabunda porque eu não vou na porta dessa mulher mais. Eu tô no buraco, tô no poço sem fundo. Eu vou fazer uma loucura, vou fazer uma tragédia. Você vai me xingar, nem a minha família nem a sua vai me perdoar. Vai lá agora e fala que ela sabe com quem ela viveu durante 25 anos, ela sabe do que eu sou capaz”.
Nesse momento, Tati se deu conta de que o ex-cunhado era capaz de cometer um crime.
As agressões
O enredo de uma vida a dois marcada por ameaças e xingamentos era conhecido apenas pelos mais próximos. Embora animada, carinhosa e descrita por muitos como “uma mulher guerreira”, Jacqueline era reservada e dividia segredos apenas com pouquíssimas pessoas. Para os demais, sua vida parecia em paz, com um casamento feliz, repleto de amor e companheirismo.
No Facebook, onde costumavam trocar declarações de amor, Jacqueline e Maciel pareciam ser um casal apaixonado pelo Flamengo e pelos três filhos, todos meninos, um de 18 anos, outro de 10 e o menorzinho, de 4 anos de idade. Os nomes foram preservados para não expor as crianças.
Nascida em Paracatu, Minas Gerais, Jacqueline veio para Brasília aos 3 anos, quando a mãe, Lenita dos Santos, carioca criada na Vila Isabel, se mudou para a capital para acompanhar o marido.
Desconfiada, Lenita tinha reservas em relação ao genro desde o início do namoro, na adolescência de Jacqueline. Criados juntos na Quadra 7 de Santa Maria, o casal começou a se envolver quando Jacque tinha 15 anos. Casaram-se alguns anos depois, quando ela estava grávida de dois meses do filho mais velho.
O casal “oficializou” a união três vezes. Primeiramente, em uma cerimônia católica, em seguida em uma igreja evangélica e, há dois anos, em uma renovação de votos. “Nesses 25 anos, eu o vi ser agressivo com ela várias vezes. Em uma delas, ele bateu na cara dela na minha frente, quando estávamos preenchendo a ficha para o nosso emprego”, relata Lenita, 58 anos, que também trabalha como gari.
De acordo com a mãe da vítima, uma vizinha de Jacqueline a procurou há muitos anos para avisá-la que a filha era maltratada. Na época, ela contou que Maciel chutava a barriga de Jacque durante a gravidez e a fazia dormir do lado de fora de casa. Lenita afirma que alertou a filha sobre o temperamento doentio do genro. “Parece que ela está chegando, que ela está pertinho de mim”, suspira a mãe, logo após expressar um misto de raiva e de culpa por não ter conseguido desfazer a relação que resultou na morte da filha.
Um mês antes de ser assassinada, Jacqueline pediu à mãe que cuidasse dos filhos caso algo acontecesse com ela. Atualmente, os dois menores moram com o irmão mais velho, de 18 anos, na casa onde viveram em família. O jovem trabalha em uma barbearia, no entanto, a família e os amigos de Jacque dão suporte financeiro, ajudando com os gastos da residência.
Viver só
Das mãos de Jacqueline saíam um pudim de milho dos deuses e uma lasanha maravilhosa. Todos os aniversários de dona Lenita dos Santos eram celebrados com uma festa surpresa preparada pela filha. A mãe e os amigos mais próximos costumavam ganhar um bolo confeitado por ela quando completavam anos.
As horas livres de Jacque eram dedicadas aos filhos, com quem costumava ir ao cinema, a parques e clubes. Piscina com o caçula era um dos passeios favoritos dela, fã número um da cantora Roberta Miranda e do pagodeiro Péricles. Nos últimos dias, cantarolava a todo instante os versos de Lençol Dobrado, sucesso da dupla sertaneja João Gustavo & Murilo.
Em 2 de julho, Jacqueline completaria 40 anos. O mês também seria marcado por uma reviravolta em sua vida. Ela havia dito a amigos e familiares que pretendia tirar férias para dar um grande passo em busca de seu maior sonho: se tornar enfermeira.
Saber que Jacqueline estava encontrando coragem para realizar um desejo antigo machuca ainda mais a amiga Magda. Triste, ela mostrou à reportagem o último post publicado por Jacque em seu perfil no Facebook.
Em 24 de abril, Jacqueline compartilhou um vídeo intitulado “Aprenda a viver sozinha”, no qual Anahy D’Amico, psicóloga do programa Casos de Família, do SBT, dá um dos seus famosos “pisões” – conselhos em tom de bronca. No trecho, a terapeuta fala sobre a importância de toda mulher ter independência emocional e saber viver só.
“Nós não precisamos de proteção, nós precisamos de respeito. Nós precisamos de gente que entenda: nós temos o direito de ser o que a gente quer”, dispara a psicóloga televisiva.
Jacqueline tomou para si o recado e, antes de ser assassinada, foi dona de sua própria vida por 15 dias.
Gabriela de Almeida
Formada em Jornalismo pelo UniCeub, Gabriela de Almeida tem especialização em Políticas Públicas em Gênero e Raça pela Universidade de Brasília e atualmente é mestranda em Direitos Humanos e Cidadania na UnB, onde pesquisa fake news, violência e democracia. Sua carreira inclui passagens pelo jornal Correio Braziliense, revista Veja Brasília e portal Metrópoles, veículo no qual atuou como subeditora de cultura e gastronomia. Como assessora de imprensa esteve na divulgação do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, Festival Favela Sounds e Latinidades, o maior festival de mulheres negras da América Latina.
Elas por elas
Neste 2019, o Metrópoles inicia um projeto editorial para dar visibilidade às tragédias provocadas pela violência de gênero. As histórias de todas as vítimas de feminicídio do Distrito Federal serão contadas em perfis escritos por profissionais do sexo feminino (jornalistas, fotógrafas, artistas gráficas e cinegrafistas), com o propósito de aproximar as pessoas da trajetória de vida dessas mulheres.
Até sexta-feira (07/06/2019), 10.906 mulheres do DF já procuraram delegacias de polícia para relatar abusos, ameaças e agressões que vêm sofrendo por parte de maridos, companheiros, namorados ou pessoas com quem um dia se relacionaram. Já foram registrados 19 feminicídios. Com base em informações da PCDF, apenas uma pequena parte das mulheres que vivenciam situações de violência rompe o silêncio para se proteger.
O Elas por Elas propõe manter em pauta, durante todo o ano, o tema da violência contra a mulher para alertar a população e as autoridades sobre as graves consequências da cultura do machismo que persiste no país.
Desde 1° de janeiro, um contador está em destaque na capa do portal para monitorar e ressaltar os casos de Maria da Penha registrados no DF. Mas nossa maior energia será despendida para humanizar as estatísticas frias, que dão uma dimensão da gravidade do problema, porém não alcançam o poder da empatia, o único capaz de interromper a indiferença diante dos pedidos de socorro de tantas brasileiras.