Uma jornada pela crise econômica a bordo do Uber
Nos últimos cinco meses, o Metrópoles acompanhou a rotina de motoristas e usuários do aplicativo que se tornou símbolo da era marcada pela informalidade, uma das consequências da recessão no país
A crise econômica, que, nos últimos três anos, arrastou o Brasil para a pior recessão de sua recente história, afetou drasticamente o mercado de trabalho. De profissionais acostumados com cargos de chefia e salários altos a operários, milhares de pessoas perderam colocação e renda.
Empresa multinacional norte-americana, a Uber desembarcou no país em 2014, justamente quando começava o processo de encolhimento dos indicadores econômicos. No mesmo ano, estourou o maior escândalo de corrupção já descoberto no Brasil: em março, a Polícia Federal saía às ruas para cumprir a primeira fase da Operação Lava Jato.
O cenário de instabilidade se multiplicou pelas dezenas de etapas da investigação e o país foi à lona. Em três anos, o desemprego dobrou. Passou de 7 milhões, em 2014, para 13,5 milhões, em junho de 2017.
Durante oito trimestres seguidos, o Produto Interno Bruto (PIB), que soma todos os bens e serviços produzidos no país, registrou queda. Somente no começo deste ano, o índice voltou a crescer, em 1%.
“Se o PIB tiver forte recuperação no segundo semestre, podemos esperar um impacto positivo no mercado de trabalho a partir do fim de 2017”, disse o economista André Nassif, professor dos MBAs da Fundação Getulio Vargas (FGV).
Com milhares de pessoas desempregadas e precisando complementar a renda, o Uber tornou-se uma alternativa. Muitas vezes, a única.
Evolução do desemprego
Número de desempregados (em milhões)
Renda média do brasileiro
(Em R$)
O Metrópoles inicia, a partir de agora, uma jornada pela recessão econômica do Brasil nos últimos três anos. Período em que o Uber cresceu no país e virou símbolo de uma era marcada pela informalidade.
Atrás do volante, doutores, mestres, artistas, advogados, engenheiros, estudantes, servidores públicos e aposentados enxergaram no modelo de negócio criado pela empresa norte-americana uma alternativa para o pior momento vivido pelos brasileiros desde a “Grande Depressão”, em 1929.
Dados oficiais apontam que há em torno de 50 mil motoristas de Uber no país. Os trabalhadores falam em 100 mil. Porém, as informações precisas são mantidas em sigilo porque, desde que aportou no Brasil, o aplicativo tem sido alvo de questionamentos sobre sua legitimidade para operar o serviço de transporte de passageiros.
Uber em alta*
Quantidade de motoristas parceiros
Usuários
Quantidade de pessoas que baixaram o app até a data indicada
Mesmo levando-se em conta a estimativa de 100 mil condutores, o grupo é um traço de ocupados diante da massa de desempregados no país. Ainda assim, a atividade caminha lado a lado com a trajetória de encolhimento da economia. E ajuda a ilustrar as consequências dessa crise no dia a dia do cidadão.
Seja como motorista ou usuário do Uber, milhões de brasileiros foram impactados pelo serviço. Para uns, uma opção de sustento. Para outros, um meio de transporte.
De janeiro a maio deste ano, o Metrópoles percorreu 9 mil quilômetros e ouviu a história de pelo menos 50 parceiros do aplicativo em Brasília, no Rio de Janeiro, em São Paulo e em Belém. Entre eles, Fernando “Monstrinho” ou “Montinho”, que viveu tempos de bonança e sucesso com o grupo musical Raça Negra, e hoje complementa a renda dirigindo para o Uber em São Paulo.
O repórter Diego Ponce de Leon passou todo o mês de abril como motorista da plataforma na capital do país (confira aqui um relato da experiência vivida pelo jornalista). Desde tirar a habilitação específica para atuar no serviço a jornadas exaustivas, o jornalista experimentou o peso da crise no contexto do cotidiano de quem encontrou no aplicativo uma fonte de renda.
Foram mais de 100 viagens. De um lado, a reportagem colheu relatos de dificuldades e superação dos motoristas. Do outro, testemunhou desabafos de passageiros que, em sua maioria, compartilham os mesmos dissabores de uma economia em frangalhos.
Independentemente da condição social ou da formação de quem está ao volante, a ordem é trabalhar. Até o corpo aguentar. Enquanto a crise durar.
Cristo Redentor de braços abertos para o aplicativo
A primeira cidade a utilizar o Uber como meio de transporte foi o Rio de Janeiro. O aplicativo chegou à capital carioca em 2014, ano de Copa do Mundo.
Com um perfil de negócio agressivo, o serviço atraiu simpatizantes ao oferecer transporte particular mais barato, rápido e confortável.
Embora a Uber mantenha em sigilo os números de parceiros de cada localidade, os condutores estimam cerca 20 mil cariocas cadastrados no aplicativo. Em três anos de existência, o número já se aproxima dos 33 mil permissionários de táxi em circulação pela capital.
O Rio de Janeiro passa por uma crise sem precedentes. Diante do estado de calamidade decretado pelo governo local, até mesmo servidores públicos enxergaram no Uber uma chance de diminuir os efeitos do arrocho salarial.
O estado tem 461.027 servidores, entre ativos, inativos e pensionistas. Neste mês de agosto, 216.127 não haviam recebido ainda o salário de junho, uma dívida de R$ 609,8 milhões. Os valores estão sendo parcelados em até quatro vezes.
A situação é dramática. Às vezes, de tirar o juízo mesmo de quem é preparado para lidar com transtornos mentais. Até 2016, Salomão Dias, 23 anos, trabalhava na área administrativa do Hospital Psiquiátrico do Rio de Janeiro. Ficou exatos sete meses sem receber salário. Só conseguiu pagar as contas quando passou a fazer hora extra como motorista de Uber.
“Até agora, não
me pagaram nada. Entrei na Justiça e espero receber meu salário”
Salomão Dias, 23 anos
O arrastão na economia levou consigo brasileiros como Dias. Para reduzir os custos do aluguel, sua irmã passou a morar na mesma casa que ele divide com a esposa e a filha de 2 anos.
Depois que virou motorista de Uber, a rotina do técnico administrativo ficou bem mais pesada. “Levanto às 5h. Moro na Zona Norte, mas prefiro as corridas da Zona Sul. É mais seguro. Gasto uns 50 minutos para chegar até lá e aguardo os passageiros. Assim, consigo tirar entre R$ 200 e R$ 300 por dia”, estimou. O trabalho informal garantiu o sustento da casa, mas roubou de Dias tempo para viver.
A recessão também esvaziou o bolso do engenheiro civil José Luiz Menezes Motta, 59 anos. Dos contratos que tinha em sua empresa, 90% eram firmados com os governos local e federal. Motta perdeu todos e viu sua renda despencar.
O engenheiro foi obrigado a deixar uma das áreas mais nobres do Rio, a Barra da Tijuca, onde o metro quadrado custa em média R$ 8,5 mil. Mudou-se para a Lapa e seu novo endereço, agora, é São João do Meriti, onde paga-se R$ 3 mil pelo metro quadrado. Ele mora de aluguel na cidade da Baixada Fluminense.
Comecei a trabalhar como parceiro da Uber para sobreviver. A intenção era ficar três ou quatro meses até o mercado melhorar, mas não melhorou. Não abriram postos de trabalho.
— José Luiz Motta, engenheiro, pós-graduado em terraplenagem e infraestrutura urbana
Toda a sua formação profissional não lhe garante mais do que “bicos”. “Minha renda principal é a de motorista”, garantiu Motta.
Personal trainer, pós-graduado, Paulo Fernandes Gomes Júnior, 37 anos, entrou na Uber em 2015. A intenção inicial era ter um dinheiro a mais para viajar com a esposa. Mas um ano depois, o número de horas-aula caiu pela metade e a renda da mulher, funcionária pública, também encolheu.
Ela foi atingida pelos atrasos nos salários e perdeu uma gratificação.
Então, o que antes era para o lazer, agora garante a manutenção do nosso padrão de vida.
— Paulo Fernandes
A situação caótica no Rio empurrou os policiais militares para a informalidade. Em março, quando o Metrópoles esteve na capital carioca, eles reclamaram que há dois meses não recebiam salário. “Meu 13º ainda não caiu na conta. Tenho um filho de 4 anos para criar, escola para pagar, então, o Uber é uma alternativa”, disse um militar, que mora em Coelho da Rocha, distrito de São João do Meriti. Outros quatro PMs estavam na mesma situação.
O governo do estado informou ter pagado os salários dos servidores das áreas de segurança e educação, mas o 13º ainda continua pendente. Apenas pensionistas e aposentados, que ganham até R$ 3,2 mil brutos, receberam o benefício.
A capital na onda do Uber
Enquanto Wanderson Cleyton Ferreira, 36 anos, dirigia o carro para atender mais um passageiro, contou como abriu o leque de suas atividades profissionais. Concursado desde 2011 pela Secretaria de Saúde, ele é enfermeiro de uma das unidades da rede pública do DF. Mas, em outubro de 2016, incluiu a função de motorista em sua rotina. De dia, socorre pacientes. De noite, cuida de suas finanças abaladas como a de tantos outros brasileiros.
Quando soube que a esposa estava grávida, a notícia foi recebida com alegria, mas também veio uma dose de preocupação. A gestação, certamente, influenciaria no orçamento familiar mensal, calculado em R$ 2 mil apenas para cobrir as despesas básicas.
“Geralmente, fico na rua até as 23h. Aos sábados, estico um pouco mais”
Wanderson Ferreira
A situação chegou ao limite quando a companheira de Wanderson sofreu uma trombose e foi proibida de trabalhar. Diante das dificuldades, em vez de sair do hospital onde trabalha e pegar o caminho de casa, o enfermeiro, morador de Samambaia, começa a sua segunda jornada em busca de passageiros.
O trabalho noturno complementa a renda de Wanderson em até R$ 2 mil por mês.
Desemprego em alta
A capital do país tem, hoje, um contingente de 329 mil desempregados, segundo dados de junho da Companhia de Planejamento do Distrito Federal (Codeplan). A taxa de pessoas sem ocupação é de 19,9%, muito acima dos 11,7% registrados no final de 2014, quando o Uber passou a funcionar em Brasília.
O início das atividades da empresa norte-americana no DF foi marcado pela forte pressão dos taxistas. O imbróglio se arrastou por meses e gerou vários episódios de agressão e detenções envolvendo as duas categorias, principalmente em lugares concorridos, como o Aeroporto Internacional Juscelino Kubitschek.
Em junho de 2016, a Câmara Legislativa aprovou projeto que autoriza o funcionamento de aplicativos do transporte particular no DF. Mas a regulamentação só veio um ano depois, em junho de 2017, quando o governo assinou decreto criando normas, como a cobrança de uma tarifa dos usuários, que será repassada para o Fundo do Transporte Público Coletivo.
Atalhos para driblar a crise
Na planilha de casa, os brasileiros tiveram de refazer os cálculos, enxugar e cortar gastos, reduzir os passeios, tudo para fechar o mês sem ficar no vermelho. Hoje, 57,1% das famílias estão com as contas atrasadas, segundo Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor (Peic), apurada mensalmente pela Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC).
“As pessoas, quando perdem o emprego, começam a ser seletivas no seu consumo. Uma mãe de família que ia ao salão fazer as unhas não vai porque tem que de priorizar a escola do filho. Natural, mas o comportamento afeta o setor de serviços, que representa mais da metade da economia brasileira”, disse Alexandre Espírito Santo, professor de finanças da Ibmec, uma instituição de ensino superior.
Só no DF, por exemplo, 2.562 lojas fecharam as portas em 2016. Ou seja, 17% a mais que em 2015.
As voltas que a vida dá
Casados há sete anos, Jéssica Lorrane Soares, 24 anos, e Rodrigo Teodoro Sampaio, 27, juntaram suas economias e bancaram um sonho: abriram um restaurante em novembro de 2015. O negócio prosperou e, logo, começaram a prestar serviços na área de alimentação para grandes eventos. Foi em uma dessas ocasiões que a empresa desandou.
“Fomos contratados, entregamos o serviço, mas não recebemos. Tivemos um grande prejuízo e fechamos as portas”, relembrou Jéssica.
“Respeitamos o nosso corpo. Se o cansaço bater, paramos por ali mesmo. No dia seguinte, a gente recupera (a meta)” Jéssica Soares
Felipe Menezes/Metrópoles
Em uma dessas voltas que a vida dá, marido e mulher seguiram outro rumo. Desde setembro de 2016, para sobreviver, circulam pelas ruas do DF como motoristas de Uber. E vivem integralmente da renda gerada pelo aplicativo. O casal encara 12 horas por dia de trabalho, na busca da meta diária de R$ 250 cada.
A atividade rende episódios inusitados. “Eu já tive que levantar um médico de tão bêbado, ajudá-lo a entrar no carro e, depois, em casa”, contou Rodrigo. Jéssica lembrou com desconforto de uma das situações que enfrentou: “Um homem passou a mão na minha perna. Quando ensaiou repetir o gesto, eu disse que quebraria seus dentes. Ficou quietinho.”
Com a grana da Uber, o casal mantém o apartamento de um quarto onde vive em Águas Claras com duas cachorrinhas. E ambos se mostram orgulhosos das contas em dia. “Sonhos? Construiremos novos. Até lá, dirigimos”, decretou Jéssica.
Corrida para o primeiro emprego
Em outros tempos, recém-formados da Universidade de Brasília (UnB), uma das mais prestigiadas instituições de ensino superior públicas do país, não costumavam ter dificuldade para se colocar no mercado de trabalho. A crise, porém, distanciou os novos profissionais do primeiro emprego.
Murilo de Abreu, 26 anos, formou-se em Audiovisual pela UnB. A profissão que escolheu virou um hobby. Ele mantém uma pequena produtora de vídeo que lhe dá mais despesas do que lucros. É aí que entra o reforço do Uber.
A cada seis horas, ele descola R$ 100, já descontando os gastos com gasolina. “Pode ser uma boa opção para quem está saindo da faculdade e não acha emprego”, disse.
Enquanto Murilo corre atrás de um aditivo no salário em início de carreira, Maria Alice Ferraz, 60 anos, complementa a sua aposentadoria, de R$ 2 mil. Advogada, mestre em Direito, a carioca veio para Brasília em 2014 para fugir da violência. Na capital do país, passa de 12 a 15 horas a bordo do Uber. E não costuma voltar para casa sem garantir a meta diária de R$ 150.
Dididiê, dididiêê…
Os números da maior cidade do país e da América Latina são superlativos. São Paulo tem 12 milhões de habitantes; 7 milhões de carros emplacados; e o contingente de desempregados já passa de 2 milhões (dados do Dieese).
Pelas ruas da cidade que nunca desliga, circulam 15 mil ônibus, 1,3 mil linhas de coletivos e 8 milhões de passageiros. Já são 38 mil concessões de táxis, segundo a prefeitura da cidade, e 50 mil carros cadastrados em pelo menos quatro aplicativos de transporte particular – Cabify, 99Pop, EasyGo e Uber.
No universo de paulistanos que encaram o trânsito pesado para tirar o sustento ou complementar a renda tem até gente famosa.
A crise não poupou ninguém. Com menos dinheiro em circulação, a primeira linha de corte é o entretenimento. E como o show tem de continuar, o percussionista do grupo Raça Negra, Fernando Alves de Lima, o “Monstrinho” — ou “Montinho”, na nova fase gospel –, resolveu buscar uma renda extra.
Esperei o Uber se regularizar em São Paulo e depois passei a dirigir para o aplicativo
— Fernando Lima
Montinho é um dos antigos integrantes do grupo, que tem mais de três décadas de estrada e 30 milhões de discos vendidos na bagagem.
Em passagem por Brasília, por conta de uma apresentação do Raça Negra no aniversário da cidade (21 de abril), Fernando conversou com a reportagem. Pela primeira vez dirigiu na capital do país. E topou dar uma canja de seu trampo como motorista.
Apesar de se queixar do valor baixo pago pelo quilômetro rodado e da violência nas ruas de São Paulo, o músico não abre mão da renda extra. E coleciona boas histórias. “Há passageiros que me reconhecem, outros descobrem no meio da viagem… Você não tem ideia do tanto de gente que sai do carro cantando ‘dididiê, dididiêê’”, divertiu-se Montinho.
O mundo artístico tem outros personagens conhecidos do grande público circulando pelas ruas de outras cidades. Bruno Miranda, o Borat, personagem que faz sucesso por suas aparições de colant e bumbum de fora no programa “Amor & Sexo”, é um desses exemplos.
O ator chegou a levar ovadas de taxistas no Rio de Janeiro. Desencorajado diante da hostilidade, Borat largou a atividade e focou na carreira artística. Com salários atrasados, Felipe Moreira, primeiro bailarino do Theatro Municipal, também virou motorista de Uber na capital carioca.
Mas a maioria dos condutores do aplicativo é anônima. Apesar da concorrência forte, em São Paulo, eles conseguem tirar entre R$ 200 e R$ 300 por dia ao volante. A carga de trabalho, como no resto do país, é insana. Encaram maratona diária de 10 horas em média.
Alexandre Donato, 47 anos, passa 12 horas no Uber e faz uma média de 25 viagens por dia. “Gosto de dirigir por São Paulo”, admitiu. Por 15 anos, ele trabalhou em uma empresa que transporta material siderúrgico e autopeças, mas agora ficou desempregado.
A indústria, como a de siderurgia e autopeças, ramos onde Donato atuava, é dos setores mais atingidos pelo recuo dos indicadores econômicos. As montadoras, por exemplo, que empregavam 156,9 mil em janeiro de 2014, fecharam 2016 com 121,2 mil funcionários, uma perda de mais de 30 mil vagas.
Escala recente em Belém
O ponto de partida da Uber em uma das últimas capitais brasileiras a aderir ao serviço, Belém (PA), se deu em fevereiro deste ano. Um mês depois, quando o Metrópoles esteve na cidade, 500 condutores circulavam pelas ruas do município de 1,4 milhão de habitantes. A espera por uma corrida no aeroporto chegava a 17 minutos, em um dia útil.
A escassez de motoristas tem suas vantagens para os profissionais que encontraram no aplicativo uma fonte de renda. Jackson Silva, 38 anos, trabalha 10 horas por dia para faturar R$ 2 mil por semana.
Dispensado depois de 10 anos empregado em uma empresa de transporte de cargas, ele enfrenta o novo desafio com entusiasmo.
“Fiquei preocupado após a minha demissão. Mas apareceu o Uber e encarei de frente” Jackson Silva
A única renda da família vem de Jackson. Dependem dele a mãe, a esposa e as filhas adolescentes, de 14 e 17 anos. O simpático motorista, que coleciona avaliações positivas dos usuários do Uber, mora no bairro Satélite, um dos mais modestos da capital paraense: “Minha alegria é batalhar por minhas filhas para que elas tenham o que eu não tive. Acordo todos os dias e trabalho o quanto for preciso.”
Com o mercado cada vez mais restrito, o professor de matemática Arão Lisboa, 35 anos, perdeu metade de sua renda. Uma das escolas onde dava aulas fechou turmas por falta de alunos. “Nunca tinha sentido uma crise tão forte”, lamentou. O alívio (R$ 1,5 mil por semana) veio com a chegada da Uber.
Alternativa e mobilidade urbana
Sem um serviço de transporte público eficaz e com o número de licenças públicas de táxis limitado, o Uber teve um boom no país nos últimos três anos. A empresa multinacional admite que o número de usuários do aplicativo passou de 1 milhão, em janeiro de 2016, para 13 milhões, em abril deste ano. No mesmo período, subiu de cinco para 51 o total de municípios atendidos pelo serviço. Agora, são mais de 60 cidades.
Em um movimento inverso, o faturamento dos parceiros caiu. No Distrito Federal, por exemplo, quando a Uber começou suas atividades, era possível ter uma renda mensal de R$ 6 mil, já com os descontos da empresa. Hoje, os motoristas relatam ganho médio de R$ 2,5 mil. No Rio, acumulam de R$ 4 mil a R$ 5 mil; em São Paulo e Belém, um pouco mais, R$ 6 mil.
A entrada dos aplicativos no mercado iniciou uma guerra constante entre taxistas e motoristas de Uber nas capitais.
Segundo pesquisa da Confederação Nacional do Transporte (CNT), em 2015, 95% dos permissionários identificaram uma queda na demanda por táxis após a chegada do serviço. E 69% disseram que o aplicativo garfou parte dos seus passageiros.
Os taxistas ainda são importantes para a movimentação de passageiros nas cidades. A Uber não atende em várias regiões. Além disso, nem todo mundo tem smartphone. São serviços que se complementam.
— diretor-executivo da CNT, Bruno Batista
Mas a discussão em torno do serviço ainda é grande. A principal delas está relacionada à falta de vínculo empregatício de parceiros dos aplicativos. A indefinição chegou aos tribunais. As sentenças, até agora, têm sido divergentes e ainda não há jurisprudência em torno do tema.
Ex-diretor do Banco Central, o consultor econômico Carlos Eduardo Freitas diz que o serviço não tirou o país da recessão, mas trouxe novas oportunidades de empreendedorismo. “Quebrou também a escravidão estabelecida com os donos de licenças dos táxis”, assinala.
Segundo a Uber, seus parceiros são considerados autônomos e livres para exercer as atividades da forma que melhor lhes convier.
Somos uma plataforma inclusiva, que permite às pessoas encontrarem uma maneira digna e acessível de gerar renda, independentemente de gênero, classe social, econômica ou idade.
— posicionou-se a empresa, por meio de nota
O debate também chegou ao Congresso Nacional. A Câmara dos Deputados aprovou, este ano, o Projeto de Lei nº 5.587/16, que trata da regulamentação de serviços de transporte remunerado individual por meio dos aplicativos. O texto exige autorização das prefeituras para que o serviço funcione nos municípios. A mesma regra vale para os táxis. A matéria aguarda aprovação do Senado Federal.
Enquanto magistrados, políticos, governantes e especialistas debatem em seus gabinetes as regras que orientam esse tipo de transporte alternativo, nas ruas a crise não espera. Mesmo aos solavancos, motoristas e passageiros criam, eles próprios, a dinâmica do serviço que hoje é o meio do caminho entre um país em colapso e um Brasil que reencontre a direção do crescimento.
Eu, motorista
Passava da 1h da manhã, eu estava em Ceilândia. Telefone toca. Passageiro pedindo carro já no Sol Nascente, considerada uma das maiores favelas da América Latina. Ali, rola toque de recolher. Atendo? Atendi. Era Davi, que visitava a namorada, moradora da região, e que voltava para casa, em Taguatinga. “Tive de chamar três vezes até consegui um carro que aceitasse a corrida. Ninguém entra aqui”.
Passava das 3h da madrugada. Lago Sul, uma das maiores rendas per capitas da cidade. Telefone toca. Atendo? Atendi. Eram Luíza e Clara, que saíam de uma festa. “Amiga, tô louca. Fumei muito. Você transou com ele, afinal?”. “Sim. Tive de adiar aquela história de ficar só com mulher. Deixa pra depois”. Elas riem. No carro, passam mal.
Estas são duas das muitas histórias que colecionei como motorista da Uber pelas ruas de Brasília. E foram mais de 100. Passageiros de todas as raças, cores, classes, orientações, personalidades. Pagamentos em dinheiro e no cartão. Balinha e água. Bêbados, sóbrios, uma freira, duas prostitutas, executivos, donas de casa, idosos, adolescentes.
Na minha primeira viagem como motorista, não ganhei um centavo. Pelo contrário. Amarguei um prejuízo de R$ 47. Busquei uma senhora, uma jovem e uma criança no Hospital de Base, a maior unidade de saúde do Distrito Federal. Pediram o carro, fui bipado, pagamento seria em dinheiro.
Depois de 12 horas de espera, e de um atendimento de 15 minutos, elas voltavam para casa. No fim da viagem, em uma ruela de Nova Colina, Sobradinho, a senhora me informou que não poderia arcar com a viagem. Tudo bem. Estava apenas começando. Teria 30 dias para repor.
Durante um mês, eu encarei uma rotina similar à dos motoristas cadastrados no Distrito Federal. A começar pela mudança na Carteira Nacional de Habilitação (CNH), que precisa trazer a observação EAR (Exerce Atividade Remunerada) para o candidato ser autorizado pelo aplicativo.
A alteração implica no pagamento de R$ 310 e em uma nova bateria de exames psicotécnicos. Uma vez aprovado pelo Departamento de Trânsito (Detran), é preciso ser cadastrado pela Uber, o que não costuma demorar muito. Toda a burocracia pode ser feita virtualmente.
Os lugares
Aceitei viagens em Planaltina, Taguatinga, Ceilândia, Samambaia, Sobradinho, Nova Colina, Céu Azul, Santa Maria, Águas Claras, Asa Sul, Asa Norte, Cruzeiro, Noroeste, Sudoeste, Guará, Candangolândia, Núcleo Bandeirante, Lago Sul, Lago Norte, Vila Planalto, Octogonal, Sobradinho II, Grande Colorado, Arniqueiras, Park Way.
Algumas dessas regiões encabeçam a lista de criminalidade no DF. Resultado: quase não há condutores de Uber por lá. A consequência imediata disso são os temidos preços dinâmicos, que inflacionam os valores das corridas quando a demanda é maior que a oferta. A Uber, então, paga melhor a quem se deslocar para tais lugares e atende os passageiros. A maioria, ainda assim, não vai.
Há uma contradição social inquestionável nesse cenário: a população de menor renda acaba obrigada a desembolsar mais do que os que vivem melhor. Diariamente, Valparaíso, no Entorno do DF, por exemplo, exibe preço dinâmico para o usuário. No Lago Sul, é quase impossível.
Entre todas as localidades, o Sol Nascente talvez seja a que enfrente a maior dificuldade no acesso ao aplicativo. Os motoristas evitam escancaradamente a região de 80 mil moradores formada por vielas, becos mal iluminados e dominada pelo crime organizado. Atendi três chamadas por lá. Não tive problema algum.
Os passageiros
Fiz exatas 112 viagens em 30 dias como motorista. Uma de minhas passageiras é cadeirante há 15 anos. Dona Etelvina Maria de Souza, 65, trocou o táxi pelo aplicativo por economia e comodidade.
“O motorista do Uber tem muito mais paciência. Vários taxistas já se recusaram a me levar, por conta da cadeira de rodas. Além disso, pagaria o dobro se usasse táxi”, revelou Etelvina. Semanalmente, ela gasta R$ 300 com o aplicativo.
A baiana boa de papo Mônica Leite, 30 anos, me contou que já pegou Uber conduzido até por piloto de avião.
O retorno
Mas, afinal, é possível pagar as contas trabalhando pelos aplicativos de transporte privado? A resposta é: depende das despesas de cada um.
São bastante distintas as necessidades de um solteiro que mora em apartamento próprio em contraste com uma mãe ou um pai de família que sustenta a casa com três filhos, por exemplo.
Algumas questões, no entanto, estão pacificadas. Quem deseja levantar mais de R$ 2 mil livres mensalmente, terá que encarar rotina diária no aplicativo de, pelo menos, oito horas. Trabalho pesado e desgastante, mas que auxilia parte dos 14 milhões de brasileiros sem emprego.