O vermelho-sangue manchou a moldura do porta-retratos que enfeitava o quarto de Maria*, 9 anos, na favela do Jacarezinho, no RJ. O coração com duas fotos de família era cor-de-rosa, no mesmo tom da parede em que estava pendurado e das roupas de cama que acabaram jogadas no chão do apartamento. Esse foi o cenário deixado ali pela ação policial mais letal da história do Rio de Janeiro, em 6 de maio de 2021.
A Operação Exceptis – que significa exceção, em latim – ganhou um nome em português na favela: chacina do Jacarezinho. A ação terminou com 28 mortos – um policial e 27 civis. Um deles chamava-se Omar Pereira da Silva, tinha 21 anos e foi assassinado no quarto de Maria, ao lado da menina. A família dela relatou que Omar, um desconhecido até então, estava desarmado e entrou na casa pedindo socorro.
A Polícia Civil do RJ alega ter atirado para se defender do suposto traficante. O laudo da perícia, porém, concluiu que não houve indícios de troca de tiros no local.
A imagem do quarto infantil ensaguentado e remexido, feita logo após a matança, rodou o mundo. Também foram vistos milhares de vezes os vídeos das ruas banhadas de sangue, enquanto moradores denunciavam a execução de pessoas rendidas e invasão de casas por policiais sem mandado judicial.
“Aquela morte poderia ter acontecido no quarto de qualquer outra criança do Jacarezinho. Não sei o que esperar da geração que está crescendo agora”, disse Leonardo Pimentel, presidente da Associação de Moradores do Jacarezinho
Com a justificativa de combater o aliciamento de jovens pelo tráfico e proteger “os direitos fundamentais de crianças e adolescentes e demais moradores que residem nessas comunidades”, a Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente (DPCA), com o apoio da Coordenadoria de Recursos Especiais (CORE), promoveu tiroteios na comunidade durante mais de nove horas.
O número exato de crianças e adolescentes afetados é desconhecido. Para esses meninos e meninas, 6 de maio será lembrado como o dia em que a barbárie encontrou a infância. Maria, cuja família não quis dar entrevista, mudou de endereço e faz acompanhamento psicológico. Kaíque, 7 anos, ainda perde o sono quando pensa no barulho dos tiros, e Natasha, de 9, lamenta que policiais tenham agredido até o cachorro da família. Gabriel, 12, diz que já se acostumou com o som das armas, enquanto Bruno, que tem 8 anos, enfrenta problemas de ansiedade.
Eles abriram a porta de seus quartos para receber o Metrópoles, dois meses após a manhã de quinta-feira em que acordaram com o barulho de helicópteros e fuzis. São relatos sobre sonhos e a respeito do que não os deixa dormir.
“O dinheiro gasto com a guerra às drogas poderia estar sendo investido em saúde, educação e cultura. Os valores de itens das forças de segurança pública foram obtidos em documentos, como licitações, que são de caráter público, e foram acessadas nos sites das polícias ou no portal de compras do estado do Rio de Janeiro.
É importante sublinhar que os valores apresentados são estimativas que buscam expressar uma ordem de grandeza, e não um valor exato. Por fim, esse comparativo não desconsidera, por exemplo, que um colete balístico serve para o cuidado de um agente de segurança no decorrer de seu trabalho, mas busca realçar a pergunta: se o dinheiro gasto com o aparato bélico fosse usado em políticas sociais, seria necessário gastar tanto com segurança pública?”, LabJaca.
A Associação de Moradores do Jacarezinho, na figura do presidente Leonardo Pimentel, 34 anos, queixa-se de não ter recebido nem mesmo um telefonema de autoridades, como do prefeito ou do governador do RJ, oferecendo ajuda aos moradores afetados pela operação.
“A morte aqui foi normalizada de tal maneira que as crianças estavam vendo os vídeos e fotos do massacre no celular, na rua. A favela não está no mapa do desenvolvimento, da infraestrutura. Só existe chance de mudança pela educação, para que a própria população dê retornos para o Jacarezinho”, afirma Leonardo.
A venda de remédios relacionados à saúde mental aumentou na comunidade após a chacina, como relata a associação. “O que mais abre aqui é farmácia, a venda de remédio quadruplicou. Conheço um menino de 12 anos que leva para a escola a lancheira e um aparelho de medir pressão, por conta do estresse. Me sinto esgotado e cansado”, desabafa o líder comunitário.
A Secretaria Especial da Juventude Carioca (JUVRio), órgão da Prefeitura do Rio, em parceria com a Casa do Menor São Miguel Arcanjo, oferece atendimento psicológico gratuito para 29 jovens do Jacarezinho afetados direta ou indiretamente pela Operação Exceptis.
Os jovens têm entre 14 e 25 anos e foram escolhidos pela Secretaria Municipal de Assistência Social (SMAS), LabJaca e Associação de Moradores do Jacarezinho. Além do atendimento psicológico, os jovens também passaram por uma capacitação em saúde mental oferecida pelo UNICEF e Movimento Saber Lidar (ASEC).
Uma das psicólogas que atuou nesse atendimento é Fabiane Gonçales Almeida, 42 anos, nascida e criada no Jacarezinho. “Como fazer uma criança se sentir amada e protegida, nesse contexto? Esse é o desafio, não desistir delas, chamar as famílias para o acolhimento. A infância é muito curta. Eles só têm até os 12 anos para vivê-la, depois serão para sempre adultos”, observa.
“Exceção”
que virou
rotina
A operação ocorrida em 6 de maio no Jacarezinho desobedeceu uma recomendação do Supremo Tribunal Federal (STF) para suspender incursões policiais em comunidades cariocas enquanto durar o estado de calamidade pública decorrente da pandemia de coronavírus.
As operações deveriam permanecer restritas aos casos excepcionais e deveriam ser informadas e acompanhadas pelo Ministério Público estadual. A decisão foi tomada na Corte por maioria de votos, no julgamento de pedido de tutela provisória incidental apresentado dentro da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 635.
“É uma discussão que envolve não somente as crianças feridas diretamente por arma de fogo, mas as que estão em área de guerra e confronto. Essa insegurança pode resultar em estresse tóxico, quando o sentimento de ameaça é tão constante que o sistema estressor é ativado de forma recorrente e isso pode impactar o desenvolvimento cerebral. As experiências desse período reverberam a vida inteira”, explica Pedro Hartung, advogado e coordenador jurídico do Instituto Alana.
Para evitar esse tipo de trauma e assegurar a integridade física de crianças e adolescentes, a defensoria pública do Rio deu início, em 13 de fevereiro de 2021, à ação civil pública intitulada Vidas e Aulas Perdidas: Crianças, Adolescentes e Escolas na Linha de Tiro nas Periferias do Rio de Janeiro.
“Temos tentado construir demandas coletivas que protejam crianças dessa violência. Nossa ação mostra o impacto das operações desordenadas, que não consideram seus efeitos nas escolas, na vida dos estudantes. Reunimos muitos estudos, documentos, provas periciais que davam conta desse estresse tóxico, pós-traumático, com impacto direto na infância”, relata o defensor público Rodrigo Azambuja, um dos nomes que assinam a ação.
A demanda da defensoria não é que as operações deixem de ocorrer, mas que levem em consideração esses fatores, para minimizar danos aos estudantes. Sugere-se que seja criado um canal de comunicação entre o poder público e a comunidade, para que seja possível evitar a circulação de crianças em determinadas áreas e horários, por exemplo.
“Aqui no RJ, operações ocorrem no horário de grande circulação de pessoas e muito perto de escolas. Parece que escolhem esses horários propositalmente”, observa o defensor.
A defensoria também indica medidas compensatórias, como a criação de um fundo de apoio a essas crianças. A falta de políticas públicas eficientes afeta não só a vida escolar dessas crianças, mas também o acesso ao lazer e à saúde, por exemplo. “Crianças crescem sem poder brincar, sem ir à escola, ao posto de saúde. A escola é o grande direito da criança, mas não podemos esquecer que precisa brincar para se desenvolver. O prejuízo para o desenvolvimento é muito amplo”, destaca Azambuja.
“O Estado, quando age assim, perpetua o ciclo de marginalização. É muito difícil mudar de classe social no Brasil. A educação ainda é uma porta e nem isso estamos oferecendo”
Rodrigo Azambuja, defensor
público
A defensoria chegou a ganhar uma liminar que acatava os pedidos do defensor público, mas a decisão foi suspensa pelo TJRJ. “Pedíamos que os helicópteros não voassem dando rasante nas escolas. O agravo ainda não foi julgado.”
A maior
chacina
da história
do RJ
Dados coletados pelo Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense (Geni-UFF), desde 1989, na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, apontam para a realização de 23 operações policiais com mais de 10 pessoas mortas, sendo a chacina do Jacarezinho a maior entre elas.
A Polícia do Estado do Rio de Janeiro – civil e militar – desde 1998 vem matando em média uma pessoa a cada 10 horas. Desde janeiro de 1998 até março de 2021, foram 20.957 mortos em ações policiais, segundo informações do Instituto de Segurança Pública (ISP).
À época da operação mais recente no Jacarezinho, a Secretaria de Polícia Civil informou à imprensa, por meio de nota, que “a ação foi baseada em informações concretas de inteligência e investigação. Na ocasião, os criminosos reagiram fortemente. Não apenas para fugir, mas com o objetivo de matar”.
Também em nota, assinada por nove ONGs, a coalizão Negra Por Direitos questionou: “Uma pessoa morta dentro do quarto de uma criança de 9 anos protege quais crianças? Quais direitos estão sendo garantidos?”.
“Não há outro nome para o que acontece nas favelas e periferias, o que vivemos é genocídio contra a população negra deste país. Diante dessa realidade de extermínio, seguimos com o mesmo questionamento: quais vidas importam?”, destaca a coalizão.
A Polícia Civil colocou em sigilo por cinco anos o nome de todos os policiais envolvidos na Operação Exceptis. Organizações nacionais e internacionais condenaram a ação e pediram uma investigação sobre os possíveis excessos cometidos. O Grupo de Trabalho de Defesa da Cidadania, coordenado pelo Ministério Público Federal (MPF), pediu que seja feita uma investigação independente sem a PCERJ e com apoio da Polícia Federal.
Em nota, a Secretaria de Estado de Polícia Civil do Rio informou que “as investigações estão em andamento e sendo acompanhadas pelo Ministério Público. O sigilo não cabe aos órgãos competentes, que seguem tendo amplo acesso a todas as informações, de forma a garantir a transparência. A Polícia Civil só se pronunciará no final, evitando qualquer antecipação ou especulação”.
O MPRJ informou, por meio da Assessoria de Imprensa, que “as investigações conduzidas pela força-tarefa prosseguem com avanços que não podem ser comentados no momento para não prejudicar a apuração das circunstâncias das mortes ocorridas na operação do Jacarezinho. As conclusões serão apresentadas apenas ao final das investigações.”