O vira-lata Taffarel e sua dona, Renata, tiveram as vidas cruzadas pela violência doméstica. A jovem de 26 anos vivia essa realidade em casa – o marido, Edson, a agredia com frequência. Os vizinhos já haviam socorrido Renata diversas vezes após tentativas de feminicídio. O cachorro, que também vinha de um lar desestruturado, se viu sem-teto quando o homem que cuidava dele foi preso, enquadrado na Lei Maria da Penha.
Taffarel e Renata Alves dos Santos moravam no bairro Vitória, em São Sebastião. Quando ela viu o cão abandonado, começou a lhe dar comida e ainda aproveitou a aproximação para rebatizá-lo de Amarelo. O vira-lata se apegou à mulher. Por isso, um mês depois, quando ela fez as malas para Morro da Cruz, na mesma região administrativa, o cachorro correu atrás do caminhão de mudança. Ele queria ficar com Renata.
A jovem acolheu Amarelo em seu novo lar. Ali, a relação de carinho entre os dois se fortaleceu. Mas o relacionamento entre Edson dos Santos, 43 anos, e o vira-lata não era bom. O cachorro queria proteger sua dona e, diante da agressividade do homem, latia incessantemente em busca de ajuda quando os ataques aconteciam.
Os familiares relatam histórias chocantes do feminicida. Edson chegou a jogar álcool na mulher e tentou queimá-la. Desesperados, os vizinhos apagaram as chamas com água. Quem ia visitá-la escutava Edson disparar xingamentos e ofensas pesadas contra Renata. “Ele batia nela direto. Usou até tampa de panela de pressão”, revela Silvio Alves dos Santos, tio da vítima. Uma vez, após aparecer com o rosto roxo, a jovem disse que escorregou e bateu na quina de um móvel.
“Minha sobrinha era muito alegre e apegada à família. Sempre nos tratou com muita consideração, pedia bênção toda vez que nos via”, destaca Dinólia Duarte, esposa de Silvio. Segundo a tia da vítima, Renata adorava sair com as amigas para beber e se divertir. Ia cedo e voltava no fim da tarde. Era uma pessoa muito disposta a dar carinho para quem precisasse.
Além de Amarelo, Renata também acolheu na nova residência a mãe, Judite Alves dos Santos. Após ficar viúva, a senhora de 68 anos se sentia muito sozinha. Então, ela gostou da ideia de morar com a filha. Porém, o clima na casa era pesado. “Os dois brigavam bastante. Eu tentava entrar no meio para separar, mas ele dava murros muito fortes nela”, conta a mulher. “Uma vez, peguei Edson enforcando a Renata na cama. Puxei o colarinho do marido dela até ele soltar”, completou.
Em 1° de novembro, Amarelo e Judite viram Renata pedir socorro pela última vez. Naquela sexta-feira, Edson a agrediu brutalmente. A mãe da jovem presenciou tudo. Conforme depoimento de Judite à polícia, o casal estava em um bar e, tão logo retornou para a residência, à noite, começou a discutir. O assassino desferiu socos no rosto e na cabeça de Renata, além de ter enforcado a companheira e batido várias vezes a cabeça dela em uma mesa de mármore.
Na tentativa de defender a filha, Judite acabou sendo atingida pelo genro. “Ele me jogou em cima do mesmo móvel e quase estourou a minha coluna”, revela.
Renata ficou imóvel e caída no chão. Judite tentou reanimá-la, jogou água no rosto da filha, mas a jovem não reagiu. Edson ameaçou a sogra: “Se você me denunciar, te mato também”. Pouco tempo depois, o agressor cochilou e, finalmente, a mulher conseguiu buscar socorro. Amarelo foi também.
Acompanhada do vira-lata, Judite tocou a campainha dos vizinhos atrás de ajuda. No entanto, quando voltaram com algumas pessoas, Renata já estava morta. A família da casa ao lado acionou o Corpo de Bombeiros. Assim que chegaram ao imóvel, os militares encontraram a jovem sem vida. Com sinais de embriaguez, o feminicida relatou à corporação que a esposa havia caído e batido com a cabeça na quina de uma mesa. Mas a equipe do CBMDF não acreditou na versão.
Ao ser levado à 30ª Delegacia de Polícia (São Sebastião), para prestar esclarecimentos, Edson dormiu e, portanto, os agentes não conseguiram colher o depoimento do assassino. “A polícia o pegou em flagrante. Espero que ele continue preso”, disse Judite ao se despedir da filha no cemitério.
O enterro de Renata foi marcado para 5 de novembro. Como queria muito ver a dona pela última vez, o vira-lata entrou no ônibus com a família. Saíram de São Sebastião em direção ao Campo da Esperança, na Asa Sul.
Amarelo passou boa parte do velório grudado ao caixão, enquanto a família prestava as últimas homenagens. O cachorro também pôde participar da cerimônia de despedida – ele foi colocado em cima de Renata para dar uma última lambida na dona, seu jeito de dizer adeus. Chegada a hora do enterro, o cãozinho seguiu o cortejo.
Era o fim da convivência dos dois. Taffarel retornou com a família para a cidade onde sua dona o acolheu, porém não encontrou mais um lar. Os tios de Renata contaram que o vira-lata voltou ao bairro de Vitória, para morar com o antigo dono – o agressor está solto agora.
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Neste perfil, o Metrópoles conta a história de Renata sob a perspectiva de Amarelo. A ilustradora Stephanie Arcas e a roteirista Isabella Almada criaram o curta a partir da apuração da jornalista Jak Spies. O recurso de ter um animal como protagonista é utilizado nas mais diversas artes. Na literatura, personagens caninos sempre estiveram presente — do corajoso e fiel Argos, cão abandonado por Ulisses na Odisséia, de Homero, ao pequeno Totó de O Mágico de Oz, de L. Frank Baum.
Contar uma história do ponto de vista de um cachorro é uma estratégia que permite refletir sobre si mesmo. O puríssimo cocker spaniel Flush, de Virginia Woolf, renunciou aos prazeres de seus longos passeios para ficar ao lado de sua dona, que, por motivos de saúde, pouco saía de seu quarto. Inocente, Flush é quem expõe, analisa e critica os conflitos sociais da sociedade inglesa discutidos no livro. Na literatura brasileira, temos Ulisses, de Clarice Lispector. “Um pouco neurótico” – segundo descrição da autora –, ele é narrador em Quase de Verdade (1978) e também aparece em Um Sopro de Vida (1978), obra póstuma. Fumante, apreciador de uísque e refrigerante, esse cachorro externaliza as dualidades abordadas no exemplar.
Em carta datada de 1937, o escritor Graciliano Ramos relata à sua mulher, D. Heloísa Ramos, a complexidade encontrada para dar voz à famosa cachorrinha Baleia, de Vidas Secas. “Escrevi um conto sobre a morte duma cachorra, um troço difícil como você vê: procurei adivinhar o que se passa na alma duma cachorra. Será que há mesmo alma em cachorro? Não me importo. […] Mas estudar o interior duma cachorra é realmente uma dificuldade quase tão grande como sondar o espírito dum literato alagoano. Referindo-me a animais de dois pés, jogo com as mãos deles, com os ouvidos, com os olhos. Agora é diferente. O mundo exterior revela-se a minha Baleia por intermédio do olfato, e eu sou um bicho de péssimo faro”, pontuou o romancista.
Isabella Almada
Roteirista e videomaker, é formada em audiovisual pela Universidade de Brasília (UnB). Criadora e mediadora do Núcleo de Roteiro, oficina de roteiro audiovisual com turmas semestrais desde 2017. Atuou em agências de publicidade, assessorias de comunicação e na TV NBR. Trabalhou como diretora de fotografia e na direção de diversos curtas-metragens.
Stephanie Arcas
Formada em Design pela Universidade de Brasília (UnB), trabalha nas áreas de ilustração e animação. Colaborou com diversas iniciativas para o fomento da animação no meio acadêmico, tendo dois artigos científicos sobre o assunto publicados em seu nome. Também atuou como designer em Apex-Brasil e Quartinho Direções Artísticas.
Elas por elas
Em 2019, o Metrópoles criou projeto editorial para dar visibilidade às tragédias provocadas pela violência de gênero. As histórias de todas as vítimas de feminicídio do Distrito Federal foram contadas em perfis escritos por profissionais do sexo feminino (jornalistas, fotógrafas, artistas gráficas e cinegrafistas), com o propósito de aproximar as pessoas da trajetória de vida dessas mulheres.
Até terça-feira (31/12/2019), 16.954 mulheres do DF já procuraram delegacias de polícia para relatar abusos, ameaças e agressões que vêm sofrendo por parte de maridos, companheiros, namorados ou pessoas com quem um dia se relacionaram. Foram registrados ainda 33 feminicídios. Com base em informações da PCDF, apenas uma pequena parte das mulheres que vivenciam situações de violência rompe o silêncio para se proteger.
O Elas por Elas propõe manter em pauta, durante todo o ano, o tema da violência contra a mulher para alertar a população e as autoridades sobre as graves consequências da cultura do machismo que persiste no país.
Desde 1° de janeiro, um contador está em destaque na capa do portal para monitorar e ressaltar os casos de Maria da Penha registrados no DF. Mas nossa maior energia será despendida para humanizar as estatísticas frias, que dão uma dimensão da gravidade do problema, porém não alcançam o poder da empatia, o único capaz de interromper a indiferença diante dos pedidos de socorro de tantas brasileiras.