Textos de MIRELLE PINHEIRO E SUZANO ALMEIDA Fotos de DANIEL FERREIRA, MICHAEL MELO E
RAFAELA FELICCIANO (Enviados especiais) 26/03 5:30
O Metrópoles percorreu mais de 10 mil quilômetros para revelar como funciona o esquema criminoso da venda de cópias de liminares pela empresa, que coloca nas estradas ônibus sem condições de rodar e põe em risco a vida de milhares de pessoas
A rotina da família de Jardeli Miranda Nascimento, 24 anos, saiu do prumo no dia 11 de outubro de 2016. Ele, a mulher e a filha de apenas três anos ficaram feridos em um grave acidente na BR-226, durante viagem entre o Maranhão e o Distrito Federal. “Quando o ônibus parou de capotar, fiquei chamando pelo meu marido. Estava encharcada de sangue”, recorda Ana Amélia, 23. O casal até hoje não se recuperou. A mulher ficou com o braço dilacerado e marcas que a seguirão por toda a vida. O homem ainda tenta recuperar o movimento das mãos.
No acidente, 40 pessoas ficaram feridas e duas morreram. Tragédia que poderia ter sido evitada. A Transporte Coletivo Brasil (TCB) ou Transbrasil, empresa que os levava, tem um histórico ostensivo de falcatruas, colecionando acidentes e denúncias gravíssimas de práticas criminosas. Só mantém a autorização da Agência Nacional de Transporte Terrestre (ANTT) para rodar por determinação judicial.
Amparada em liminares concedidas pela Justiça, circula Brasil afora desde 2009, por nove linhas que cruzam o país de Foz do Iguaçu (PR) a São Luís (MA).
As medidas provisórias abriram caminhos para a transportadora multiplicar sua rentabilidade sustentada no crime. O esquema sinuoso é movido pela venda de cópias de autorizações a partir de R$ 1,2 mil. O chamado “kit liminar” permite a veículos que não sejam da empresa percorrer trajetos de longas distâncias, camuflados na figura de arrendatários.
Muitas vezes, ônibus caquéticos, conduzidos por motoristas sem habilitação e expostos a jornadas excessivas ao volante, são colocados para rodar nas estradas brasileiras. No embarque, os prepostos do esquema raramente pedem identificação dos passageiros. Passe livre para o transporte de armas, drogas, menores desacompanhados e também fugitivos da lei. Para os usuários atraídos pelas passagens até 50% mais baratas, a viagem pode se transformar em um verdadeiro inferno.
Após três meses de apuração e quase 10 mil quilômetros percorridos, o Metrópoles revela nesta reportagem como funciona a dinâmica do crime que alcançou e mudou para sempre a vida da família do vendedor Jardeli e de tantas outras. Uma maquiavélica organização que responde também por sonegação de impostos e descumprimento das leis trabalhistas.
Os repórteres fizeram duas viagens em ônibus da transportadora nos trechos Distrito Federal/Teresina (PI) e Osasco (SP)/São Luís (MA). Em Goiânia (GO), descobriram como ocorre a negociação do “kit liminar”, uma pasta verde que inclui toda a papelada necessária para circular por milhares de quilômetros sem serem importunados pelos órgãos de fiscalização.
Pacote completo
Integrantes do esquema vendem a terceiros adesivos para “envelopar” os ônibus, talões de emissão das passagens, etiquetas de bagagem, uniforme e crachás de motoristas, além da inclusão no sistema de rastreamento, medida obrigatória pela legislação. Tudo com o nome e a logomarca da Transbrasil.
A certeza da impunidade faz com que os representantes da empresa não se preocupem em deixar rastros. Assim, o perigo viaja ao lado de quem se arrisca a fazer o percurso. Os números das infrações cometidas pela transportadora provam isso. Acumula 14 mil autuações, segundo dados da Agência Nacional de Transporte Terrestre (ANTT).
A engenharia para terceirizar autorizações precárias de funcionamento surpreende pela sua abrangência e capilaridade. A Transbrasil/TCB não é uma empresa de fundo de quintal. Pelo contrário. Transporta milhares de passageiros. Segundo o cadastro da ANTT, tem 286 ônibus ativos e 1.396 motoristas. Frota reforçada por outras centenas de arrendatários.
Robusta também é a ficha criminal de seu proprietário, Irandir Oliveira de Souza. Atualmente, só em Rondônia, acumula 149 processos das mais diversas naturezas delituosas. Além disso, é alvo de investigação por peculato, falsidade ideológica e formação de quadrilha. Já foi preso, usou tornozeleira eletrônica e hoje cumpre pena em regime aberto.
Nessa reportagem especial, o Metrópoles desvenda a fórmula do combustível que move os tentáculos dessa organização criminosa. Segundo a ANTT, a estrutura montada conta com a participação de milícias formadas por polícias militares, civis e outros agentes públicos.
1ª Parada
A primeira viagem realizada pelo Metrópoles em um ônibus com a marca Transbrasil ocorreu em 3 de fevereiro deste ano. Uma série de fatos incomuns chamaram atenção. Para começar, o ônibus caía aos pedaços e partiu de uma parada improvisada.
Duas passagens foram compradas a R$ 180 cada no terminal de Taguatinga. Valor abaixo dos R$ 240 cobrados na Rodoviária Interestadual de Brasília. O bilhete emitido trazia o nome Zé Maria escrito à caneta. Segundo o vendedor, o ônibus que faria a viagem até Teresina (PI) pertencia a um terceiro, que alugava o veículo para a Transbrasil, prova de que o serviço fora terceirizado pela transportadora.
E, embora o trajeto comprado fosse Brasília (DF)/Teresina (PI), inexplicavelmente, o tíquete registrava São Bernardo do Campo (SP)/Fortaleza (CE).
A saída estava agendada para as 11h, de Taguatinga. Só que no horário previsto, o coletivo não apareceu. Com o atraso de quase uma hora, os passageiros ficaram impacientes. Um homem que se apresentou como Brito Legal, gerente de vendas da Transbrasil, explicou que os usuários deveriam seguir em um carro de passeio até outro local, na QNM 23/25, em Ceilândia, onde estavam outros coletivos da empresa. O que não é praxe nas viagens regulares.
O percurso até o terminal improvisado durou 10 minutos. No caminho, o motorista confidenciou já ter trabalhado por seis dias corridos sem descanso, fazendo viagens de até 30 horas, entre DF e Piauí. A Lei 13.103/2015, que dispõe sobre o exercício da profissão, assegura o repouso mínimo de seis horas consecutivas em alojamento externo ou, se na cabine do leito, com veículo estacionado, a cada 72 horas.
Segundo consulta ao sistema da ANTT, o veículo modelo Mercedes Benz 0400 Paradiso, de 1999, está inativo na frota da Transbrasil. Com pintura desgastada e películas estragadas, não oferecia wi-fi e TV, apesar da sinalização de que os serviços existiam. Do ar-condicionado, vinha um cheiro de mofo e goteiras. Do banheiro, a água escorria para o corredor e molhava os pés das poltronas. Passageiros fumavam sem ser incomodados dentro do veículo.
O ônibus partiu às 12h30. A certeza de que a viagem seria uma via-crúcis de irregularidades surgiu logo na partida. O motorista, que dividia a cabine com o proprietário do coletivo, começou a fazer várias paradas não programadas no itinerário oficial. Uma delas no acostamento da Estrada Parque Indústria e Abastecimento (Epia), para esperar a chegada do segundo motorista que faria a viagem, outra exigência da legislação.
Em Sobradinho, Zé Maria, o dono do veículo, desceu do ônibus, que finalmente pegou a BR-020, para iniciar o percurso de 2,9 mil quilômetros e quase 30 horas de viagem. Foram 12 paradas, a maioria em locais com pouca estrutura, não frequentados pelas transportadoras tradicionais. Próximo à cidade de Rosário (BA), o coletivo quebrou. O guia que recolhe e cobra as passagens foi quem resolveu o problema, com ajuda do motorista. Era noite e o lugar, sinistro.
Em sua 10ª parada, em uma churrascaria no município de Canto do Buriti (PI), a 1.332 km do DF, o fotógrafo do Metrópoles usou uma pequena câmera para fazer registros do veículo. A ação foi notada por um dos passageiros, que ameaçou a reportagem. “O que vocês estão filmando? Gravem isso aqui”, disse ao levantar a camisa e mostrar uma pistola na cintura.
Por conta do perigo, a equipe deixou o ônibus pouco antes de chegar ao destino final, em Lagoa do Piauí, a 40 km de Teresina.
Maranhão
A segunda viagem da equipe do Metrópoles em um coletivo da Transbrasil foi feita entre Osasco (SP) e São Luís (MA). O embarque ocorreu em 12 de fevereiro. Assim como na capital federal, a passagem foi expedida com locais de partida e chegada – Campinas (SP)/ Fortaleza (CE) – diferentes do que fora solicitado na compra. O veículo também pertencia a um terceiro. Desta vez, uma mulher chamada Rosa era a proprietária.
Estranhamente, no Terminal de Osasco, funcionam dois guichês da Transbrasil. Dentro da estação, a passagem era vendida a R$ 506. Do lado de fora, a R$ 350.
Sem saber que estava sendo gravado, um funcionário de nome Anderson explicou que a diferença de preços se dava porque duas empresas diferentes comercializavam os bilhetes. Dentro do terminal, a Transbrasil Rodoviária. Fora dele, a Transbrasil Turismo. Segundo Anderson, embora fossem do mesmo dono, uma tinha ônibus melhores e oferecia mais segurança aos passageiros. A outra utilizava veículos de terceiros e sem garantia. Quase a confissão de um esquema ilegal.
O embarque foi feito na parte externa da rodoviária de Osasco, duas horas depois do horário previsto. O ônibus de dois andares estava quase vazio, era confortável e os passageiros, a exemplo de Brasília, eram embarcados em pontos aleatórios, às vezes, fora de terminais. Foram 13 ao total.
Na cidade de Campinas (SP), mais de 30 pessoas entraram no veículo, atingindo a lotação máxima. Um casal de menores pagou o bilhete dentro do ônibus. Dois irmãos, um menino de oito anos e uma adolescente de 14, viajaram desacompanhados de adultos. O pai dos menores pediu ao motorista que zelasse por eles.
Só desembarcaram depois de 48 horas, na cidade maranhense de Santa Inês, onde uma pessoa os aguardava no terminal. Durante o trajeto, a jovem foi assediada com cantadas e gracejos por um grupo de rapazes. “Esses caras são tudo um bando de peão (sic). Não respeitam nem a criança”, disse o motorista em uma das paradas.
A viagem só foi encerrada por volta das 15h50 do dia 14 de fevereiro, depois de 55 horas.
Em Governador Edison Lobão (MA), o veículo apresentou problemas na correia dentada. De madrugada, no escuro, perto de 1h45, o próprio motorista fez o reparo (confira o vídeo).
2ª Parada
O Metrópoles esteve no dia 21 de fevereiro em Goiânia para reunir provas que confirmassem a existência do “kit liminar”. O ponto de partida foi a rodoviária da capital goiana. Lá, no guichê da empresa, a reportagem conseguiu o contato de um agenciador chamado Alex. Ele levou a equipe até um escritório da Cometa Turismo, que funciona no Setor Norte Ferroviário, em frente a um posto de combustível. Confiando falar com pessoas interessadas em participar do esquema, um homem que se identificou como Pedro explicou os detalhes da fraude. “Você paga para usar o nome da Transbrasil”, resumiu o preposto, que vestia uniforme da transportadora.
De acordo com Pedro, uma vez acertada a parceria, a Transbrasil se compromete a cadastrar o veículo no sistema da ANTT. “Com relação a documentos, você não precisa se preocupar. A empresa te dá. O carro não é preso por estar sem autorização. Pode ser apreendido por pneu careca ou motorista bêbado”, preveniu. “No Brasil inteiro, temos mais de 400 carros, e é muito difícil ter problemas com a fiscalização”, garantiu.
Ele mostrou à reportagem toda a documentação necessária para uma “viagem tranquila”. O material vai reunido em uma pasta verde, batizada de “kit liminar”. O homem alerta, entretanto, que a papelada, em hipótese alguma, pode ser comercializada. O que seria a terceirização de uma já terceirização criminosa.
O representante da Transbrasil explicou que a linha mais solicitada pelos donos dos ônibus é a de São Bernardo do Campo (SP) para Fortaleza (CE), via Foz do Iguaçu (PR): “Ela te dá mais poderes, cobre quase tudo. Mas se você quiser fazer outra rota, é só avisar que providenciamos”.
Prática comum
Na rodoviária de Teresina (PI), o Metrópoles reuniu mais evidências da fraude. Vanessa, atendente de uma agência que vende passagens, disse que é muito fácil colocar um ônibus qualquer para rodar no esquema da Transbrasil, basta que ele tenha, ao menos, ar-condicionado. Ela, inclusive, informou que a empresa estava recrutando veículos para fazer o trajeto Teresina/São Paulo.
Quem compra a documentação pode escolher a linha que vai operar. A peculiaridade é que os itinerários sugeridos e autorizados pela Justiça permitem aos ônibus trafegarem em rotas que cortam os principais destinos dentro do país.
Um veículo que tem linha de São Bernardo do Campo para Fortaleza não necessariamente cumpre o percurso, ou seja, o trajeto completo. Eles costumam atuar em cidades localizadas entre o ponto de partida e o destino final.
Matriz
Em Goiânia, o endereço que consta no cadastro do CNPJ da Transbrasil junto à Receita Federal fica no bairro Marechal Rondon. Mas, no local, uma placa indica que funciona na realidade a Sol Nascente Transporte e Turismo.
Ao lado de uma casa fechada, há uma garagem onde estavam estacionados pelo menos oito ônibus da Transbrasil.
Pirâmides
O gerente de Fiscalização da ANTT, João Paulo de Souza, compara a comercialização de liminares pela Transbrasil ao esquema das famosas pirâmides financeiras.
“A empresa, que tem o CNPJ detentor da liminar, não possui quase veículo algum, mas ocupa o topo do esquema. No segundo nível, estão as agências, com outro CNPJ, mas que ‘agregam’ carros à TCB. Porém, também terceirizam os serviços. Quem está na base é o proletariado. Geralmente, composto por pessoas físicas, que fornecem os ônibus e a força de trabalho para alimentar a pirâmide. Toda a cadeia opera sob uma mesma autorização judicial”, explica.
Veja como funciona a pirâmide:
3ª Parada
A Constituição de 1988 estabeleceu que as empresas de ônibus só podem obter licença para transporte interestadual de passageiros por meio de licitação. Porém, os processos em todo o país nunca ocorreram. Para manter as empresas circulando, a ANTT estabeleceu exigências que deveriam ser cumpridas pelas interessadas no negócio, como idade máxima da frota, condições mínimas de segurança, quitação de seguro e pagamento de multas. Mas a agência só foi criada em 2001. Antes, o órgão responsável por essas permissões era o Departamento Nacional de Estradas de Rodagem (DNER).
Com a brecha aberta a partir da transferência de poderes, algumas companhias apresentaram supostas autorizações do extinto DNER na tentativa de validar seus antigos cadastros na ANTT. Foi usando um desses documentos que a Transbrasil, fundada em 1984, acionou a Justiça depois de ter a papelada reprovada pela agência.
A primeira liminar que permitia à empresa circular pelas estradas do país foi concedida em 12 de maio de 2009 pelo desembargador Daniel Paes Ribeiro, do Tribunal Regional Federal (TRF), em Brasília. Foi o pontapé para outras dezenas de liminares conquistadas pela transportadora. Cada decisão acrescentava mais trechos a serem operados pelos coletivos.
Ao Metrópoles, o gerente de fiscalização da ANTT, João Paulo de Souza, afirmou que a agência não fica alheia às irregularidades praticadas pela Transbrasil. Souza revelou que está em curso uma operação para levantar provas de que a transportadora, assim como outras empresas que operam no mesmo esquema, burla os termos da autorização dada pela Justiça.
“Posso te assegurar que, para manter essa organização criminosa, estão envolvidos milicianos, pessoas ligadas ao tráfico de drogas, armas e agentes públicos. Tenho convicção de que, em breve, teremos desdobramentos sensíveis decorrentes dessa investigação”, destacou.
Derrota no tribunal
Em julho de 2009, a Advocacia-Geral da União (AGU) entrou com uma ação para cassar uma das decisões favoráveis à Transbrasil, emitida pela Justiça Federal de Brasília. No documento, os procuradores alegaram que a empresa cobraria até R$ 5 mil pelo cadastramento de um ônibus clandestino e mais R$ 26 por passageiro transportado, o que seria uma forma de negociar a liminar. O pagamento configuraria a venda do “kit liminar”.
Cinco anos depois, a Justiça acatou o pedido da AGU e reconheceu que a transportadora também adulterava apólices de seguros obrigatórios.
As linhas operadas pela empresa chegaram a ser suspensas pela ANTT. Na batalha travada no tribunal, a Transbrasil entrou com pedido para voltar à atividade, sob a alegação de que não teve responsabilidade na falsificação.
O Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1) reconheceu a adulteração das apólices e afirmou que a suspensão era legítima. O magistrado responsável pelo caso considerou agravante o fato de as empresas operarem com maioria de veículos arrendada e não de frota própria.
Na decisão, o juiz também determinou à Superintendência de Seguros Privados (Susep) – órgão do Ministério da Fazenda responsável por regular o setor – e à Corregedoria-Geral de Justiça de Goiás a apuração da eventual falsificação das apólices.
No entanto, ao recorrer, a empresa obteve outra liminar no TRF1. Como a decisão é provisória, a AGU interpôs recurso e aguarda julgamento pelo tribunal.
O que se percebe é a tentativa das empresas de explorar irregularmente uma linha de transporte rodoviário de passageiros sem ter que se sujeitar às normas técnicas ou de segurança”argumentam os procuradores
Nova vitória na Justiça
Em dezembro de 2016, a Transbrasil obteve nova conquista na Justiça. A ANTT ficou impedida de apreender e autuar a frota da transportadora por falta de ativação na agência. Carros habilitados ou inabilitados no sistema do órgão passaram a ter livre acesso nas barreiras de fiscalização. A decisão é da juíza Liviane Kelly Soares Vasconcelos. Uma espécie de passe livre.
Na justificativa, a magistrada alega que “a fiscalização promovida pela ré (ANTT) está incorrendo em abuso de autoridade e faltando com a verdade (…) está classificando a atuação como transporte irregular de passageiros ou transporte clandestino, sendo que a autora possui autorização judicial para efetuar seu trabalho, bem como é permissionária, desde o extinto DNER”.
Ao tomar conhecimento da decisão proferida por Liviane, Irandir Oliveira de Souza, dono da empresa, comemorou de forma vigorosa e espalhou uma mensagem aos seus funcionários e arrendatários. Ouça o áudio:
Autorização
As regras para a escolha das empresas que operam no transporte interestadual de passageiros mudaram em 2014. Não é mais necessário fazer uma licitação. A ANTT passou a conceder um Termo de Autorização de Serviço Regular (TAR) às interessadas em operar no sistema. Apenas as transportadoras que atendem a requisitos de segurança e qualidade podem receber o TAR. Também é preciso obter a Licença Operacional (LOP), que define os trechos a serem percorridos. Essa é a segunda e última parte do processo.
Entre as exigências necessárias para a emissão do TAR, estão: regularidade jurídica, não ter problemas judiciais trabalhistas ou débitos já julgados com o INSS e regularidade fiscal. A idade máxima de cada veículo deve ser de 10 anos de uso. Como a Transbrasil possui multas a serem pagas, não cumpriu os requisitos para garantir a permissão. Assim, mais uma vez, entrou na Justiça e conseguiu uma antecipação de tutela, obrigando a ANTT a lhe conceder o TAR. A decisão foi publicada em 1º de fevereiro de 2017.
As várias faces da Transbrasil
Parte da frota da empresa não segue qualquer padronagem de cor. Os adesivos são aplicados na lataria de forma aleatória. Confira alguns exemplos:
Sonegação
Pela lei, as empresas são obrigadas a pagar imposto (como o ICMS) sobre cada passagem vendida. O tributo vai para os cofres da cidade em que o bilhete foi emitido. Entretanto, nem sempre isso acontece, configurando sonegação fiscal. A Transbrasil entrou na mira da Delegacia Estadual de Repressão a Crimes Contra a Ordem Tributária, da Polícia Civil de Goiás, por cometer fraudes.
No dia 16/3, o guichê da empresa foi alvo de uma operação conjunta com a ANTT para cumprimento de mandados de busca e apreensão. Documentos e máquinas de débito e crédito foram confiscados. As transportadoras Real Maia, Cidão e Santa Marta também foram devassadas pelos agentes.
De acordo com os dados levantados, algumas empresas chegaram a transportar, em média, 65 mil passageiros no período de 12 meses e não recolheram sequer R$ 100 de ICMS. Prejuízo de R$ 2 milhões aos cofres públicos.
No Distrito Federal, a Transbrasil não tem autorização para iniciar viagens. As liminares que a mantêm circulando autorizam linhas apenas com origem em municípios de São Paulo, Acre e Rondônia. A empresa só pode vender os bilhetes para completar a lotação de ônibus que já estão em viagem. As vendas são feitas na Rodoviária Interestadual de Brasília e no terminal de Taguatinga.
Bilhetes também são comercializados em agências de turismo no Recanto das Emas e em Sobradinho. Em caso de embarque nos estados e no DF, todas as empresas precisam pagar tributos ao governo local e à Receita Federal.
Crime organizado
O gerente de fiscalização da ANTT alerta para outras atividades criminosas supostamente exercidas pela Transbrasil. João Paulo Souza diz que a empresa também opera com viagens fretadas transportando trabalhadores de fazendas para plantações de cana ou empresas de construção civil. Locais em que os trabalhadores seriam mantidos em condições precárias.
“Eles vão aonde ninguém vai. Passam por estradas de terra e pontes para atender essas demandas específicas. Contam com agenciadores, os chamados gatos. Estão estritamente ligados a empreendimentos rurais que exploram o trabalho escravo. Andam sempre armados. Por isso, o transporte clandestino é uma atividade criminosa. Porque pressupõe um aparato de violência e viabiliza outras atividades criminosas”, disse.
Souza conta que já foram registradas denúncias de tortura e até casos de assassinatos. Tudo em nome da manutenção do sistema irregular.
Entre 2015 e 2016, a ANTT contabilizou 482 reclamações contra a Transbrasil/TCB. As denúncias vão desde a não devolução de valores devidos aos passageiros, até a completa falta de salubridade dos coletivos. Confira os principais problemas:
4ª Parada
Irandir Oliveira de Souza, 52 anos, é o sócio administrador da Transbrasil. Nasceu em Batayporã, no Mato Grosso do Sul, mas construiu vida política em Rondônia, onde foi eleito prefeito do município de Ouro Preto do Oeste, em 2004.
Sua candidatura à época levantou grande polêmica, já que ele respondia a 18 processos criminais, incluindo tráfico de drogas, formação de quadrilha, falsidade ideológica e estelionato. Inicialmente, o Tribunal Regional Eleitoral (TRE) do estado chegou a impedi-lo de concorrer, mas como Irandir não tinha condenação transitada em julgado em nenhum dos casos, conseguiu o registro e exerceu o mandato. Só em Rondônia, o empresário acumula 149 processos das mais diversas naturezas criminais.
Atentado
Ainda em 2004, o então prefeito foi vítima de um atentado. Irandir estava em um restaurante no Brás, região central de São Paulo, quando um jovem se aproximou e atirou três vezes nele antes de fugir. Os disparos o machucaram nas costas, nádegas e em uma perna.
A Polícia Civil de SP suspeitou que a intenção do criminoso era matá-lo, uma vez que nenhum objeto de valor foi levado. O empresário estava na capital paulista resolvendo problemas da Transbrasil. Uma das linhas de investigação, inclusive, era de que o crime teria sido cometido por causa de desentendimentos relacionados à empresa.
Quatro anos após o atentado, Irandir foi preso pela Polícia Federal em uma megaoperação. Era agosto de 2008. O empresário ostentava dois mandados de prisão preventiva (falsidade ideológica e crimes ambientais) e um de prisão definitiva (crime eleitoral) expedidos contra ele, todos da comarca de Ouro Preto do Oeste.
O proprietário da Transbrasil também é alvo de investigação pela Polícia Civil do município, acusado de peculato, falsidade ideológica e formação de quadrilha por supostos desvios de verba pública ocorridos na Secretaria de Saúde durante o seu mandato como prefeito da cidade.
Depois de oito meses detido no Presídio Urso Panda, em Porto Velho (RO), ele ganhou o direito à prisão domiciliar alegando problemas de saúde. Em casa, foi monitorado por uma tornozeleira eletrônica. Agora, cumpre a pena em regime aberto.
Irandir acabou citado em outra denúncia três meses após a prisão. A mulher dele, Andréia da Rocha, foi flagrada por policiais rodoviários federais transportando 5kg de cocaína no interior de um ônibus da empresa Eucatur, de Ouro Preto do Oeste (RO) para Goiânia.
O caso foi registrado em 23 de novembro de 2008, por volta das 8h15, no Km-172, da BR-060, no município de Goiânia (GO). À polícia, a mulher, que estava com o filho pequeno no colo, teria confessado que fez o transporte da droga a pedido de Irandir. Durante a abordagem policial, Andréia fugiu do local com a ajuda do marido. Ao ser interrogado em juízo, no entanto, o empresário negou a acusação.
Irandir não foi condenado no episódio. Em sua decisão, a juíza Wanessa Rezende Fuso Brom, de Goiânia, ressaltou o farto currículo de antecedentes criminais do empresário. Mas afirmou que não havia provas para ligá-lo ao tráfico de drogas. A mulher dele, no entanto, foi condenada a sete anos e três meses de reclusão por tráfico interestadual de drogas. Em 2013, após recorrer da condenação, ela foi absolvida, também por falta de provas.
No que tange ao acusado Irandir, tem-se que, em que pesem os fortes indícios de que Andréia transportou a droga a pedido dele, inclusive foi ele quem a buscou na barreira policial e, portanto, tinha conhecimento de todo o ocorrido, somado ao fato de suas vastas certidões de antecedentes criminais espalhadas pelo país, com vários registros por crimes da mesma natureza, inclusive em estados onde possui filiais de sua empresa de ônibus, nota-se que as provas constantes nos autos são frágeis para ensejar uma condenação”Trecho da sentença
“Prova plantada”
Encontrar Irandir não é tarefa fácil. Os telefones fixos da empresa não funcionam. O Metrópoles foi ao endereço da transportadora cadastrado na Receita Federal e ele não estava lá. Na tarde do dia 15 de março, uma quarta-feira, a reportagem conseguiu entrar em contato com um gerente da Transbrasil que trabalha em Brasília e deixou recado. À noite, o empresário retornou a ligação e marcou um encontro no lobby do edifício The Union, ao lado da Rodoviária Interestadual de Brasília.
Recebeu a equipe sozinho, ocasião em que negou qualquer irregularidade na empresa. Aparentemente tranquilo, afirmou que as denúncias partem de concorrentes insatisfeitos e que o “kit liminar” é “prova plantada”. Reconheceu que sempre recorreu à Justiça para conseguir autorizações, uma vez que, segundo sustenta, não teria aceitado participar de um suposto “balcão de negócios” gerido pela ANTT: “Se a empresa estivesse pagando (propina), as nossas linhas estavam certinhas há muitos anos. Como não dispomos de recursos financeiros, sofremos essa perseguição. Tanto da agência quanto das grandes empresas.”
Segundo Irandir, a Transbrasil/TCB tem cerca de 35 veículos próprios e opera com carros arrendados. No cadastro da ANTT, são 286 ônibus ao total. Ao ser questionado sobre a cobrança do “kit liminar”, explicou que ocorre o contrário: “Pagamos mensalmente pelo aluguel do veículo, pelo arrendamento. Isso é legal. O dono do ônibus não paga nada. Ele tem que receber. Onde alguém vai trabalhar e, em vez de receber, paga?”
Com relação à venda de passagens, o empresário afirma que os bilhetes são comercializados apenas nos terminais rodoviários, onde garante que é o ponto de partida de todos os ônibus. “Podemos vender passagens por onde o veículo passa. Pagamos todos os impostos necessários”, garantiu.
5ª Parada
A lista de irregularidades da Transbrasil extrapola as manobras jurídicas para manter os ônibus rodando. Inclui fraudes trabalhistas, falta de registros profissionais dos funcionários e pendências no FGTS, para citar algumas. Além disso, os motoristas têm uma rotina exaustiva, que afeta diretamente a condução dos veículos e, consequentemente, coloca em risco a vida dos passageiros.
“Como uma empresa terceiriza a atividade fim?”, questiona a coordenadora das auditorias da Superintendência Regional do Trabalho e Emprego de Goiás, Jacqueline Carrijo. Nas viagens amparadas pelo “kit liminar”, os motoristas não mantêm vínculo com a Transbrasil e, geralmente, não têm carteira assinada com os contratantes originais.
Jacqueline Carrijo questiona ainda: “Como o Poder Judiciário se alia a uma empresa descumpridora das normas de segurança nacional e atrapalha o trabalho de fiscalização? A insegurança que elas (as liminares) estão causando não é só para o trabalhador, mas para todos do sistema”.
Um dos motoristas que conduzem os ônibus “parceiros” da empresa contou à reportagem, sem saber que estava sendo gravado, que trabalhou por seis dias seguidos fazendo viagens de até 30 horas entre o Distrito Federal e o Piauí.
Os motoristas não são os únicos prejudicados. Um ex-funcionário da empresa, que pediu para não ser identificado, contou que foi demitido em 14 de janeiro de 2014, após trabalhar três anos na bilheteria da Transbrasil.
Um dia, eles simplesmente me disseram que eu estava demitido. Fui tentar sacar o meu FGTS e descobri que a empresa não havia depositado. Entrei na Justiça e ganhei a causa, mas ainda não recebi, né?”Ex-funcionário da empresa
Segundo ele, a Justiça já tentou penhorar três ônibus da transportadora para quitar o débito, mas não encontrou nada em nome da empresa. “Tenho medo do que pode acontecer comigo, porque outras pessoas já foram ameaçadas”, disse.
6ª Parada
No trajeto tortuoso percorrido pelos ônibus da Transbrasil, vidas ficaram pelo caminho. Quem sobreviveu, carrega sequelas físicas e emocionais. Poucos conseguiram algum tipo de reparação financeira.
A família do vendedor Jardeli Miranda Nascimento, citada no início desta reportagem, luta para ser indenizada. A mulher, Ana Amélia, teve o braço dilacerado. As marcas a envergonham. O homem perdeu parte do movimento das mãos. Por sorte, a criança Anielly não sofreu ferimentos graves. A mãe conseguiu protegê-la quando o ônibus em que estavam tombou três vezes em outubro do ano passado. Eles saíram de Barra do Corda, no Maranhão, para o Distrito Federal.
Cada passagem custou R$ 140. Ao chegar no ponto de embarque, o casal notou que o ônibus da Transbrasil estava lotado. Alguns passageiros tiveram que viajar em pé, no corredor do coletivo.
Ana Amélia conseguiu se sentar porque estava com a pequena Anielly nos braços. A família lembra que o veículo, mesmo lotado, seguia pela rodovia em alta velocidade. Os passageiros não usavam cintos de segurança. Ao chegar no km 445 da BR-226, entre as cidades de Grajaú e Porto Franco, no Maranhão, o ônibus capotou três vezes. O desespero foi generalizado.
Quarenta pessoas ficaram feridas e duas morreram. Entre elas, uma mulher grávida. As cicatrizes não deixam Jardeli se esquecer do acidente. “Foi horrível. Pensei que perderia minha família. Aquilo foi um crime”, desabafou. Há contradições sobre o que realmente teria ocorrido naquele dia. O vendedor conta que o acidente ocorreu durante a troca de motoristas: “Fizeram a passagem com o veículo em movimento”. Na ocorrência policial, testemunhas disseram que o condutor deixou cair uma grande quantidade de dinheiro no chão e se abaixou para pegar. A distração teria custado a tragédia.
Confira o depoimento das vítimas:
Andressa Conrado da Silva, 24 anos, estava no mesmo ônibus com a filha de um ano. Ela lembra que não conseguiu segurar a criança. Depois do acidente, a pequena Samiry foi encontrada encolhida embaixo de uma poltrona coberta por vidros. “Quando eu entrei no veículo, já senti que tinha algo errado, porque muitas pessoas ficaram em pé. Algumas ameaçaram sair por causa da bagunça”, recordou.
Veja as fotos do acidente e das vítimas:
Outros casos
Enquanto alguns tentam curar as sequelas, há famílias que precisam lidar com uma dor maior ainda. O motorista reserva Genito Bernardo de Oliveira, 55 anos, morreu após um acidente de trânsito na BR-020, próximo a São Desidério (BA). Ele não resistiu aos ferimentos causados pela colisão entre o ônibus da Transbrasil e um caminhão, em abril de 2016.
Em dezembro de 2015, um acidente com um ônibus da empresa foi registrado na PI-110, entre Batalha (AL) e Barras (PI). O coletivo saiu de Brasília com destino a Parnaíba. Quinze pessoas ficaram feridas. Passageiros contaram à polícia que o motorista dormiu ao volante.
Já em outro episódio, um adolescente de 15 anos morreu esmagado pela carroceria de um ônibus da Transbrasil em julho de 2013, na BR-364, próximo ao município de Presidente Médici, em Rondônia. O condutor teria perdido o controle do veículo, que estava com 36 passageiros a bordo e dois motoristas, ao desviar de uma carreta e caiu de uma ribanceira. Na medição de velocidade, o tacógrafo indicava 100km/h.
A imprudência estimulada pela impunidade fez 36 mortos em um acidente envolvendo um ônibus da Transbrasil e um caminhão na BR-116, entre os municípios baianos de Brejões e Milagres. Na época, dezembro de 2011, o dono do veículo assumiu em depoimento à polícia que comprou o “kit liminar”.
Os registros das tragédias são o desfecho de uma triste história de roteiro conhecido por autoridades, pelo Poder Judiciário, polícia, fiscais e passageiros. Atraídos pela oportunidade de pagar menos ou encorajados pela inexistência de fiscalização, os usuários da Transbrasil viajam a bordo de verdadeiras locomotivas do crime organizado.