Tatiana Luz da Costa, 35 anos, morreu queimada pela companheira. Seu caso, depois de julgado, pode ser o primeiro feminicídio no Brasil cometido por uma mulher.
Juntas carregamos o mesmo nome. Tatiana. Mas, como quase sempre acontece, é Tati que nos identifica. E como eu, ela também gostava de ser chamada assim. Pelo apelido.
Enquanto tentava rastrear seus últimos passos, saber quem ela era, entender o que aconteceu naquela segunda-feira, 23 de setembro de 2019, fiquei pensando por que essa história chegou até mim.
Talvez nossa semelhança se restrinja apenas ao nome, mas, como mulheres, sabemos o peso que um relacionamento amoroso conturbado pode ter na nossa segurança, sabemos o quanto corremos perigo ao responder uma ameaça ou mesmo ao achar que o amor é sinônimo de conflito ou sofrimento.
Achamos. Até que a vida ou a morte acontece.
Essas foram mensagens de whatsapp de celular que ela recebeu:
Como mulheres, Tatianas, Danielas, Carolinas, Marianas, Letícias, Cristianes, Marias, seja qual nome carregamos, sabemos que a violência pode chegar de onde a gente menos espera. Por mais que estejamos atentas, as ameaças podem, sim, se concretizar. Mas, muitas vezes, assim como foi para Tati, custamos a acreditar. Especialmente quando vivemos dentro de um padrão violento.
E que ele, quase sempre, é bem de perto que a gente sente.
E não necessariamente do óbvio.
Uma mulher também pode machucar outra mulher.
O encontro
A história de Tati começa justamente na busca da segurança e do acolhimento. Ela havia se mudado para Santa Maria há sete anos. Estava casada e foi para um condomínio de apartamentos novos, tranquilo, afastado do centro da cidade. Lá, em 2016, ela engravidou, perdeu o bebê e com a dor da perda veio, também, a separação. Foi uma fase difícil. Tati era formada em administração e a paixão por animais fez com que ela quisesse montar um pet-shop perto de casa. Era o que fazia ela seguir em frente, mas mesmo assim algo havia mudado.
No período de separação, ela encontrou apoio nos braços de Wanessa Pereira de Souza, 34 anos, que trabalhava em um lava jato perto da casa dela. As duas começaram um relacionamento confuso. Para os amigos, Tati contava que estava de caso com o pai da namorada. “Ela tinha muito medo do preconceito. E, de fato, alguns conhecidos se afastaram, mas não pelo fato de ela estar namorando uma mulher, mas sim com uma pessoa que não fazia bem pra ela. Wanessa se escorava na Tati, se aproveitava dela”, diz uma amiga próxima que pediu para não se identificar por medo de retaliações. “A Wanessa andava com gente barra pesada e quando aconteceu tudo muita gente não quis dar o depoimento na delegacia por conta disso.”
Elas brigavam. Os vizinhos viram Wanessa sendo violenta com os cachorros das duas e com a Tati. Ela vendeu o pet-shop e o apartamento que tinha para sustentar a vida que levavam. “Depois do relacionamento delas, a nossa amizade não era a mesma, ela se afastou até da família, e a Wanessa era igual a um cão de guarda arisco”, conta a amiga.
Para o pai de Tati, Sérgio da Costa, 61 anos, ainda é muito difícil falar sobre o assunto, processar o que aconteceu. “Ela tinha um coração muito bom. Ajudava as pessoas que estavam em volta e era muito querida pelos amigos”, relata, emocionado.
Hoje vai ter morte
No domingo, 22 de setembro de 2019, Wanessa passou a noite toda bebendo com os amigos num quiosque perto do apartamento que dividia com Tati. Elas estavam separadas e vinham discutindo por trocas de mensagens. No status do WhatsApp de Wanessa estava escrito “hoje vai ter caixão e vela preta”.
Tati tinha passado a noite fora. Ela agora trabalhava como motorista de aplicativo e fazia bolos e doces para complementar a renda. Passou na casa de uma amiga antes, que a alertou: “Não vai encontrar a Wanessa que vai dar confusão”. Ela não quis saber: “Vou sim. Por que hoje ou morre ela ou morro eu”.
Nas mensagens trocadas pelo casal, ofensas dos dois lados. Ela xingava, Wanessa respondia:
Quando ela chegou em casa, Wanessa estava lá. Discutiram. Era perto da hora do almoço e os vizinhos ouviram gritos. De repente fogo, e os bombeiros foram acionados.
Os primeiros amigos que chegaram ao local não esquecem da cena, até o glóbulo de um dos olhos de Tati derreteu. Ela teve 90% do corpo queimado. Chegou a ser dada como morta na emergência, mas resistiu aos ferimentos por seis dias.
Wanessa também teve parte do corpo queimado, cerca de 30%. Apesar de ter contado que tinha sido um acidente, no hospital a assassina gritava: “Eu vou ser presa”. Ela disse que levou um galão de uma substância inflamável para lavar o carro, o cachorro teria derrubado o produto e o cigarro que ela fumava ateou fogo nas duas. A polícia desconfiou da versão e, depois de ver as mensagens com ameaças reais, resolveu prendê-la em flagrante. Ela está na Colmeia, onde aguarda pelo julgamento.
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Uma história que nunca termina
A morte de Tati foi registrada como o 25º caso de feminicídio no Distrito Federal. Em Santa Maria, são registrados de 60 a 90 casos de agressão contra mulheres mensalmente. Para o delegado-chefe da 33ª DP, Rodrigo Têlho, casos como esse são difíceis de prevenir. “O problema com ameaças é que elas se concretizam. E as vítimas nunca acham que vai acontecer com elas. E esses crimes que envolvem amor e ódio são assim, a gente só toma conhecimento depois que eles ocorrem”, lamenta.
A maioria dos agressores são homens, porém é preciso entender que a violência também está nos relacionamentos homoafetivos. “Não existe no Brasil uma estatística específica sobre isso. A tendência é que as mulheres morram nas mãos de homens dentro de relacionamentos, e a gente precisa entender isso para criar estratégias de prevenção, mas isso não quer dizer que não vamos olhar para casos que estão fora desse padrão. Afinal, cada vida importa e, politicamente falando, todo assassinato de uma mulher é um feminicídio”, aponta Joana Chagas, gerente de programa da ONU Mulheres.
Wanessa vai responder por homicídio triplamente qualificado. A lei de 2015 sobre feminicídios não é específica quanto ao gênero do agressor.
“Este é um caso muito peculiar, já que é raro as mulheres cometerem homicídio. Tanto a Lei do Feminicídio como a Maria da Penha foram criadas para proteger a mulher desse comportamento machista e dessa cultura patriarcal que geram violência, mas no Código Penal não há, realmente, referência ao gênero do sujeito ativo”, aponta o promotor que cuida do caso, Leonardo Otreira. O julgamento está previsto para o primeiro semestre de 2020.
“Ela lutou até o final. Foi guerreira. E não podemos silenciar isso, porque muitas mulheres ainda morrem por causa dos seus relacionamentos”, aponta a amiga da vítima.
Ameaças podem se tornar reais. Aconteceu com Tati, pode não ter acontecido comigo, mas toda mulher conhece pelo menos uma que tenha sofrido algum tipo de agressão ou violência dentro de um relacionamento amoroso. Que possamos nos lembrar disso e que suas histórias não sejam silenciadas.
Tatiana Sabadini
É escritora e jornalista. Trabalhou como repórter no Correio Braziliense, Jornal de Brasília e como colunista na rádio Transamérica. Publicou seu último livro, Confissões de quarta-feira, uma história sobre a amizade de quatro mulheres em 2018.
Elas por elas
Neste 2019, o Metrópoles inicia projeto editorial para dar visibilidade às tragédias provocadas pela violência de gênero. As histórias de todas as vítimas de feminicídio do Distrito Federal serão contadas em perfis escritos por profissionais do sexo feminino (jornalistas, fotógrafas, artistas gráficas e cinegrafistas), com o propósito de aproximar as pessoas da trajetória de vida dessas mulheres.
Até sexta-feira (01/11/2019), 13.779 mulheres do DF já procuraram delegacias de polícia para relatar abusos, ameaças e agressões que vêm sofrendo por parte de maridos, companheiros, namorados ou pessoas com quem um dia se relacionaram. Já foram registrados 27 feminicídios. Com base em informações da PCDF, apenas uma pequena parte das mulheres que vivenciam situações de violência rompe o silêncio para se proteger.
O Elas por Elas propõe manter em pauta, durante todo o ano, o tema da violência contra a mulher para alertar a população e as autoridades sobre as graves consequências da cultura do machismo que persiste no país.
Desde 1° de janeiro, um contador está em destaque na capa do portal para monitorar e ressaltar os casos de Maria da Penha registrados no DF. Mas nossa maior energia será despendida para humanizar as estatísticas frias, que dão uma dimensão da gravidade do problema, porém não alcançam o poder da empatia, o único capaz de interromper a indiferença diante dos pedidos de socorro de tantas brasileiras.