Os muros das casas trazem os sinais de que os moradores do Sol Nascente, em Ceilândia, convivem com o crime. As letras CSN (Comando do Sol Nascente) são quase que obrigatórias nas ruas do Trecho 2. E como se não bastassem as ondas de assaltos e furtos, o solo da região parece ter se tornado fonte inesgotável de dinheiro para grileiros, gangues e falsos religiosos.
O medo impera e tem até toque de recolher naquela que é considerada a segunda maior favela da América Latina – perde apenas para a Rocinha, no Rio de Janeiro, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). As construções irregulares estão por toda parte. Os grileiros fazem aterramentos, degradam a natureza e parcelam lotes. Cada unidade pequena, de até 200 metros quadrados, é vendida por um preço médio de R$ 30 mil.
A comercialização é fácil e rápida. Muitas vezes, a dívida é quitada em apenas uma parcela ou paga com a entrega de carros ou imóveis em outras regiões do DF. Os anúncios são feitos por meio de faixas e em sites de venda na internet.
Estacas são fixadas para demarcar os lotes em meio a casas recém-demolidas pela fiscalização. O Metrópoles flagrou, na quarta-feira (11/1), moradores erguendo as construções em uma área que era de preservação ambiental. Nascentes foram poluídas e minguaram em meio ao amontoado de lixo.
Do total de 25.299 habitações, 379 são improvisadas (barracos) e apenas 42 são próprias e quitadas. A grilagem se tornou prática comum no local. Nem mesmo as derrubadas da Agência de Fiscalização do DF (Agefis) intimidam os “empresários” que lucram milhões por mês.
Terror
A comercialização ilegal de lotes e a ação de criminosos são investigadas pela Polícia Civil do Distrito Federal. Um dos alvos é uma família, que mora no Sol Nascente, e é acusada de cometer ao menos 100 crimes em um período de dois anos na região. Entre eles, grilagem de terras, extorsão, tráfico de drogas e homicídio.
O titular da 19ª DP (Ceilândia Norte), Fernando Fernandes, diz que a polícia desarticulou o grupo – chamado de Comando do Sol Nascente (CSN) – composto pelo pai, conhecido como “Fernandão”, e dois filhos, Moisés, de 18 anos, e Tiago, 20 (foto abaixo). Fernandão e Tiago, considerados líderes da organização, foram presos em janeiro do ano passado. Moisés foi detido em seguida. Porém, adolescentes considerados seguidores da organização continuam cometendo crimes isolados na região.
Na comunidade pobre, uma casa verde de dois andares, janelas de blindex e uma sacada, que pertenceria ao grupo criminoso, chama a atenção de quem passa pelo local. Ninguém se atreve a falar abertamente sobre o que ocorre na cidade, mas a polícia diz que o grupo agia de forma extremamente violenta. “Expulsavam as famílias dos lotes e vendiam as terras. As vítimas eram mantidas sob constante ameaça”, explica o delegado Fernando Fernandes. Os principais alvos eram mulheres e idosos.
A reportagem do Metrópoles conversou com moradores e comerciantes que não quiseram se identificar, por motivos de segurança. Um empresário contou que os líderes da organização criminosa obrigavam os donos dos estabelecimentos a entregarem as mercadorias de acordo com a vontade deles. “Eles faziam as compras aqui. Levavam de tudo, não pagavam e não podíamos reclamar, sob pena de perdermos nossas vidas. Ficamos reféns deles por mais de cinco anos”, desabafou.
Uma mulher relatou que foi expulsa do lote com a família. “Eu comprei a casa por R$ 45 mil. Um dia apareceu um homem armado me pedindo para desocupar tudo porque o lote era dele. Insisti em ficar. No outro dia, o meu muro amanheceu marcado por balas. É aterrorizante. Não quero passar por isso nunca mais. Peguei tudo e fui embora”, disse a vítima.
O delegado confirma que recebeu algumas denúncias mostrando que o método adotado pelos criminosos é o mesmo. “Eles vendem, expulsam e revendem essas terras. Se algum morador atrasar uma parcela é expulso. De qualquer forma, eles (os bandidos) saem ‘ganhando’”, destacou.
Ainda segundo Fernandes, os bandidos preferem vender lotes irregularmente do que traficar drogas, porque a pena para a grilagem é menor (1 a 4 anos de detenção). E diante do temor, poucos são os moradores que procuram a polícia para denunciá-los, o que dificulta o trabalho dos investigadores.
Mortes violentas
No ano passado, Ceilândia, onde está localizado o Sol Nascente, registrou 72 mortes decorrentes de crimes violentos. Em 2015, foram 117. Muitas dessas ocorrências tiveram como motivo a disputa por terras.
Um desses casos foi a execução de Tony Carlos Amâncio, morto em 2015 após discutir com o então sócio, Sérgio Rolim de Oliveira, conhecido como Sérgio da Hilux (a alcunha era porque ele ostentava o carro avaliado em R$ 100 mil nas ruas do Sol Nascente).
Após o assassinato de Tony, a esposa dele, Ana Maria de Jesus Santos, 38 anos, começou a tocar os negócios da família. Ela se preparava para vender cerca de 28 lotes, quando despertou a fúria do algoz do marido. Foi então que Sérgio da Hilux mandou executar o restante da família do ex-sócio.
Ana Maria levou sete tiros dentro da própria casa, sendo três na cabeça, um na coxa esquerda, um na coxa direita e dois no tórax. A filha dela, Ana Caroline Amâncio, 3 anos, que estava no colo da mãe, foi levada ao hospital, mas não resistiu. O autor dos disparos acabou identificado e preso quando se preparava para fugir do DF.
Já Sérgio da Hilux, mandante do crime, foi detido dois meses depois, no Ceará. Ele estava com cerca de R$ 2 mil em cheques que, segundo os investigadores, foram repassados por moradores pela venda dos lotes. A polícia afirma que Sérgio se inspirava no Primeiro Comando da Capital (PCC) para agir e pretendia consolidar a facção criminosa no Sol Nascente.
Existe ainda a suspeita de participação de policiais militares no esquema de venda de lotes na região. A PM diz que, até o momento, não há indícios suficientes que provam o envolvimento dos integrantes da corporação nas irregularidades. “Caso venha surgir alguma denúncia ou indícios concretos de envolvimento de policiais, a corregedoria vai apurar o fato”, informou a Polícia Militar.
Em nome de Deus
Supostos líderes religiosos também estão na mira dos investigadores. Eles são suspeitos de criar uma indústria de igrejas para justificar a invasão de área pública no Sol Nascente. Só em uma das quadras do bairro, a QNR 1, o Metrópoles visitou nove templos. Todos irregulares.
Primeiro, o lote é cercado, e, em questão de dias, ergue-se um galpão de alvenaria. Depois, é só batizar o lugar com um “santo nome” e atrair o rebanho. Há, ainda, aqueles que dividem os lotes da igreja e comercializam para os próprios fiéis. “O bom de morar atrás da igreja é que o ambiente é mais tranquilo e as famílias são da comunidade”, disse uma moradora.
Uma pastora chegou a ser presa em flagrante pela 19ª DP construindo casas em área invadida. O caso ocorreu em abril de 2016. Revoltados, os moradores que tinham comprado o lote da mulher jogaram pedras na viatura da polícia. No dia da prisão, um secretário do gabinete de um deputado distrital chegou a ir na delegacia interceder pela acusada. “Há suspeita de que tenham políticos envolvidos, mas tudo precisa ser investigado”, ressaltou o delegado Fernando Fernandes.
Estado ausente
A área do Sol Nascente tem 940 hectares. Os moradores se dividem entre os setores “P” Sul, “P” Norte e as quadras QNQ. O terreno começou a ser fracionado a partir da década de 1990, mas as irregularidades cresceram nos anos 2000. Na região de quase 100 mil habitantes, que engloba Sol Nascente e Por do Sol, um dos poucos sinais da presença do Estado são três escolas.
É até possível encontrar três postos comunitários da Polícia Militar. No entanto, um deles foi incendiado, o outro está abandonado e inclusive já foi alvo de grileiros. Apenas o terceiro funciona e fica na entrada da cidade. O asfalto, com muitos buracos, existe apenas na via principal. Nas demais ruas, o que se vê são sacolas de lixo acumuladas, esgoto a céu aberto e entulho.
O outro lado
O delegado Fernando Fernandes diz que a Polícia Civil está agindo para combater a grilagem e o crime organizado no Sol Nascente, com o apoio de diversos órgãos, entre eles, a Agefis e a PM. Quanto à falta de segurança, a Polícia Militar garante que faz constantes operações na região.
A Agefis, por sua vez, informou que, em 2015, desobstruiu 1.596.865,97 m² de área invadida em todo o DF. Em 2016, o número subiu para 11.598.705,3 m². A agência não tem dados relacionados apenas ao Sol Nascente, mas diz que tem monitorado as áreas invadidas no local por imagens de satélite, helicóptero e drone.
O Instituto Brasília Ambiental (Ibram) ressaltou, por nota, que o Sol Nascente passa, atualmente, por um processo de regularização urbanística, fundiária e ambiental. O órgão se mostra ciente dos problemas ocasionados pela ocupação desordenada ao longo dos anos, mas afirma trabalhar pela redução dos impactos das áreas degradadas, na preservação e recuperação do meio ambiente.
Quanto à falta de saneamento básico, visível na região, a Caesb diz que está executando obras de esgotamento sanitário no Sol Nascente, ao custo total de R$ 7,5 milhões. A Secretaria de Infraestrutura e Serviços Públicos (Sinesp) também garantiu que o serviço de drenagem pluvial e pavimentação asfáltica está em andamento na cidade e vai custar R$ 194 milhões. “Não é uma simples obra. A mudança vai levar mais segurança e qualidade de vida aos moradores”, disse o secretário se Infraestrutura e Serviços Públicos, Antônio Coimbra