Nascida no município de Monção (MA), Sandra era a mais velha de sete irmãos. Aos 18 anos, foi mãe de uma menina, Samara, e dois anos depois teve o caçula, Brendo. Os pais das crianças nunca estiveram presentes.

Aos 24 anos, Sandra deixou o Maranhão em busca de oportunidades. Os filhos ficaram com os parentes. Ela chegou a Brasília com apenas 30 reais no bolso. Começou trabalhando como empregada doméstica, mas tinha um objetivo: virar cabeleireira.

Batalhadora, conseguiu. Há cerca de dois anos, abriu o próprio salão de beleza no terreno onde residia, em Vicente Pires. Orgulhosamente, deu ao estabelecimento o nome “Sandra Coiffeur”. A maranhense tinha clientela fiel.

Na capital federal, a vida melhorou. Ela já havia conseguido trazer os filhos para perto e convencido dois dos irmãos – Danilo, 32 anos, e Denilson, 30 – a morar aqui.

Aparentemente, tudo corria bem. Até que, em 23 de novembro do ano passado, Sandra foi assassinada, aos 39 anos.

Como era Sandra

Na região onde vivia, os vizinhos a chamam carinhosamente pelo diminutivo “Sandrinha”. Descrevem-na como uma pessoa solícita, sempre disposta a ajudar. “Se você chegasse ao portão dela e pedisse algo, ela tirava de onde não tinha. Era uma mulher muito boa”, conta uma amiga.

Com as freguesas, o cuidado se estendia para além do profissional, por isso muitas frequentadoras do salão se tornaram confidentes. “Quando chegava cliente na hora do almoço, ela perguntava se já tinha comido, se aceitava um pouquinho de arroz e feijão”, relata Denilson, o irmão caçula.

Sandra também é definida pelas pessoas que a conheceram como “guerreira”. “Trabalhava das 7h às 22h. Era incansável”, pontua a amiga Marilene Freitas. No início, investiu as economias em cursos profissionalizantes e fez cabelo quase de graça para formar clientela.

Para Denilson, Sandra era mais do que uma irmã. “Eu perdi uma mãe”, lamenta o rapaz. Ele veio para Brasília em 2012 e a cabeleireira o acolheu em casa durante os três primeiros meses. A empresária o ajudou a conseguir o trabalho de porteiro, emprego que ele mantém até hoje.

A gentileza e solicitude de Sandra foram retribuídas depois da morte dela. Como a família não tinha recursos para o funeral, a vizinhança se mobilizou e conseguiu arrecadar os R$ 4 mil reais necessários para o enterro, no Cemitério Campo da Esperança de Taguatinga. A morte violenta de Sandrinha, uma pessoa que colecionava afetos e não tinha inimigos, surpreendeu a todos.

Como foi o crime

Já era noite quando Danilo – o outro irmão – ligou para a casa de Sandra. Samara, a filha dela, hoje com 23 anos, disse que a mãe estava ocupada.

Pouco depois, por volta das 20h30 daquela sexta-feira, Danilo apareceu no imóvel onde a irmã residia. Ele ficou esperando na varanda enquanto Samara foi chamar Sandra. A jovem contou à polícia que, logo após avisar a mãe da chegada do tio, foi para o quarto e ouviu os dois saírem de casa conversando.

Menos de uma hora depois, Danilo retornou sozinho e disse: “Samara, sua mãe já era”.

Surpresa e assustada, Samara pediu explicações. “Sandra caiu em um bueiro e bateu a cabeça”, mentiu Danilo. Ele exigiu que o episódio não fosse revelado a ninguém. Por fim, ameaçou a sobrinha de morte caso a notícia vazasse.

Logo depois, Danilo levou Samara para a casa dele, no Assentamento 26 de Setembro, onde vivia com a companheira, grávida.

De acordo com os investigadores, na sequência, o assassino foi até onde o filho de Sandra, Brendo, morava. Inventou para o rapaz que Samara e Sandra tinham brigado. Segundo narrou para o sobrinho, a filha teria empurrado a mãe, que teria morrido após bater a cabeça em um móvel.

Foragido

A polícia descartou essa versão, pois a perícia feita na residência de Sandra não encontrou vestígios que confirmassem a história. “Não foi a Samara em hipótese alguma, não tem chance. Pela estrutura física e maneira como a vítima foi morta”, garante o delegado Yury Fernandes, responsável pelo inquérito.

O laudo de corpo de delito também descartou a narrativa de Danilo: “Não tinha nenhuma contusão na cabeça. Só as lesões do enforcamento. Ela morreu por asfixia”, frisou o delegado.

Ocultação de cadáver

Danilo, então, levou Brendo ao local do crime para que ele o ajudasse a enterrar o corpo na área do Assentamento 26 de Setembro, cerca de 50 metros mata adentro. O filho da vítima afirma que auxiliou o tio por medo, pois temia pela vida dele e da esposa.

Quando voltou, Danilo disse a Samara que o corpo de Sandra foi enterrado na “reserva” do Assentamento 26 de Setembro e reforçou que Brendo estava com ele no momento da morte.

As diligências da PCDF apontam que essa versão também não é verdadeira: “A gente já tem as filmagens. Elas mostram Danilo chegando e saindo sozinho. Então, Brendo não participou do ato”, explicou o delegado Yuri. O filho de Sandra irá responder apenas pelo crime de ocultação de cadáver, pois, na ocasião, foi cúmplice do tio.

Para a polícia, não há dúvida de que Danilo é o único autor do crime, tendo enforcado a irmã com um fio de TV. Com o avanço das apurações, o delegado Yury Fernandes também acredita na premeditação do feminicídio.

Samara ficou em cárcere privado na casa do tio entre 23 e 25 de novembro. No imóvel, foi ameaçada e molestada sexualmente por Danilo. Na segunda-feira, quando ele saiu para o trabalho, a jovem escapou e correu até a delegacia a fim de delatar o crime.

Após a denúncia de Samara, o caso de Sandra foi tratado a princípio como desaparecimento, tendo em vista que a filha da vítima não tinha visto o corpo da mãe e sequer sabia se de fato ela estava morta. Quando os investigadores encontraram Brendo, o rapaz cooperou e mostrou o local onde ele e o tio enterraram Sandrinha, ainda com o fio enrolado no pescoço. A essa altura, Danilo já havia conseguido fugir da polícia e até hoje está foragido.

Arquivo Pessoal
A família não se conforma com a morte de Sandra
A família não se conforma com a morte de Sandra

Antecedentes

O método que Danilo utilizou para matar a irmã foi exatamente o mesmo empregado por ele oito anos antes, quando assassinou Geane Sousa de Jesus.

A vítima, de 27 anos, foi estrangulada com um fio em 19 de julho de 2011, no município de Zé Doca (MA). De acordo com os registros policiais da época, Danilo atraiu a revendedora de motos para um terreno baldio, dizendo que havia alguém interessado em adquirir um consórcio de veículos.

Quando chegaram ao local combinado, ele anunciou assalto, amarrou a mulher e, em seguida, a estrangulou.

O laudo do legista indicou que, antes de matar Geane, Danilo abusou sexualmente da vítima. Depois, enterrou o corpo no terreno e partiu com a motocicleta em direção a Bom Jardim, cidade onde vendeu o veículo para um terceiro.

Segundo o delegado do caso, Luís Cláudio Balby, o crime foi premeditado, pois alguns dias antes Danilo ofereceu a motocicleta de Geane para um comprador. Em troca, receberia uma caixa de som automotivo e R$ 3 mil reais.

No dia seguinte ao assassinato, em 20 de julho de 2011, Danilo foi preso e transferido para a Delegacia de Bom Jardim, pois na sede policial de Zé Doca a comunidade estava revoltada com o crime.

Em 5 de março de 2013, Danilo Moraes Gomes foi condenado a 30 anos e 6 meses de prisão, sendo 22 anos por latrocínio, 7 anos e 6 meses por estupro e 1 ano por ocultação de cadáver, a serem cumpridos no Complexo Penitenciário de Pedrinhas.

Quando obteve a progressão de regime para o semiaberto, em 2016, Danilo fugiu para Brasília.

Rafaela Felicciano/Metrópoles
O filho de Sandra irá responder pelo crime de ocultação de cadáver, uma vez que foi cúmplice do tio
O filho de Sandra irá responder pelo crime de ocultação de cadáver, uma vez que foi cúmplice do tio

Motivação

Considerando o bom relacionamento entre Sandra e Danilo, a motivação do crime ainda é um mistério para os que conheciam os irmãos e conviviam com eles.

A principal hipótese dos investigadores é a de um conflito entre os dois por causa de um terreno: “Isso ainda falta esclarecer, mas a gente já tem uma linha de investigação, que é de briga por um lote”, explicou o delegado.

Caso seja confirmada, a motivação estaria relacionada à violência patrimonial, um crime contra as mulheres ainda pouco discutido. De acordo com a Lei Maria da Penha, esse é um dos cinco tipos de violência proibidos, juntamente com a física, sexual, psicológica e moral.

A violência patrimonial é entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades. O crime está previsto na Lei Maria da Penha, artigo 7º, inciso IV.

Denilson conta que a relação entre Sandra e Danilo era boa e de cumplicidade. A falta de um histórico de problemas entre os dois é um dos motivos pelos quais os parentes e amigos não conseguem acreditar no ocorrido.

Segundo a amiga Marilene Freitas, em todos os quase 10 anos de amizade com a cabeleireira, Sandra nunca mencionou problemas com o irmão: “Pareciam se dar bem. Ele prestava serviços de pedreiro na região, era aparentemente normal”. A vizinhança lembra que a irmã do feminicida inclusive indicava os serviços de Danilo para quem quisesse fazer obra.

De acordo com especialistas, os agressores de mulheres são, geralmente, pessoas consideradas “cidadãos comuns”. Muitas vezes, no convívio próximo, esses criminosos não dão pistas de que são capazes de cometer delitos.

Onde está o machismo?

O assassinato de Geane Sousa de Jesus ocorreu em 2011, quatro anos antes da promulgação da Lei do Feminicídio (Lei nº 13.104/2015), e foi registrado como latrocínio.

À luz da legislação atual, que tipifica as mortes violentas de mulheres por razões de gênero, o caso seria enquadrado como feminicídio, devido à violência sexual e ao desprezo pela condição de mulher demonstrada pelo autor.

Com base nas diretrizes internacionais criadas pela ONU para responsabilizar os agressores, os crimes de gênero devem ser enquadrados pelas características, circunstâncias e formas de violência adotadas. De acordo com o documento, a dinâmica quase sempre envolve “a imposição de sofrimento adicional às vítimas, tais como a violência sexual, o cárcere privado, o emprego de tortura, o uso de meio cruel ou degradante, a mutilação ou desfiguração das partes do corpo associadas à feminilidade e ao feminino (rosto, seios, ventre, órgãos sexuais)”.

A Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher – “Convenção de Belém do Pará” – afirma, em seu artigo 7º, que é dever do Estado, entre outros, “agir com o devido zelo para prevenir, investigar e punir a violência contra a mulher”.

Em 2001, o governo brasileiro foi responsabilizado por omissão, negligência e tolerância no caso de Maria da Penha Maia Fernandes pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (CIDH/OEA). Passadas quase duas décadas, são muitos os avanços, como a criação da própria Lei Maria da Penha, mas mulheres continuam morrendo por crimes evitáveis.

Responsabilidade do Estado

“Morte violenta” é a nomenclatura técnica generalista utilizada para sistematizar falecimentos por causas não naturais, como o suicídio, o homicídio e o feminicídio.

“Femicídio” foi o termo cunhado em 1992 por Diana Russell, pesquisadora feminista sul-africana, para descrever o assassinato de mulheres por homens por serem mulheres.

Nos anos 2000, o termo foi popularizado pela antropóloga mexicana Marcela Lagarde ao incluir, além do conceito de crime de ódio contra as mulheres, a responsabilização do Estado por ação ou omissão.

Segundo levantamento da PCDF, 67,8% dos autores de feminicídio no DF, em 2019, cometeram outros crimes antes. Isso significa que quase sete em 10 feminicídios poderiam ter sido evitados se o Estado criasse uma maneira de conter homens que, em situações anteriores, mostraram atitudes violentas.

No caso de Sandra, o governo falhou ao determinar a periculosidade de Danilo Moraes Gomes. Hoje, o delegado Yury Fernandes afirma categoricamente que se trata de um criminoso de “alta periculosidade”, mas o feminicida encontrava-se livre em Brasília apesar de ter sido condenado em seu estado natal.

Integração de dados

De acordo com o Núcleo de Estudos e Pesquisas da Consultoria Legislativa do Senado Federal, a integração de dados relacionados à violência contra as mulheres pode contribuir para prever e evitar feminicídios.

Um cruzamento recente de duas grandes bases de dados mantidas pelo Ministério da Saúde – o Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan) e o Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) – revelou que mulheres vítimas de violência física têm 29 vezes mais chances de serem assassinadas ou cometerem suicídios.

Isso significa que, se utilizada como insumo norteador da políticas públicas, a notificação de violência recebida pela Saúde permitirá ao Estado executar intervenções precoces para reduzir a probabilidade de uma mulher ser assassinada.

No caso específico de Sandra, o mandado de prisão de Danilo Moraes Gomes emitido no Maranhão não estava cadastrado no Banco Nacional de Monitoramento de Prisões, o BNMP 2.0, até o assassinato da cabeleireira.

Gerido pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o BNMP é uma plataforma que permite consulta pública em tempo real de pessoas foragidas. Se o registro estivesse disponível, a polícia poderia ter prendido Danilo antes que ele matasse a irmã.

Outra falha, agora relacionada à responsabilização do feminicida e à possibilidade de uma nova situação de violência, está em curso. Até o início de janeiro, o DF não tinha cadastrado o mandado de prisão de Danilo no BNMP.

A família não se conforma com a morte de Sandra. A comunidade se mobilizou para honrá-la — e o Estado deveria fazer o mesmo.

Maithe Marques

Maithe Marques

Jornalista recém-formada pela Universidade de Brasília (UnB). Estagiou no Ministério da Fazenda e na Secretaria de Comunicação da Procuradoria-Geral da República (PGR), onde atuou em pautas voltadas para os Direitos Humanos. Militante da causa feminista, teve como objeto de estudo para o trabalho de conclusão de curso os crimes de feminicídio ocorridos no Distrito Federal durante o primeiro semestre de 2019.

Roberta Gregoli

Roberta Gregoli

Doutora pela Universidade de Oxford, mestra (com louvor) pelo programa Erasmus Mundus Crossways in Humanities da União Europeia e graduada pela Unicamp. No Brasil, atuou em diversas esferas do governo (executivo federal, executivo distrital e legislativo) e em organismos internacionais (ONU Mulheres). Atualmente, é professora e consultora internacional em gênero, inclusão social e direitos humanos.

Elas por elas

Em 2019, o Metrópoles criou projeto editorial para dar visibilidade às tragédias provocadas pela violência de gênero. As histórias de todas as vítimas de feminicídio do Distrito Federal foram contadas em perfis escritos por profissionais do sexo feminino (jornalistas, fotógrafas, artistas gráficas e cinegrafistas), com o propósito de aproximar as pessoas da trajetória de vida dessas mulheres.

Até terça-feira (31/12/2019), 16.954 mulheres do DF já procuraram delegacias de polícia para relatar abusos, ameaças e agressões que vêm sofrendo por parte de maridos, companheiros, namorados ou pessoas com quem um dia se relacionaram. Foram registrados ainda 33 feminicídios. Com base em informações da PCDF, apenas uma pequena parte das mulheres que vivenciam situações de violência rompe o silêncio para se proteger.

O Elas por Elas propõe manter em pauta, durante todo o ano, o tema da violência contra a mulher para alertar a população e as autoridades sobre as graves consequências da cultura do machismo que persiste no país.

Desde 1° de janeiro, um contador está em destaque na capa do portal para monitorar e ressaltar os casos de Maria da Penha registrados no DF. Mas nossa maior energia será despendida para humanizar as estatísticas frias, que dão uma dimensão da gravidade do problema, porém não alcançam o poder da empatia, o único capaz de interromper a indiferença diante dos pedidos de socorro de tantas brasileiras.

DIRETORA-EXECUTIVA
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EDITORA-EXECUTIVA
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EDITORA-CHEFE
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COORDENAÇÃO
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EDIÇÃO
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REPORTAGEM
Maithe Marques
Roberta Gregoli
REVISÃO
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EDIÇÃO DE ARTE
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EDIÇÃO DE FOTOGRAFIA
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FOTOGRAFIA
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TECNOLOGIA
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André Marques