Foto de Gilberto Alves/Especial para o Metrópoles
Eumano Silva & Gilberto Alves
01/07/2018, 5:30
Pouco mais de 500 quilômetros separam Brasília de um foco crescente de tensão e violência no campo. No oeste da Bahia, a escassez de água agravou-se nos últimos anos e acirrou os confrontos entre comunidades ribeirinhas e fazendas do agronegócio. Instaladas na região desde o século 19, famílias de posseiros apontam a irrigação das grandes plantações, iniciada na década de 1980, como principal causa da redução na vazão de rios e da morte de córregos e nascentes.
O conflito pela água confunde-se com o enfrentamento pela propriedade da terra. No município de Correntina, cidade a 900km de Salvador, ocorrências recentes contribuíram para o aumento da sensação de insegurança. “Pedimos a prisão imediata de jagunços e policiais envolvidos em ações de pistolagem contra as comunidades e povos tradicionais da região”, diz nota pública do dia 25 de abril, dirigida às autoridades da Bahia, assinada pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) de Bom Jesus da Lapa (BA), ligada à Igreja Católica, e pela Associação dos Advogados de Trabalhadores Rurais da Bahia (AATR). Em tom de alerta, o comunicado cobra medidas do estado.
“Mais uma vez, nos encontramos diante de uma tragédia anunciada, com consequências incalculáveis. Portanto, as providências são urgentes, a fim de evitar que novos atos de violência e ameaças se perpetuem”, afirma outro trecho do documento.
A nota pública trata, especificamente, de ações desencadeadas por homens armados contra os moradores do Capão do Modesto, uma comunidade de posseiros que utiliza a área como “fecho de pasto”, termo regional para glebas do Cerrado onde o gado dos ribeirinhos é solto duas temporadas no ano para aproveitar a pastagem natural.
Como veremos adiante, as ofensivas intensificaram-se depois que, em 12 de abril, os ruralistas obtiveram na Justiça reintegração de posse de terras da região do Capão do Modesto. Os posseiros, pequenos agricultores, contestam a sentença e acusam os fazendeiros de grilagem.
A escalada de radicalismo em Correntina mudou de patamar desde 2 de novembro do ano passado. Nessa data, cerca de 800 manifestantes invadiram e depredaram a sede da Fazenda Rio Claro, propriedade da Lavoura Pecuária Igarashi Ltda. O terreno, banhado pelo Rio Arrojado, possui mais de 2,5 mil hectares de plantações.
Armados com picaretas, paus e facões, homens e mulheres destruíram o sistema de pivôs e captação de água, queimaram o maquinário e puseram abaixo uma subestação de energia elétrica.
Foi a mais violenta e impactante ação dos pequenos agricultores contra as empresas do agronegócio. Os cálculos sobre os prejuízos chegaram a R$ 50 milhões, segundo os proprietários.
Na percepção dos manifestantes, os equipamentos de irrigação da Igarashi foram responsáveis pelo esvaziamento do Arrojado.
“A tendência é de crescimento dos confrontos na região”, disse na época o prefeito de Correntina, Nilson Rodrigues, o Maguila. As ocorrências no Capão do Modesto confirmam a previsão do dirigente municipal.
Em duas viagens, realizadas em janeiro e abril de 2018, a equipe do Metrópoles percorreu durante 12 dias as comunidades tradicionais do Vale do Arrojado. O contato direto com moradores de povoados e de pequenas propriedades proporcionou a descoberta de famílias enraizadas há dois séculos no coração do Brasil.
Essa população, acostumada à fartura de alimentos nas roças e nos quintais, vive hoje assombrada com a presença de inimigos armados e a perspectiva de ficar sem água. No centro desse drama, destaca-se a figura dos “geraizeiros”, homens que, em determinadas épocas do ano, soltam o gado nos “gerais”, denominação das vastas extensões de terra cobertas por Cerrado no oeste da Bahia.
Os litígios fundiários decorrem da expansão do agronegócio nos fechos de pasto. Na maioria das vezes, são milhares de hectares de descampados distantes das casas onde moram as famílias dos posseiros, construídas perto dos rios e córregos.
A ocupação de glebas antes exploradas apenas pelos ribeirinhos deu-se, em grande parte, com métodos característicos de grilagem de terras públicas. Documentos obtidos em cartórios e processos administrativos mostram como as canetadas de um juiz passaram 600 mil hectares para o setor privado a partir de vagas referências de um inventário de 1945.
Nas viagens do Metrópoles pelo oeste da Bahia, a equipe visitou fazendas e entrevistou ribeirinhos e autoridades locais. Líderes de associações de pequenos agricultores fizeram relatos, registrados em vídeo, sobre embates físicos com empregados do agronegócio. Acusado de comandar uma rede de pistolagem na região, um ex-policial militar que presta serviços de segurança para as empresas também deu depoimento.
Para descrever as características e particularidades desse pedaço do Brasil, a reportagem recorre à estrutura narrativa do livro Os Sertões, de Euclides da Cunha. No clássico sobre a Guerra de Canudos, o escritor carioca divide o relato em três partes: A Terra, O Homem e A Luta. Sob essa inspiração, o trabalho sobre o oeste baiano apresenta-se compartimentado nos títulos Os Conflitos, As Terras e O Povo.
A barragem erguida em uma vereda forma um lago na nascente do Rio Arrojado. Bombas elétricas de captação estão instaladas no ponto mais profundo, prontas para molhar a área de plantio. Algumas centenas de metros abaixo, um quinhão de terra preparada por tratores tem a forma circular, desenho geométrico típico das plantações irrigadas com pivô central, equipamento símbolo do agronegócio do oeste da Bahia.
A cena descrita acima foi registrada pelo fotógrafo Michael Melo, no dia 13 de abril, com câmera conduzida por drone. As imagens mostram nitidamente como, logo na cabeceira, o Arrojado sofre interferência humana.
Uma placa fixada na entrada indica o nome da propriedade, Fazenda Passagem Funda, e da responsável pela obra, Companhia de Integração Florestal (CIF). Na segunda parte da reportagem, veremos como a Passagem Funda está ligada às origens da ocupação da região pelo agronegócio.
A CIF defende a represa na cabeceira do Arrojado. “Nosso barramento é parcial, não bloqueia o acesso ao rio. Não houve prejuízo algum para o meio ambiente, muito pelo contrário, é um manancial que mantém o fluxo à jusante [rio abaixo], contribui para deixar o nível de água constante, abriga espécies desalojadas pela drenagem da nascente original, sendo preservada e cuidada por nós”, disse em resposta ao Metrópoles.
Sobre a obra, a empresa afirma ainda que a nascente do Arrojado foi drenada com a pavimentação da BR-020 e, desde então, a lagoa natural não existe mais. O Arrojado é formado por veredas e possui vários braços que contribuem para aumentar o volume de água.
Com suas interferências, de maiores ou menores efeitos, tanto o governo federal quanto a empresa agrediram duas nascentes do rio.
A barragem, segundo a CIF, foi construída há mais de 30 anos e sem intenção de uso para irrigação. A empresa fez o pedido de captação de água para a lavoura em 2012. Uma portaria do Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Inema), órgão responsável por emitir outorgas, regularizou a obra no dia 25 de outubro de 2017.
A exemplo do caso acima, autorizados pelo poder público, os ruralistas expandiram a exploração dos recursos naturais do oeste baiano. A presença ostensiva de grandes fazendas nas proximidades dos rios e nos chapadões de Cerrado é a raiz da sequência de fatos violentos, que há quatro décadas, conturbam a região. O histórico de enfrentamentos começou com a chegada, a partir do final dos anos 1970, de fazendeiros provenientes dos estados Sul e Sudeste do país.
Os confrontos ocorreram, inicialmente, em torno de terras usadas há mais de um século por famílias de posseiros. Com tratores, correntões e incentivos fiscais, ruralistas do sul tomaram áreas até então consideradas pelos antigos moradores como propriedade do estado.
No início, os fazendeiros devastaram o Cerrado para plantar eucaliptos e pinheiros. Glebas de uso comum das comunidades tradicionais transformaram-se em latifúndios privados de um momento para outro.
Brigas em torno de demarcações tornaram-se comuns depois da chegada dos sulistas. As agressões ao meio ambiente também. Em setembro de 2000, uma iniciativa criminosa contra o Arrojado provocou a primeira reação coletiva da comunidade. Na ocasião, dois fazendeiros abriram um canal de nove quilômetros de comprimento e 10 metros de largura para desviar parte da água do rio para projetos particulares.
A obra foi feita em Área de Proteção Permanente (APP) e sem autorização de órgãos ambientais. Revoltados com a ousadia dos agressores, cerca de 600 pessoas mobilizaram-se para tapar o canal. Com ferramentas nas mãos, fizeram uma passeata pelas ruas de Correntina antes de seguir para o Arrojado.
A golpes de pás, picaretas e enxadas, obstruíram o desvio com pedras e impediram a perda de água do rio para as fazendas. A barreira feita pelos ribeirinhos nunca foi removida pelos empresários.
Dessa ação, participaram homens e mulheres das áreas rurais e dos pequenos povoados às margens do Arrojado. Em São Manoel do Norte, maior distrito de Correntina, dois professores da rede municipal, Joselito Silva dos Santos e José de Alcântara e Silva, perderam o emprego por terem participado do ato.
O prefeito disse que quem ajudasse a tampar o canal seria posto para fora. Nós dois fomos assim mesmo e fomos demitidos”, afirma Santos.
A revolta de 2000 revelou a disposição dos ribeirinhos para agir coletivamente em defesa do rio. Em dezembro daquele ano, o programa Globo Rural, da TV Globo, contou a história do fechamento do desvio e registrou a morte, até aquele momento, de 17 riachos no município de Correntina.
Os que estavam na mobilização aprovam a resistência da geração atual. “Se tirarem a água do Arrojado, o que o povo vai fazer?”, pergunta o comerciante Horácio Andrade, 68 anos, também de São Manoel do Norte, presente na manifestação do canal.
Situada na margem direita do rio, a cidade tem cerca de 1.600 habitantes. Dias antes da destruição das bombas da Igarashi, segundo os ribeirinhos, a água do Arrojado baixava de nível quando a fazenda ligava os equipamentos de captação.
Uma moradora do povoado viveu uma situação inusitada pouco depois da invasão. Ela foi intimada a depor na investigação policial que apura as responsabilidades pela destruição do dia 2 de novembro. A mulher não nega ter ajudado na mobilização da vizinhança. Mas, assegura, não esteve na fazenda.
Marcelo Calçado, delegado de Correntina, instaurou o inquérito quatro dias depois do quebra-quebra, para investigar os responsáveis pelo ato. A população resistiu a apontar nomes de líderes e dos autores dos prejuízos na propriedade.
Na busca por culpados, policiais civis enviados pelo governador da Bahia, Rui Costa (PT), percorreram as comunidades, interpelaram dezenas de moradores e forçaram a barra, como na intimação da mulher de São Manoel do Norte.
Uma das operações, em especial, causou indignação da população e foi tema de reunião do prefeito de Correntina. Na procura de um professor que participou do ato contra a Igarashi, policiais abordaram a diretora e alunos de uma escola no povoado de Arrojelândia. “Eles não podem pegar crianças e adolescentes para interrogar”, reclamou Rodrigues em conversa com o governador.
O professor investigado é Iremar Barbosa de Araújo, 48 anos. Ele leciona língua portuguesa na rede de ensino fundamental e acompanha de perto os conflitos no campo do município de Correntina. Estudioso da cultura e natureza dos gerais, Araújo atua para preservar o Cerrado e divulga seu conhecimento nas comunidades.
Filho de ribeirinhos, o professor critica o tratamento desigual dado pelas autoridades aos antigos posseiros em relação ao destinado a empresários do agronegócio. Nos dias seguintes à invasão da Igarashi, ele reclamou da truculência policial. “Isso é pressão para cima dos pequenos agricultores”, desabafou Araújo.
O delegado nega irregularidades na abordagem. “Não é verdade que os policiais interrogaram crianças, pode ter havido alguma pergunta, mas isso não é proibido. Também não há problema em investigar pessoas que não estiveram na manifestação, mas que podem ter colaborado”, afirma Calçado.
As reclamações sobre a apuração provocaram reação do Comitê Brasileiro de Defensoras e Defensores de Direitos Humanos (CBDDH), agrupamento de organizações e movimentos sociais com atuação voltada para a proteção de pessoas em situação de risco decorrente de militância política. “A presença de helicópteros e policiais fortemente armados, na cidade e nas comunidades, aterrorizou a população, em especial as crianças, mostrando-se excessiva tal decisão política”, diz documento divulgado pelo CBDDH no dia 27 de março, quase cinco meses após a manifestação na Fazenda Igarashi.
Participam do comitê mais de 30 organizações, como Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH), Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) e a Comissão Pastoral da Terra (CPT).
No mesmo documento, o CBDDH apresentou mais um motivo de apreensão para os antigos moradores. “Outro fator de muita preocupação diz respeito a diversas denúncias sobre a contratação de pistoleiros, por empresas privadas e fazendeiros, para garantir a usurpação das terras e águas públicas, forçando os ribeirinhos e camponeses a deixarem seus territórios de forma violenta.”
Duas semanas depois da nota do comitê, no dia 12 de abril, a juíza Marlise Freire Alvarenga – de Barreiras, substituta em Correntina – assinou a reintegração de posse em favor dos fazendeiros do Capão do Modesto, episódio citado na abertura da reportagem. De acordo com a CPT, na mesma época, aumentaram as ameaças de pistoleiros contratados pelos autores da ação judicial.
O caso do Capão do Modesto, pela atualidade e gravidade, merece mais atenção. Segundo relato de posseiros, trata-se de uma briga antiga, do início dos anos 1980. Começou quando um fazendeiro desmatou a cabeceira do riacho para plantar pinheiros, eucaliptos e pés de caju.
Quando os ruralistas chegaram, há quase 40 anos, relatam os posseiros, derrubaram cercas fincadas por gerações anteriores. Há três décadas, os pequenos agricultores resistem nessas circunstâncias. Às vezes, destroem estruturas e recuperam parte das terras perdidas. Reclamam de ameaças de pistoleiros e agressões físicas.
Os empresários também não desistem e, no acesso às autoridades, acumulam vitórias sobre os ribeirinhos. A sentença favorável à reintegração de posse da juíza Marlise Alvarenga foi mais uma decisão positiva para o agronegócio.
Na nota pública do dia 25 de abril, a CPT de Bom Jesus da Lapa e a AATR relacionam o ato da juíza ao Código Florestal, a Lei n° 12.651, de 2012. A mudança na legislação, realizada há seis anos, permitiu a compensação de reservas legais no mesmo bioma e na mesma bacia hidrográfica onde se encontra a propriedade produtiva.
Agora, proprietários de áreas de reserva legal com extensão superior à exigida pela lei podem negociar o excedente com outros donos de fazenda que tenham desmatado além do permitido. Com isso, explica o comunicado das duas organizações, houve uma corrida por terras no oeste da Bahia, fenômeno denominado “grilagem verde”.
Como saída para o impasse no Capão do Modesto, CPT e AATR propõem a realização de vistorias para reconhecer a veracidade dos documentos dos proprietários. Pedem, também, a abertura de uma Ação Discriminatória Administrativa Rural (Adar) a fim de verificar indícios de que se trata de terra devoluta. Esse tipo de ação, previsto na legislação da Bahia, identifica e delimita as áreas não pertencentes a particulares.
Após a sentença, intensificaram-se as pressões para que os ribeirinhos saíssem do Cerrado usado para soltar o gado nos meses de abril, maio, setembro, outubro e novembro. Como havia animais na área na época da decisão judicial, o Ministério Público assegurou que eles tivessem tempo para retirar as criações.
Nesse ambiente, os posseiros dizem ter sofrido violência de empregados armados da empresa Estrela Guia Segurança Privada, que trabalha para os ruralistas. Em pelo menos um caso, os funcionários da firma levaram um ribeirinho à força para Correntina.
A Estrela Guia não se manifestou sobre as perguntas enviadas pelo Metrópoles por e-mail a respeito desses fatos.
No processo do Capão do Modesto, seis pessoas físicas e uma firma, a Agropecuária Sementes Talismã Ltda., aparecem como autoras da ação contra os posseiros.
A empresa contesta o histórico de ocupação do Capão do Modesto apresentado pelos posseiros e pela nota pública assinada pela CPT e AATR. “Os produtores rurais reivindicam, com amparo na lei e na Constituição Federal, a manutenção de sua posse legítima, mansa e pacífica sobre área de sua propriedade devidamente registrada nos cartórios competentes e averbada como reserva legal”, diz a Talismã.
Em resposta às perguntas da reportagem, a empresa argumenta que existe uma “campanha de desinformação” e a “tentativa de politizar” a discussão a respeito das terras. “Esse local é de mata nativa do Cerrado e abrange parte considerada como Área de Preservação Permanente [APP], nos termos da legislação ambiental em vigor, passou recentemente a ser invadido por pessoas, com o intuito de o transformarem em pastagem de seu gado”, acrescenta a Talismã, referindo-se à região onde ocorre o embate com as comunidades locais. Essa reserva legal tem 9.400 hectares.
Sobre as agressões físicas e ameaças, a Talismã afirma desconhecer qualquer relato ou informação a respeito.
As denúncias de violência praticada por empresas contra pequenos agricultores estão sendo investigadas pela delegacia de Correntina. Fortemente armados e vestidos de preto, os homens da Estrela Guia fazem rondas no campo a bordo de carros potentes. A companhia de segurança possui sede em Barreiras e os funcionários têm licença para usar armas.
A contratação de serviço de vigilância com armamento legalizado e aparatoso é recente na região de Correntina. Antes, o perfil dos vigilantes das fazendas era outro.
Nas conversas com ribeirinhos e autoridades, usa-se com frequência a expressão “pistoleiros” para se referir aos homens a serviço dos fazendeiros que chegaram a partir de 1980.
“Eles querem nos intimidar e tentar correr com a gente da nossa terra”, afirma Juscelino Santos Brito, 60 anos, presidente da Associação Ambiental de Preservação dos Pequenos Criadores de Brejo Verde, comunidade próxima ao Arrojado.
Em depoimento ao Metrópoles, Brito relatou refregas tidas com seguranças armados nas terras em demanda. No ano de 2014, ele estava entre os 60 homens que, com ferramentas na mão, participaram da derrubada de uma cerca do fecho de pasto da sua família.
Os fazendeiros reergueram a cerca e construíram uma casa. Mais uma vez, as comunidades do Arrojado reagiram. Segundo o relato de Brito, pelo menos oito pistoleiros protegiam as obras quando quase 80 ribeirinhos chegaram.
Armados de revólveres e espingardas, os empregados dos fazendeiros tentaram impedir a derrubada da cerca e da casa. Mas prevaleceu a superioridade numérica dos pequenos agricultores e tudo foi abaixo novamente. Dois tratores também foram queimados. “Não temos arma de fogo. Levamos facão, foice e porrete. Para defender seus direitos, arma de pobre é porrete”, afirma o presidente da associação.
Passados quatro anos dessas brigas, Brito ocupa a linha de frente na resistência dos geraizeiros. Presente na invasão da Igarashi, ele é um dos investigados no inquérito policial.
“Se eu for punido pela Justiça por lutar pelas águas, estarei satisfeito. Não estou fazendo isso só por mim, esses recursos naturais beneficiam toda a população, daqui até o mar”, afirma.
Enquanto fala, Brito aponta para o leste, na direção do litoral, distante uns 600km em linha reta. De fato, o Arrojado flui para o Rio Corrente, afluente do Rio São Francisco, que “vai bater no meio do mar”, como diz Luiz Gonzaga na música Riacho do Navio.
No povoado Grilo, localizado a poucos quilômetros de Brejo Verde, outro representante dos ribeirinhos tem histórico de pelejas com empregados dos fazendeiros. Osvaldino Oliveira de Santana tem 52 anos e preside a Associação dos Fundos de Fecho de Pasto do Rio Arrojado.
Em 2012, Santana fez parte de um grupo que rendeu 17 homens armados encarregados de proteger uma área cercada pelos fazendeiros. “Tinham espingardas, pistolas e muita munição. Levamos todos para a delegacia de Correntina, mas foram soltos e nada aconteceu com eles”, diz.
As constantes rixas com os seguranças obrigam os Santana a viver em desassossego.
“A preocupação com essa situação não tem fim. Quando a gente sai, a família não sabe se a gente volta”, explica o ribeirinho.
Mesmo cismado com a possibilidade de desfechos trágicos, Santana expõe o estado de espírito dos agricultores locais diante do risco de esvaziamento dos rios e do lençol freático. “A comunidade está disposta a enfrentar os que nos prejudicam. Podemos juntar até 2 mil pessoas se for preciso. Dependemos dessas águas para viver”, diz o agricultor.
O quebra-quebra efetuado por algumas centenas de pessoas na sede da Fazenda Igarashi teve repercussão imediata na imprensa nacional, nas redes sociais e no Congresso.
Vídeos e fotos do ato mostraram ao país o grau de violência da manifestação. As imagens mais chocantes registraram queda dos postes da subestação elétrica, máquinas em chamas e instalações hidráulicas desmanteladas. Mulheres e homens com os rostos encobertos gritavam e faziam barulho enquanto derrubavam as estruturas.
Canais de TV e representantes dos fazendeiros trataram o ato como “vandalismo”. Na tribuna, a senadora Ana Amélia (PP-RS) atribuiu a quebradeira “ao exército do Lula”, uma referência a militantes que apoiam o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
O governador Rui Costa, petista, ficou do lado do agronegócio. “Mandei a polícia imediatamente ao local. Quero saber quem patrocina os bandos de destruição no oeste”, declarou.
Ex-deputado pelo PSDB de São Paulo e ex-presidente do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), Xico Graziano disse ter sido um “verdadeiro terrorismo no campo”.
Em artigo publicado no Poder360, o político tucano relacionou o episódio da Igarashi a ações de destruição desencadeadas no passado pelo MST. Sites e blogs antiesquerdistas também responsabilizaram os sem-terra pelos estragos na fazenda.
O MST negou envolvimento na invasão. De fato, na apuração desta reportagem, não foi identificada atuação direta do movimento nacional dos sem-terra no protesto de Correntina. Nem faria sentido: no perfil dos participantes, predominam famílias que lutam para não perder as áreas onde plantam, colhem e vivem.
Deve-se registrar, porém, a ligação dos protestos de Correntina com a pauta dos movimentos sociais organizados. Os interesses comuns podem ser observados, por exemplo, na composição do CBDDH, o comitê de Direitos Humanos que acompanha as investigações policiais.
Temas relacionados à luta pela terra e ao combate ao agronegócio unem os ribeirinhos a segmentos de atuação nacional, como CPT, MST e MAB. Nas reuniões e manifestações contrárias aos grandes fazendeiros, também se apresentam militantes de legendas como PSol, PT, PV e PCdoB.
Partidos e outras organizações têm interesse em encampar as reivindicações das comunidades tradicionais, principalmente como estratégia para expor suas propostas aos moradores da região. Na prática, porém, a defesa da água transcende as influências de grupos políticos específicos.
Parte da comunidade de Correntina e da região manteve-se mobilizada nos meses seguintes à invasão da Igarashi. Nove dias depois do quebra-quebra, pelo menos 6 mil pessoas — quase um quinto dos 33 mil habitantes do município — fizeram um protesto pacífico nas ruas da cidade. Esses números ajudam a dimensionar importância do assunto para a população.
Famílias de agricultores e de cidades vizinhas juntaram-se em defesa do Arrojado. A maioria atendeu à orientação de vestir roupas pretas. Dispersos na multidão, bandeiras e bonés vermelhos indicavam as preferências políticas de muitos militantes. Caravanas de Santa Maria da Vitória e Bom Jesus da Lapa engrossaram a passeata.
Os manifestantes apoiaram a invasão da Igarashi e reafirmaram a intenção de lutar pela água. Faixas exibidas na caminhada expuseram o sentimento da população: “Se o governo se omite, o povo age”, “Não somos terroristas. Somos defensores dos nossos rios” e “Melhor morrer de bala do que de sede”.
Em 1º dezembro de 2017, uma audiência pública convocada pelo Ministério Público reuniu cerca de 5 mil pessoas da comunidade de Correntina com autoridades municipais e estaduais. O tom geral foi de defesa dos ribeirinhos e críticas ao agronegócio.
Reclamações contra atuação do governo da Bahia pautaram boa parte dos discursos. Em particular, os oradores acusaram o Inema e outros órgãos de não fiscalizar nem controlar a quantidade de água captada pelas fazendas.
Acusaram, também, as autoridades estaduais de não cumprir as decisões tomadas pelo Comitê da Bacia do Rio Corrente, que inclui o Arrojado. Em dezembro de 2015, o grupo deliberou que o Inema não emitisse novas outorgas de captação de água.
Segundo dados apresentados na audiência, o órgão responsável por fiscalizar a preservação do meio ambiente não acatou a orientação e concedeu cinco autorizações, que juntas têm capacidade para abastecer Correntina por 73 dias.
Representante da CPT, o agrônomo Samuel Brito relacionou a crise hídrica com as práticas das grandes fazendas.
“Há 50 anos, existe aqui um modelo baseado na violência, na pistolagem, na grilagem, nos danos ambientais irreversíveis e nos impactos sociais que são imensuráveis”, discursou.
Quando se fala de violência contra os posseiros em Correntina, menciona-se amiúde o nome do ex-policial militar Carlos Erlani Gonçalves Santos, conhecido como Cabo Erlani. Nas palavras do presidente da Câmara da cidade, Ebrain Moreira (PMDB), ditas na mesma audiência, trata-se de “um velho conhecido da polícia que pratica pistolagem no nosso Cerrado”.
Dono de uma empresa de segurança, a CE do Corrente, Santos presta serviço para várias fazendas no oeste baiano. No dia da invasão, trabalhava para a Igarashi e foi uma das primeiras testemunhas a depor na investigação presidida pelo delegado Calçado.
A CE do Corrente não possui licença da Polícia Federal para fazer guarda armada. Mas, nos últimos anos, Santos desentendeu-se pelo menos uma vez com agentes de Correntina por andar acompanhado de um funcionário que portava armamento. Em 2012, três empregados de outra firma do ex-PM foram detidos por não estarem autorizados a realizar esse tipo de serviço. Ele também foi indiciado, em 2016, em inquérito instaurado pela delegacia da cidade.
No dia da invasão, junto com alguns funcionários, o ex-PM filmou de longe o quebra-quebra. Avisado desde a véspera de que haveria um protesto, Santos chegou de madrugada à sede da Igarashi. Mesmo assim, ele foi surpreendido pela violência dos manifestantes. Ao constatar a dimensão do ato, chamou a polícia de Luís Eduardo Magalhães, cidade vizinha.
A equipe de reportagem entrevistou o ex-policial no final de janeiro, na sede da empresa de segurança, em Correntina. Ele fez um relato do dia da invasão, confirmou que a CE do Corrente não tem autorização para fazer patrulha armada e respondeu perguntas sobre as denúncias de que comanda uma rede de homens pagos para intimidar as famílias de pequenos agricultores.
De acordo com Santos, a empresa faz “trabalho preventivo” de segurança, com rondas noturnas, e sua equipe não trabalha armada. Pastor de uma igreja evangélica, o ex-policial foi vereador da cidade de Jaborandi, de 2001 a 2004, e nega qualquer envolvimento com pistolagem. “Como posso ser acusado disso se não apontam nenhuma pessoa que eu tenha tirado a vida?”, reage.
De fato, não há registros de ribeirinhos assassinados em decorrência de brigas com fazendeiros. Nem de tiroteios. As reclamações referem-se a intimidações e agressões físicas por parte de empregados das empresas.
A última morte nesse contexto foi a execução, em 1977, de Eugênio Lyra, advogado de trabalhadores rurais e de posseiros contrários a ruralistas. Aos 30 anos, Lyra entrava no seu carro, em Santa Maria da Vitória, quando levou um tiro na testa. Sua mulher, Lúcia, estava grávida e presenciou a cena. No dia seguinte, ele deporia na CPI da grilagem instalada na Assembleia Legislativa da Bahia, em Salvador.
Wilson Gusmão, o pistoleiro que matou o advogado, foi contratado por um fazendeiro com a ajuda de um grupo de poderosos da cidade.
Ao ser questionado pelo Metrópoles quanto aos relatos dos posseiros sobre as refregas com pistoleiros, o delegado Calçado confirmou ocorrências de ambos os lados da briga. Mas, sem entrar em detalhes, relativizou a importância desses episódios. “Às vezes, os ribeirinhos exageram um pouco”, disse.
O prazo inicial do inquérito chegou ao fim em janeiro deste ano. O delegado pediu prorrogação, a Justiça demorou a responder.
Em 23 de fevereiro, a Igarashi anunciou a retomada das atividades na fazenda de Correntina. Dirigida ao governador da Bahia, Rui Costa, a secretários de Estado e ao delegado Calçado, a mensagem chama os responsáveis pelo quebra-quebra de “vândalos” e diz esperar a punição dos culpados, “incluindo os efetivos planejadores e financiadores da invasão”. No final, o texto pede “imediata e ostensiva segurança” para a “garantia da paz”.
Pelas características da manifestação, os investigadores encontram dificuldades para identificar as fontes de pagamento dos gastos, como pedem a empresa e o governador da Bahia. Os próprios participantes do protesto assumem o custeio do deslocamento, em ônibus lotados, por pouco mais de 100km. São valores modestos para aquelas comunidades e não há indícios evidentes de recursos significativos proporcionados por pessoas ou organizações.
A Justiça deu resposta favorável à prorrogação do processo em abril. “Estamos trabalhando para saber quem praticou cada ato. Quem quebrou, quem colocou fogo. Se não for individualizado, não tem como responsabilizar o grupo todo”, afirmou Calçado em conversa telefônica com o Metrópoles. Mais de 50 pessoas foram ouvidas no inquérito. “Importante observar que os fatos da Fazenda Igarashi são relacionados apenas a água, não tem nada a ver com os casos do Capão do Redondo, que se referem a problema de propriedade de terra”, esclareceu o delegado.
Em abril, a Igarashi abriu a porteira da fazenda para o Metrópoles captar imagens da sede e dos equipamentos de irrigação danificados. Os estragos causados pelos manifestantes haviam sido parcialmente reparados.
A previsão dos proprietários é gerar 400 empregos neste ano. A empresa intensificou a vigilância preventiva na área, “tudo respeitando as regras da legislação brasileira”.
Com sede em Curitiba, a Lavoura e Pecuária Igarashi explora, no município de Correntina, plantações voltadas para o mercado nordestino, como batata, feijão, tomate e cebola. Esses produtos são pouco comuns nos vastos latifúndios do oeste da Bahia e representam um percentual pequeno do faturamento do agronegócio na região.
Os fazendeiros mudaram o foco de produção depois dos maus resultados obtidos com o plantio de eucaliptos e pinheiros na década de 1980. Hoje, as lavouras de soja, milho e algodão tomaram conta do Cerrado baiano. Essas culturas cobrem 2,4 milhões de hectares no oeste do estado, segundo informações da Aiba.
Em relação às denúncias de que a captação hídrica utilizada nas fazendas provoca escassez nos rios, a Aiba afirma que os manifestantes agem sem embasamento técnico-científico. “Eles atribuem o baixo volume dos rios exclusivamente aos pivôs usados na irrigação das lavouras, desconsiderando estudos recentes sobre a disponibilidade hídrica da região, fatores climáticos e o próprio ciclo da natureza”, diz uma nota da associação divulgada na época do protesto na Igarashi.
Junto com as grandes plantações, chegaram práticas ambientais nocivas. Escrito em 2012 pelo Ministério da Saúde, o relatório Vigilância em Saúde de Populações Expostas a Agrotóxicos no Estado da Bahia trata do assunto. “O oeste baiano, onde existe a concentração do latifúndio e do agronegócio, é uma das regiões que mais utilizam agrotóxicos, com a lavoura de soja, milho e algodão”, diz o documento.
“O oeste baiano, onde existe a concentração do latifúndio e do agronegócio é uma das regiões que mais utilizam agrotóxicos, com a lavoura de soja milho e algodão”, diz o documento.
Um exemplo do uso descontrolado desses produtos nas empresas da região foi identificado recentemente pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). Uma operação deflagrada em abril pelo órgão federal, com apoio do Ministério Público Federal, apreendeu 7,7 mil litros e 1,8 tonelada de agrotóxicos com validade vencida nas fazendas do oeste.
Os agentes ambientais também registraram condições inadequadas de manejo desses produtos e fecharam 22 pistas irregulares de pouso de aviões usados na pulverização de agrotóxicos. No total, aplicaram 22 autos de infração, com multas que somavam R$ 2 milhões.
As práticas danosas do agronegócio são tema dos debates estimulados por Araújo, o professor procurado pela polícia por ter participado da invasão da Igarashi. “As enxurradas levam o agrotóxico para nossas águas, mas ninguém é investigado por isso nem pela morte dos riachos. Há muita disparidade de tratamento do Estado na relação com os empresários e ribeirinhos”, afirma.
No rol de desarranjos do oeste, os maiores entraves para a regularização da atividade econômica e das relações sociais estão concentrados na esfera da administração estadual. Tanto as demandas fundiárias quanto as outorgas para captação de água são assuntos do governo baiano. Pequenos agricultores e fazendeiros pedem a ação do estado para solução dos problemas locais.
Desde o dia 15 de fevereiro, o Metrópoles aguarda retorno da Secretaria de Comunicação Social do Governo da Bahia (Secom) sobre oito perguntas relacionadas aos fatos abordados neste trabalho. Apesar de insistentes mensagens e telefonemas, a Secom não respondeu.
O governo estadual não esclareceu quantas outorgas de captação de água foram concedidas para fazendeiros nem a data de assinatura. Assim, não é possível verificar a atuação de cada administração em relação às autorizações de uso de rios e do lençol freático pelas empresas.
De 1980 até hoje, a Bahia teve os seguintes governadores: Antônio Carlos Magalhães (PDS/PFL), João Durval Carneiro (PDS), Waldir Pires (PMDB), Nilo Coelho (PMDB), Rui Trindade (presidente do Tribunal de Justiça da Bahia, interino, por apenas um mês em 1994), Antônio Imbassahy (PFL), Paulo Souto (PFL), César Borges (PFL), Otto Alencar (PFL), Jaques Wagner (PT) e Rui Costa (PT).
A Secom também não informou como o estado fiscaliza o volume hídrico utilizado pelas fazendas. Deixou ainda de explicar o que está sendo feito para resolver os conflitos fundiários e ambientais do oeste. Tampouco respondeu se alguma medida foi tomada desde novembro do ano passado para atender à reivindicação dos ruralistas de reforço na segurança da região.
Sem transparência dos atos oficiais do governo da Bahia, torna-se difícil compreender os conflitos e entender como o estado fiscaliza e resolve os problemas da população.
A história recente do oeste mostra que, quando os ruralistas se estabaleceram na região, os confrontos entre o modelo de desenvolvimento do agronegócio e o modo de vida das comunidades tradicionais se consolidaram.
Antes de a água se tornar o motivo do conflito, o choque entre os antigos moradores e os empresários do Sul era motivado pela posse da terra. Como veremos na segunda parte da reportagem, essa demanda ainda não foi resolvida.
Antes das grandes plantações, o Cerrado nativo do oeste baiano estendia-se até onde a vista alcançava. Os gerais, terras planas do Chapadão Ocidental do São Francisco, permaneciam desertos de povoamento e quase intocados pela atividade humana. As únicas áreas habitadas eram as poucas cidades da região, como Correntina e Santa Maria da Vitória, e as antigas comunidades de posseiros nas beiras dos rios e, sazonalmente, nos fechos de pasto.
Sem cercas, os gerais preservavam as características, na expressão popular, de “um mundão véi sem porteira”
Do ponto de vista fundiário, eram áreas típicas das “terras devolutas”, denominação de parcelas do território nacional reincorporadas pela União no final da vigência do sistema de sesmarias, em meados do século 19. Com a instauração da República, em 1889, essas glebas sem títulos de propriedade privada passaram para o patrimônio dos estados.
A mesorregião do oeste da Bahia compreende, hoje, 24 municípios localizados no planalto entre a margem esquerda do Rio São Francisco e a Serra Geral, nas divisas com Tocantins e Goiás. Nas partes mais altas das terras, quando preservadas, predomina o Cerrado de pequeno e médio porte, com árvores esparsas e entremeadas de capim-do-campo e veredas encharcadas. Perto dos rios, prevalecem as matas fechadas. À medida que se aproxima do São Francisco, a leste, a flora transita para a aridez da Caatinga.
A altitude do oeste baiano vai de 400m a 900m do nível do mar e, fora dos vales dos rios, as terras são planas. Os índices pluviométricos crescem ao se aproximar da serra e variam entre 1000mm e 1800mm, um dos maiores do interior do Nordeste.
De clima tropical, a região tem estações chuvosas e secas bem definidas. Nascentes, córregos e rios que brotam nas divisas com Goiás e Tocantins banham a superfície e correm na direção do São Francisco, ao leste. O Aquífero Urucuia proporciona a riqueza hídrica do subsolo.
As condições naturais do oeste mostraram-se ideais para a implantação de projetos de agricultura irrigada e mecanizada. No início dos anos 1980, os ruralistas de estados ao sul da Bahia descobriram o potencial da região para o agronegócio. O cenário dos gerais, então, começou a sofrer mudanças bruscas.
Com papéis de posse em mãos, empresários rurais avançaram sobre as terras. Promoveram, desde logo, a derrubada do Cerrado e a captação de águas dos rios e do Aquífero Urucuia. A vegetação nativa foi substituída pelo verde das lavouras. As áreas de uso coletivo tornaram-se propriedades privadas em pouco tempo.
Quatro décadas depois da chegada dos primeiros tratores na região, os métodos usados para obtenção dos documentos ainda são contestados pelo Ministério Público. “Existe uma séria questão a ser passada a limpo”, afirmou a promotora de Justiça Luciana Khoury em audiência pública de dezembro do ano passado. “Não são todos os produtores que fizeram grilagem ou invadiram terras, mas esse é um problema local e precisa ser enfrentado”, acrescentou a representante do MP.
O Metrópoles reconstituiu a história de um registro feito em cartório há mais de 70 anos que ajuda a entender como foi produzida a titulação de terras do agronegócio no oeste da Bahia. O enredo teve início em Santa Maria da Vitória (BA) no dia 10 de abril de 1945, data da conclusão do inventário de um homem chamado Timóteo Florêncio de Barros. Na burocracia oficial, o documento da herança desse cidadão ficou conhecido como Matrícula 2280.
As anotações feitas em 1945 pelo cartório serviram de lastro para a apropriação, por empresários ruralistas, de quase 600 mil hectares. A partir das indicações de quatro imóveis deixados como herança por Florêncio de Barros, fazendeiros conseguiram assegurar a posse desses latifúndios na Justiça e nos cartórios.
No Cartório de Registro de Imóveis de Santa Maria da Vitória, a 50km de Correntina, há uma cópia da Certidão de Inteiro Teor dos bens de Florêncio de Barros, a citada Matrícula 2280.
Sem recursos tecnológicos adequados em meados do século passado, os perímetros das propriedades eram imprecisos e, na maioria das vezes, marcados em razão da geografia ou de benfeitorias realizadas no terreno. Nesse contexto, a certidão de 1945 guarda poucas referências sobre as frações dos terrenos pertencentes ao falecido transmitidas aos herdeiros. Juntas, na moeda da época, as cotas de herança foram avaliadas em Cr$106,70.
Em 2011, o governo da Bahia constatou que as terras tituladas com base no registro de 1945 extrapolam os limites de Correntina e espalham-se também pelos municípios de Santa Maria da Vitória, Coribe e Jaborandi. A descoberta foi feita por uma Ação Discriminatória Administrativa Rural, o instrumento legal usado pelo estado para identificar terras devolutas. De acordo com a CPT, a Fazenda da Igarashi invadida no ano passado tem os documentos originados nesse inventário.
A Associação dos Irrigantes da Bahia (Aiba) defendeu os fazendeiros em carta enviada no mesmo ano ao Tribunal de Justiça do Estado da Bahia (TJBA). “Evidente e indubitável a existência de boa-fé nos negócios jurídicos realizados pelos proprietários e sucessores”, diz o documento, referindo-se aos detentores de títulos derivados da Matrícula 2280.
Na mesma carta, a Aiba ressalta os “vultosos investimentos, financiamentos, empregos e impostos”, geradores de “desenvolvimento econômico e social” no oeste da Bahia, proporcionados pelos ruralistas que compraram os papéis contestados pelo Ministério Público.
Perguntada pela reportagem sobre a consistência dos documentos de posse ligados à Matrícula 2280, a Lavoura e Pecuária Igarashi disse ser “a legítima proprietária” do imóvel invadido em novembro de 2017. “Conforme a segurança jurídica do registro público imobiliário e da lei em relação ao seu direito de propriedade”, acrescentou. Ao Metrópoles, a empresa afirmou ainda que atende à função social da fazenda ao atuar na “produção de alimentos destinados aos brasileiros”.
Dona da Fazenda Passagem Funda, mesmo nome de propriedades originais da Matrícula 2280, a Companhia de Integração Florestal afirma que essa é designação de uma região e que se trata de um “homônimo”. “A nossa área possui matrícula, registro e toda documentação que a legaliza, não sendo objeto de qualquer disputa qualquer”, declarou a empresa.
Espremidas pela agroindústria, as antigas famílias de posseiros perderam áreas usadas como fechos de pasto por algumas gerações. Inicialmente, defendiam-se com a derrubada de cercas e ações como o fechamento do canal em 2000.
Aos poucos, os ribeirinhos começaram também a buscar recursos na legislação para tentar manter as áreas coletivas. A princípio, tiveram o amparo da Lei Estadual nº 3.038, de 1972, que estabelece a preferência dos posseiros nas medições das terras públicas que ocupam.
Desde a promulgação da Constituição de 1988, os ribeirinhos conquistaram outros argumentos jurídicos para permanecer nas terras de uso comum. De acordo com o artigo 215 da Carta Magna, o Estado brasileiro deve proteger as “manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional”. Nesse sentido, a União é obrigada a zelar pelos “modos de criar, fazer e viver”.
De acordo com o artigo 215 da Carta Magna, o Estado brasileiro deve proteger as “manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional”
Promulgada em 1989, a Constituição Estadual da Bahia reconheceu o direito das associações de posseiros na concessão de uso das áreas de fechos de pasto, denominação exclusiva das comunidades baianas.
O Decreto nº 6040, de 2007, assinado pelo então presidente, Luiz Inácio Lula da Silva, representa mais um passo em favor dos ribeirinhos e institucionalizou o conceito de comunidades tradicionais: “Grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica”.
Por fim, a Lei Estadual n° 12.910, de 2013, autoriza a concessão do direito real de uso às comunidades de fundos e fechos de pasto em terras devolutas. Para tanto, as posses devem preencher condições como utilidade coletiva e produção familiar. Os beneficiados precisam, também, autodeclarar-se integrantes das antigas populações dos gerais.
Fundos de pasto são áreas semelhantes aos fechos, mas recebem essa denominação quando ficam contíguas ao terreno onde os geraizeros constroem casas para morar com a família. A maior parte do ano, eles vivem nas beiras dos rios.
Com a legislação nas mãos, os ribeirinhos do Arrojado buscam regularizar suas terras. Aos poucos, as associações de posseiros obtêm certificados de concessão de uso de suas áreas. Levantam-se, ao mesmo tempo, contra a expansão das grandes fazendas no Cerrado.
Se perderem os espaços conquistados pelas antigas gerações, estarão extintas as tradições dos geraizeiros. O modo de vida dos ribeirinhos do Rio Arrojado e as comunidades de fecho de pasto são tema da terceira, e última, parte desta reportagem.
Os geraizeiros têm vida dupla. Durante a maior parte do ano, os homens labutam com as famílias nas casas próximas aos rios e córregos. Uma vez por semestre, porém, passam algumas semanas sem as mulheres, acampados em cabanas rústicas nos fechos de pasto.
A tradição de levar o gado para os gerais no final e no início do período de chuvas determina o modo de vida dos ribeirinhos no oeste baiano. Essa prática permite poupar o capim plantado nos vales úmidos para os meses de seca.
Juscelino Santos Brito, apresentado na primeira parte da reportagem, mora com a mãe e alguns parentes na terra da família, localizada nas barrancas do Rio Arrojado. Sexagenário, mantém uma roça perto da casa, faz rapadura e cachaça para vender. “Meu pai e o pai dele nasceram aqui. Então, penso que tenho direito de resistir nesse território”, afirma o agricultor, presidente da Associação Ambiental de Preservação dos Pequenos Criadores de Brejo Verde.
Duas vezes ao ano, Brito leva o gado para os fechos de pasto, como todos os vizinhos. Nessas ocasiões, os homens cuidam das criações assim como fizeram seus pais, avôs e, em muitos casos, até bisavôs e trisavôs. Com abnegação, dias a fio, campeiam a cavalo para não deixar bois e vacas fugirem pelos milhares de hectares que somem no horizonte, sem cercas nem porteiras. Também tratam animais doentes e socorrem bichos atolados nas veredas.
Os fechos de pasto, de modo geral, são controlados por uma família de ribeirinhos, mas agregam vizinhos e amigos. Para não ficar longe de suas casas por muito tempo, os geraizeiros revezam-se na lida e uns zelam as reses dos outros. Assim, praticam trabalho coletivo.
A colonização do município de Correntina teve início no século 18 com atividades de garimpo nos currais em torno do Rio São Francisco. Nessa época, também chegaram famílias fugidas da seca ou de conflitos em outras regiões do Nordeste. Como aconteceu em grande parte do Brasil, o aparecimento dos exploradores de fora representou o sufocamento da cultura indígena local.
A abundância de água e terras férteis fixou os antepassados dos atuais ribeirinhos nos vales do oeste baiano. Com o tempo, eles descobriram a riqueza da vegetação do Cerrado e adotaram o sistema de fecho de pasto, que perdura até hoje. Apesar da pressão dos grandes fazendeiros, a prática se mantém viva.
Em qualquer época do ano, os geraizeiros recorrem à vegetação nativa e extraem madeira e frutas silvestres, complementos importantes para os recursos das beiras dos rios. Durante dois séculos, a baixa densidade demográfica e esse modo de vida mantiveram o Cerrado de pé.
Convidado pelos ribeirinhos a conhecer mais sobre a cultura dos geraizeiros, o Metrópoles esteve em um dos fechos de pasto usados há mais de um século por moradores do Rio Arrojado. Fincados no chão e separados por poucos metros, postes de eucalipto cortados ao meio acompanham alguns quilômetros do caminho. São marcas de uma cerca derrubada pelos posseiros.
A visita foi ao Fecho do Tarto, posse da mesma família há quatro gerações. “Meu pai veio para cá chamado pelo sogro dele, meu avô, que já estava aqui”, conta João de Abreu e Silva, o João de Tarto.
A rotina dos homens gira em torno de uma cabana próxima ao riacho que corre por uma vereda. Sem paredes e com teto de telha tipo Eternit, abriga camas rústicas de madeira, cobertas com lençóis e colchões surrados.
As refeições são preparadas em fogões a lenha ou fogueiras acesas no chão. Na visita do Metrópoles, o cardápio foi arroz, feijão, carne de gado, galinha cozida e paçoca, tudo com grande fartura.
Na tradição dos geraizeiros, as conversas seguem noite adentro. As cantorias e a cachaça temperada com plantas do Cerrado animam o ambiente tranquilo. Nessas ocasiões, os mais velhos contam casos e repassam para os mais novos o que viveram naquele mundo.
O gado fica solto nos gerais e bebe água nos riachos. Currais simples, cercados de arame farpado e madeira rústica, facilitam o manejo das criações. Apenas homens frequentam os fechos de pasto. Mas algumas mulheres, às vezes, os acompanham. “Eu não costumava vir, a cultura daqui é muito machista, mas percebi que não precisa ser assim e, de uns anos para cá, de vez em quando venho junto”, diz Aliene Barbosa e Silva, 38 anos, uma das presentes
Filha de João de Tarto e mãe de três filhos, ela é funcionária de uma escola municipal e, nos últimos anos, engajou-se na luta dos posseiros.
Aliene comparece a reuniões das comunidades, participa de manifestações e atua na conscientização das ribeirinhas sobre a importância das causas feministas e da preservação da cultura dos geraizeiros. “Para muitas mulheres, seria até melhor que os fechos de pasto acabassem, porque elas ficam muito preocupadas com os maridos longe de casa”, explica Aliene, moradora do povoado Grilo.
Presidente da Associação Gado Bravo a Lodo, outra agremiação de ribeirinhos do Arrojado, Jamilton Santos de Magalhães milita em favor da preservação da tradição.
“Esse é um modo de vida que deu certo por muito tempo e está se extinguindo. Se o povo não tivesse reagido, já teria acabado”, afirma.
Magalhães pertence a uma numerosa família de agricultores e gosta de conversar com os mais velhos sobre os tempos passados. Ele busca preservar os conhecimentos regionais sobre a natureza, particularmente os que dizem respeito a plantas medicinais.
A família de Magalhães faz doces para vender em Correntina. Duas vezes por semana, centenas de ribeirinhos comercializam produtos de suas terras em feiras da cidade. Os moradores da região levam frutas, verduras, legumes e queijos. Apesar da falta de água, os vales do município proporcionam fartura de comida para a população.
Na preparação e na venda dos produtos, a participação feminina é grande. A presença de mulheres nas mobilizações dos ribeirinhos desenvolve-se com mais força nos povoados das margens do Arrojado. Nessas comunidades, desde crianças, as pessoas se banham nas águas cristalinas do rio. Porém, nos últimos anos, a queda na vazão hídrica impede a população de desfrutar, como antigamente, dos poços e corredeiras nos fundos de suas casas.
Às vésperas da invasão da Igarashi, os moradores de São Manoel do Norte perceberam que, antes encobertas, formações de pedras do leito do rio apareciam na superfície – sinal de que o nível baixara um pouco mais. A redução brusca da água provocou o protesto de 2017.
Ativa na preparação da manifestação, a comerciante Sidneia Andrade da Silva, pertence à segunda geração que confronta os projetos dos fazendeiros. Moradora de São Manoel do Norte, ela é filha de Horácio Andrade, que, em 2000, participou do fechamento do canal irregular, mostrado na primeira parte da reportagem.
“Não podemos desistir da nossa luta, todos dependem da água”, diz.
Dalvina Magalhães Dourado, 81 anos, e o marido, José Francisco Dourado, seu Deca, 88, contemplam com nostalgia os efeitos cruéis da escassez hídrica no quintal de casa. Buritis plantados há oito décadas morreram na vereda atrás do engenho de cana.
Há quatro anos, o casal também viu secar o estreito canal que desviava água do rio, irrigava o quintal e passava na porta da cozinha da casa. “O rego [riacho formado pelas águas da chuva] começou a desaparecer depois de uma firma montar carvoaria aqui perto”, afirma Dourado.
Esses canais, de mais ou menos meio metro de largura, são o sistema mais comum de irrigação das pequenas propriedades no Vale do Arrojado. Serpenteiam pelos fundos das casas, alguns com até 10 quilômetros, e molham árvores frutíferas e pequenas lavouras próximas ao rio.
Mesmo no final do período de chuvas, em janeiro, boa parte dos canais deixou de irrigar a terra dos agricultores familiares. Os pomares morrem nessas condições. Na paisagem dos vales, as mangueiras secam à beira dos canais sem água.
Desde a infância, como todos os homens do vale, Dourado aprendeu a cavalgar até 40 quilômetros para chegar ao fecho de pasto da família. Passava dias e noites no lombo de cavalo, sob o sol e o céu de estrelas. Nessa toada, desfrutou em plenitude a tradição dos geraizeiros: caçava, pescava e vivia ao ar livre.
Nos áureos tempos, a fartura de mantimentos produzidos na posse foi suficiente para criar os 17 filhos do casal. Dessa prole, 14 mudaram-se das terras da família. A maioria foi para Brasília, em busca de oportunidades melhores de trabalho.
Dourado e a esposa colhiam até 60 sacos de arroz anualmente. Atualmente, compram o produto na cidade. No passado, também plantavam mandioca, café, banana, abacate e laranja. A moagem da cana tomava três meses do ano. Hoje, apenas alguns frutos ainda restam no quintal.
“Agora não tem mais água, não chove mais”, lamentam.
Os incômodos começaram quando um vizinho vendeu as terras para um fazendeiro de outro estado. O ruralista mandou derrubar cercas e devastar o Cerrado. A perfuração de poços artesianos fez as águas baixarem, conclui o ribeirinho.
Enquanto observa as terras onde passou a vida inteira, o velho agricultor manifesta seu estado de espírito diante do rego seco e das árvores sem frutos no quintal: “Tenho dó de vender este lugar. Todo o esforço que fiz é para deixar isso aqui para os netos”, diz Dourado. Para alegria dele e da esposa, mesmo os descendentes que moram longe passam com frequência os fins de semana na região.
Também morador das margens do Arrojado, Balbino de Castro e Silva, 67 anos, sofre as consequências da redução da água no município de Correntina. No fundo de sua casa, na barranca do rio, uma roda d’água repousa sem uso há três anos, porque a correnteza baixou de nível e não alcança mais o equipamento usado para irrigar as pequenas lavouras e o quintal do agricultor.
“Deve ter quase 200 anos, pois foi construída pelo meu bisavô”, diz Silva, sobre a roda d’água. Trata-se de uma peça feita de madeira de lei e montada com maestria pelo antepassado do ribeirinho. Em quase dois séculos de existência, enquanto o Arrojado permaneceu cheio, a instalação manteve-se em atividade.
Muito comum no interior do Brasil, esse tipo de roda funciona com a força de rios. A correnteza toca na extremidade inferior do equipamento e, ao mesmo tempo que o faz girar, enche de água compartimentos semelhantes a baldes, que abastecem um sistema de canos usado na irrigação das lavouras. “Agora, com tudo seco, a gente tem vontade de trabalhar, mas não tem como”, lamenta o agricultor.
Silva, Magalhães, o casal Dourado, Tarto e a filha representam o modo antigo de conviver com a terra e a natureza. O desenvolvimento levado para a região pelas grandes empresas inviabiliza as práticas tradicionais e, embora proporcione empregos e renda, provoca riscos ambientais e desperta preocupações em toda a população.
Há autoridades, como o prefeito de Correntina, que defendem a presença do agronegócio, mas temem os efeitos da irrigação nos rios e no lençol freático. “Ainda não sabemos o impacto das lavouras, precisamos de mais estudos, mas a chuva também diminuiu muito nos últimos anos”, diz Nilson Rodrigues, também ribeirinho do Arrojado.
No final de janeiro deste ano, a equipe de reportagem esteve na casa de João Barbosa Magalhães, 90 anos, morador da comunidade de Brejo Verde. Sentado na varanda, João Nego, como é conhecido, conversou por quase duas horas sobre sua longa vivência no Vale do Arrojado e nos fechos de pasto. “Eu tinha 7 anos quando fui pela primeira vez para os gerais. A viagem a cavalo levava dois dias. De lá para cá, vou sempre. Então, são 87 anos que ando por aí. Não tem lugar que eu não conheça na região”, disse o ribeirinho.
Enquanto a tarde caía, o velho geraizeiro contou, com gestos largos e prosa solta, casos antigos das andanças pelo Cerrado. Lembrou, também, detalhes da degradação ambiental do município nas últimas décadas. Foi um relato autêntico e original de um nonagenário de voz firme, olhar atento, memória aguçada e rosto vincado por vento e sol.
A escassez de água começou a dar sinais depois que dois fazendeiros protegidos pelo prefeito da época chegaram e intimidaram os antigos moradores com armas de fogo, proferiram ameaças e mataram vacas nos pastos. Em seguida, derrubaram 20 mil hectares de Cerrado nativo e instalaram pivôs centrais para irrigar as lavouras.
O Arrojado nunca foi o mesmo. Com pouca água no rio, o rego secou. O ribeirinho, então, parou de plantar feijão e arroz há alguns anos. Pela mesma razão, está decidido a arrancar os pés de coco. Manterá apenas a cana e o gado.
Quando o dia começa a escurecer, a entrevista encaminha-se para o final e João Nego, em tom grave, faz um pedido aos governantes: “Eu queria que as autoridades acabassem com os pivôs de irrigação das fazendas. Se fecharem os pivôs, a água volta de novo para nós”. O geraizeiro é, antes de tudo, um esperançoso.