“Trabalhei 90 dias para receber R$ 40”
Em dias de chuva, trabalhadores da fazenda onde Sebastião capinava disputavam espaço com o gado para dormir no curral. Localizado no interior do Maranhão, o alojamento montado para os “peões”, como eram chamados os escravizados, foi construído em lona e não suportava o peso da água.
Quando estava calor, não era possível dormir debaixo do teto de plástico. “Era normal amarrar a rede debaixo do pé de manga e deitar com os mosquitos atacando”, lembra. Sebastião vive essa realidade desde os 12 anos. Saiu de três cativeiros diferentes, sempre com auxílio de equipes de fiscalização do Trabalho.
“Naquela situação, a gente tá precisando de socorro para sair dali e receber nosso dinheiro. Quando esse pessoal do resgate chega, nos sentimos outra pessoa. Não ficamos falando baixinho, olhando para o chão. Ganhamos voz”, diz.
Sebastião viu, entretanto, o mesmo cenário de exploração repetir-se em diferentes lugares. “Toda vez era assim: quando ia receber o salário, diziam não ter pra pagar. Queria mandar dinheiro pra minha família, minha mulher esperando menino, as crianças com fome e eu só podendo esperar”, relata.
Ele é cunhado de Marinaldo, também ouvido pela reportagem, e cita o mesmo episódio no qual o patrão tratava os porcos melhor do que os empregados para relatar o ápice de sua humilhação.
“Quem tem escraviza quem não tem. Nós, pobres, não botamos preço no nosso trabalho. A exploração já começa ali”
Em todos os seus “empregos”, Sebastião teve de pagar até pelo esmeril que afiava a foice para roçar o mato, o que gerava servidão por dívidas. Em 2007, trabalhou 90 dias em uma fazenda e recebeu R$ 40 pelo serviço. “Pelas minhas contas, daria R$ 860. O ‘gato’ [aliciador] botou a arma na minha cabeça e me deu só isso. Gastei R$ 25 com passagem e cheguei em casa com R$ 15”, afirma.
Sebastião tem seis filhos e, em todas as vezes que acabou escravizado, pelejava para dar-lhes um destino diferente. Seus meninos estão na escola a duras penas. “Quero que a vida deles seja muito diferente da minha. Não posso nem pensar em suas mãos agarrando o cabo de uma foice. Se eu tivesse tido estudo, seria outra pessoa”, conclui.
Não é por acaso que um grupo específico da população brasileira tem sido historicamente preterido de políticas públicas, ressalta Ynaê Santos, historiadora da Fundação Getulio Vargas e doutora em história social pela Universidade de São Paulo (USP). “Existe a naturalização da escravidão no Brasil para pessoas de determinada cor e de determinados locais de nascimento. A desigualdade é um projeto nacional, não apenas decorrência da falta de preparo do Estado. Os homens que estão no poder querem se manter ali a qualquer custo”, diz.