“O pior é ver fIlho com fome e não ter dinheiro nem pra farinha”








Era quase hora do almoço e o fogão a lenha tinha apenas uma panela de barro praticamente vazia sobre ele. Mingau de farinha e água foi servido às crianças, para que elas não fossem à escola de barriga vazia.

A situação é comum na casa de Sebastião de Oliveira Cunha, 51 anos, pai de 12 filhos, três vezes escravizado. Fugindo da fome, ele foi aliciado em 2009, 2012 e 2013. “Aqui é muito difícil sobreviver, não tem emprego de nada, só Deus para dar força e coragem”, lamenta. Sebastião mora em Juçareira, uma cidade no interior do Maranhão onde só se chega de balsa e na qual a “escola” são alguns banquinhos espalhados à sombra de uma mangueira.

Na primeira vez que viveu a exploração, em Marabá (PA), ele aceitou trabalhar basicamente em troca de comida, sem salário fixo. Roçava mato das 5h às 18h, de domingo a domingo, sem saber quanto receberia em dinheiro. Nos três meses que ficou na fazenda, ganhou apenas algumas moedas. A mulher e os filhos sobreviveram graças ao Bolsa Família.

O almoço era uma sardinha dividida por quatro homens. Famintos, eles caçavam tatus no mato para silenciar o ronco da barriga. Os 16 escravizados se uniram para fazer uma vaquinha. Conseguiram R$ 40 e um deles fugiu da fazenda para denunciar o crime a uma organização não governamental (ONG) e ao Ministério do Trabalho. Um mês depois, a equipe de fiscalização chegou à propriedade e libertou os trabalhadores.

De volta a Juçareira, Sebastião tentou viver da pesca e do que plantava no quintal. Em 2012, veio a proposta para trabalhar em um latifúndio em Serraria, povoado maranhense. O patrão pagava R$ 10 por uma “linha de mato” roçada (cerca de 50 metros quadrados). “Se não tirasse tudo no mesmo dia, não recebia nada. Era tanta terra que dava desespero”, lembra. O galpão onde os escravos dormiam era escuro e sujo. Por isso, os homens precisavam andar curvados para não baterem a cabeça no teto. Novamente, os fiscais do Trabalho agiram para quebrar o cativeiro após uma denúncia.

Igo Estrela/Metrópoles

O terceiro resgate também ocorreu no Maranhão, no povoado de Faísa. “Nessa fazenda, conheci pessoas que estavam escravizadas havia 12 anos. Eu tive sorte e saí de lá em três meses”, relata.

Ali, serviam feijão com bichos acompanhado de arroz estragado para os funcionários. Não havia uma geladeira no local e os alimentos apodreciam devido ao calor. Dessa vez, Sebastião saiu de mãos vazias, não recebeu após o resgate nem o valor referente aos direitos garantidos por lei.

Oficialmente, Sebastião foi escravo três vezes, mas perdeu as contas dos momentos que sofreu com a exploração de sua força. Aos 8 anos, trabalhou fazendo tijolos e jamais frequentou uma sala de aula.

Igo Estrela/Metrópoles

Ele incentiva os filhos a seguirem um caminho diferente, tanto que Jéssica e Franciele, as mais novas, vão à escola e já sabem escrever o próprio nome. Se vivessem em outros tempos, as meninas seriam chamadas de ingênuas. O termo era usado, à época da escravidão legalizada, para definir o filho de um escravo que nasce livre.

“Nessa fazenda, conheci pessoas que estavam escravizadas havia 12 anos. Eu tive sorte e saí de lá em três meses”

A história, porém, passa de pai para filho. O mais velho, Jovane Saraiva, 26 anos, também já foi resgatado durante uma fiscalização de trabalho escravo em uma fazenda de gado. Recentemente, a situação financeira de Sebastião agravou-se e ganhou enredo de tragédia.

Ele teve de vender tudo que tinha, cinco galinhas, dois porcos e uma vaca que garantiam alimentação à família, para pagar por um advogado. Um dos filhos de Sebastião foi preso por porte ilegal de arma. No momento da detenção, o rapaz procurava o assassino do irmão mais velho, cujo corpo foi incendiado por este homem, um traficante. O advogado recebeu o dinheiro, não prestou o serviço e desapareceu.

A morte violenta do primogênito abalou o pai. Sebastião ergueu um altar no quintal de sua casa. Todos os dias, no mesmo horário, ele faz uma oração e pede pela alma do filho. Também roga à vida que trate melhor os que ficaram.

Escravidão como herança

Igo Estrela/Metrópoles

A maior parte dos entrevistados acredita ter descendência africana e/ou indígena. O professor do curso de história da Universidade Estadual do Maranhão (Uema) Reinaldo dos Santos Júnior estuda esse tipo de conexão.

Atualmente, o especialista faz pesquisa relacionada à iniciativa Slave Wrecks Project, sobre a chegada de escravos africanos para o Maranhão em 1794. Reinaldo e alunos bolsistas pretendem visitar algumas regiões para fazer um levantamento sobre a origem dessas pessoas.

Em novembro de 2009, foram encontrados restos do navio São José Paquete de África, naufragado em 1794, na costa sul do continente. A embarcação foi à então capitania do Maranhão com africanos, provavelmente moçambicanos, escravizados, segundo documentação náutica. O estudo pretende mapear se há descendentes dessas pessoas vivendo atualmente na região.

“Tentaremos compreender o percurso do São José e reconhecer os proprietários da embarcação em Moçambique e na capitania maranhense. Também pretendemos entender o processo diaspórico como um todo e a formulação de identidades africanas – ou, pelo menos, mapear os locais impactados e seu efeito econômico e social para a região”, declara Reinaldo.

O professor iniciou a pesquisa coletando documentos do Arquivo Público e do Tribunal de Justiça do Maranhão. “Esses papéis me darão respaldo sobre a vida escrava dessas pessoas, quem eram seus proprietários, o sexo deles, se casados ou não, suas idades e quais seus ramos de trabalho. Tudo isso nos ajudará a localizar os escravos moçambicanos em nosso estado”, descreve.

Dívida histórica

Igo Estrela/Metrópoles

Historiadora da Fundação Getulio Vargas e doutora em história social pela Universidade de São Paulo (USP), Ynaê Santos ressalta a importância de estudar a história brasileira e africana para entender a escravidão. “A maior prova da ignorância do brasileiro sobre a própria história são as pessoas dizerem que negros foram responsáveis pela escravidão”, afirma.

Ynaê relata que, antes de o tráfico de negros ser instaurado pelos europeus, existiam escravos na África, mas eles não eram comercializados. “Tratava-se de um produto de guerra, de sequestro. Quem começou a trazer o escravo como mercadoria foi a Europa. Isso reestruturou totalmente aquela sociedade”, explica. Ela lembra ainda que 12 milhões de africanos foram trazidos à força para as Américas.

Compartilhe



VEJA OUTRAS HISTÓRIAS:


Diretora-Executiva
Lilian Tahan
Editora-Executiva
Priscilla Borges
Editora-Chefe
Maria Eugênia
Coordenação
Olívia Meireles
Reportagem
Leilane Menezes
Revisão
Denise Costa
Edição de Fotografia
Daniel Ferreira
Fotografia
Igo Estrela
Edição de Arte
Gui Prímola
Design
Moisés Amaral
COORDENAÇÃO DE VÍDEO
Gabriel Pereira
IMAGENS E EDIÇÃO DE VÍDEO
Gabriel Foster
ANIMAÇÃO
Tauã Medeiros
Tecnologia
Allan Rabelo
André Marques
Saulo Marques