“Eu era escravo e nem sabia”








Depois de ter sido libertado três vezes em fiscalizações de trabalho escravo, Marinaldo Santos, 48 anos, decidiu buscar resgate em outra fonte: a educação. “Se eu tivesse estudado, não teria passado por isso. Ser escravo é coisa que não era para acontecer nem uma vez e comigo aconteceu três”, relata.

Há poucos meses, o agricultor voltou ao banco da escola para aprender a ler, escrever, somar e multiplicar. Depois de trabalhar – agora de maneira regular – em uma plantação de arroz durante o dia, ele vai ao colégio, em Pindaré Mirim, no interior do Maranhão, onde vive.

Os olhos cansados se esforçam para mirar o quadro e gravar aquelas informações, as mãos calejadas conduzem o lápis e a caneta sobre o papel. Tudo em busca de refúgio, de traçar uma rota de saída para uma nova realidade.

Marinaldo foi libertado de fazendas de gado em 2010, 2012 e 2015. Fiscais da Secretaria Especial da Previdência e Trabalho, órgão vinculado ao Ministério da Economia, agentes do Ministério Público do Trabalho (MPT), forças policiais, Ministério Público Federal (MPF) e Defensoria Pública da União (DPU) compõem as equipes de resgate.

Tudo começa com o “gato”. O aliciador hospeda-se em um hotel e, com ofertas de emprego, inicia a busca por moradores vulneráveis da cidade. “Na primeira vez, eu estava desempregado, e minha mulher, grávida. Fui com outras 15 pessoas, todas dentro de um caminhão. Chegando lá, começaram as dívidas. A gente era obrigado a comprar bota, enxada e comida muito cara, que vinha da venda do dono da fazenda”, lembra.

Antes de partirem, o trabalhador recebeu R$ 200 do “gato” e deixou o dinheiro com a mulher, para garantir a alimentação da família. Foi a única quantia recebida por Marinaldo em mãos. O salário nunca chegou.

“A escravidão continua, só deixaram de botar as correntes. Eu era escravo e nem sabia”

– Marinaldo

Igo Estrela/Metrópoles

Havia meninos de 14 anos trabalhando junto do grupo. Um deles matou um frango para comer e foi açoitado como os escravos de antigamente: com chicote, em público, para servir de exemplo.

“O jagunço dizia que não tinha como pagar e ameaçava a gente com uma arma. Ninguém tinha nem um real para tentar sair do meio do nada e pedir ajuda”, conta. Mesmo assim, um dos colegas de Marinaldo se desesperou e fugiu. Encontrou um orelhão e conseguiu fazer a denúncia a uma organização não governamental (ONG).

Marinaldo conseguiu voltar para casa, mas retornou à extrema pobreza somente com o dinheiro do seguro-desemprego. Aliciado novamente, em busca de condições para comprar comida, ele acabou em uma fazenda do Pará.

“Um amigo tinha dito que lá era muito bom, mas tava era trabalhando pro ‘gato’. Eles tomaram nossa carteira de trabalho na chegada e nos enfiaram em uns barracos no meio do mato”, diz.

Ali, a água tinha ferrugem e o único alimento disponível era açaí, que os trabalhadores retiravam do pé e misturavam com farinha. Um dos colegas de Marinaldo morreu nessa fazenda. “Enquanto isso, os cachorros comiam até biscoito recheado”, diz.

“Eles falavam: ‘Larga de besteira. Pobre não adoece, tem saúde de animal’. E deixavam morrer”, relata. Uma denúncia anônima levou o resgate até lá, três meses após a chegada de Marinaldo.

A terceira vez ocorreu em uma propriedade no Maranhão na qual o dono prometia pagar R$ 1,50 a cada 50 metros quadrados de terra roçada com enxada. O agrotóxico usado na plantação escorria para a nascente onde os trabalhadores bebiam água. “A gente tinha veneno no sangue.”

“O fazendeiro mandava salgar bastante a comida para a gente ter que beber bastante água de poça, junto com os bichos. Era tortura”

Os relatos de Marinaldo e dos outros trabalhadores ouvidos pela reportagem se assemelham, demonstrando a existência de um padrão de tratamento aos que são tidos como escravos por empresários e donos de terras.

“Na hora de dormir, era numa casa velha, cheia de porco. Um trabalhador botou um dos bichos para fora e levou uma surra. O fazendeiro dizia: ‘Esse animal é mais gente que vocês e nele ninguém pode tocar’”, contou.

A vida só começou a mudar após o terceiro resgate, ocorrido depois de um trabalhador acionar a fiscalização. Nessa época, o Centro de Defesa da Vida e dos Direitos Humanos Carmen Bascarán, diante do alto índice de escravidão no local, passou a atuar onde Marinaldo vive.

Agentes comunitários ofereceram palestras sobre direitos humanos, garantias trabalhistas, história da escravidão e reforma agrária. Deram cursos não só aos trabalhadores resgatados mas também a seus familiares: de culinária, cabeleireiro e manicure.

Marinaldo tornou-se líder comunitário contratado pela ONG para disseminar conhecimento e proteção. Já recebeu prêmios pela sua atuação contra o trabalho escravo e salvou pessoas de caírem nas mesmas situações. “Existe uma dívida histórica. Não é à toa que os ‘gatos’ são brancos e os escravos são pretos. Não é possível que vai ser pra sempre assim”, afirma.

Tentativas de mudança

Igo Estrela/Metrópoles

Em 1997, o Brasil reconheceu que há formas de escravidão contemporânea no país. Desde então, o combate a essa prática foi reforçado. “A primeira medida de prevenção foi a emissão de guias de seguro-desemprego, a partir de 2003”, relata Lys Sobral, procuradora do MPT.

Lys é coordenadora do projeto “Ação interinstitucional para qualificação e reinserção profissional dos trabalhadores resgatados do trabalho análogo a escravo e/ou de trabalhadores de comunidades vulneráveis a essa situação no estado de Mato Grosso” e representante regional da Coordenadoria de Erradicação do Trabalho Escravo (Conaete).

A ação é uma parceria entre o MPT, a Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) e a Superintendência Regional do Ministério do Trabalho e Emprego em Mato Grosso (MTE-MT). Em 2017, o Ministério Público do Trabalho assinou o acordo com estudiosos do trabalho escravo da Universidade Federal da Bahia (UFBA) para pesquisar a eficácia das ações.

“A análise aponta para sérias limitações na inserção desses indivíduos no mercado de trabalho. Em um contexto de crise econômica, com alto índice de desemprego, outras medidas são necessárias. Não basta apenas elevar o nível educacional com cursos técnicos”, admite Lys.

“O mercado não abrange todo mundo e, mesmo qualificados, trabalhadores resgatados da escravidão se sentem frustrados por não conseguirem empregos melhores. Isso exige intervenção urgente do Estado”

– Lys Sobral, procuradora do MPT

O estudo aponta para a necessidade de reforma agrária e da fixação dessas pessoas no local de origem delas para que possam manter plantações de subsistência. “A divisão territorial no Brasil foi fundada economicamente no trabalho escravo e na concentração de terra. A Constituição prevê que a propriedade só é legítima se cumprir função social. As áreas onde há trabalho escravo deveriam ser expropriadas, de acordo com o artigo 243 da Constituição, mas isso não ocorre”, afirma a procuradora.

O pesquisador Sávio Dias, do curso de estudos africanos e afro-brasileiros da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), mapeou elementos que levam à reprodução do trabalho escravo no estado onde mais pessoas são aliciadas. A conclusão é a tese de doutorado “Trabalho escravo e questão agrária no ‘Novo Nordeste’ brasileiro: vulnerabilidade socioeconômica e estudo sobre as condições de produção do campo”.

“Os grandes projetos que prometiam desenvolvimento trouxeram mais vulnerabilidade para uma parte da população. O que é produzido em riqueza não fica para a população local, mas é produzido a partir da riqueza da população”, explica.

Dias ressalta a necessidade de abandonar medidas paliativas. “Deve haver incentivo à agricultura familiar e acesso à terra. O empobrecimento da população faz com que ela migre para outras regiões. Sem acesso à educação, terra e renda, essas pessoas provavelmente acabam aliciadas.”

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