“Sofri abuso sexual enquanto era escravo”








Quase 10 anos após tornar-se livre, Ademir Barros Furtado tem pesadelos sobre o tempo que passou escravizado. Os donos da fazenda tomaram posse dele de todas as maneiras possíveis.

O peso do corpo de outro homem sobre o dele, contra a sua vontade, ainda o sufoca quando fecha os olhos para descansar. Estupros eram frequentes em uma das propriedades rurais onde viveu. “O abuso deixava a gente completamente constrangido. Uma pessoa dessa não é um ser humano”, diz.

Os jagunços recusavam a fornecer remédio aos trabalhadores que adoeciam. Ademir teve dor de dente e implorou por ajuda. O aliciador, conhecido como “gato”, disse que, se “ficassem juntos”, daria analgésicos a ele. “Me levou para o mato e me ameaçou de morte com uma arma. Nunca me deu o medicamento e ainda abusou de mim”, relata.

Quando foi resgatado pela primeira vez, em 2005, no povoado de Arara (MA), Ademir acreditou que jamais viveria situação parecida novamente. O trabalho começava às 6h e ia até as 17h. A água tinha uma “nata” de ferrugem por cima e adoecia quem a bebia. A distância entre o barraco onde os trabalhadores dormiam e a área do serviço era de 2 quilômetros. Muitas vezes, o caminho era percorrido com fome e sede. “Tomava água e logo sentia vontade de vomitar. Éramos muito maltratados”, relata.

Capatazes andavam com arma na cintura e promoviam jogos de aposta com os trabalhadores. Como não tinham dinheiro, criavam-se ali dívidas que deveriam ser pagas com trabalho. Também vendiam fiado cachaça e cocaína aos explorados. “Eram uma quadrilha. Roubavam as partidas, só eles ganhavam e os meus colegas viviam drogados”, lembra.

Igo Estrela/Metrópoles

Os colegas fizeram uma vaquinha para que Ademir pudesse ir até a cidade denunciar os abusos. Ele percorreu 12 quilômetros a pé para telefonar a uma organização não governamental (ONG) de combate ao trabalho escravo. Na primeira tentativa, ninguém atendeu. Por isso, teve de retornar até conseguir contato. O salvamento aconteceu 48 dias após a ligação. Os patrões pagaram o que deviam e os resgatados voltaram para suas casas. Ademir conseguiu emprego como ajudante de pedreiro, mas logo foi demitido.

Os abusos relatados por ele ocorreram em 2009, em uma fazenda de Vila Itainópolis, no Pará. Lá comia-se açaí e mortadela em todas as refeições. “Até hoje vivo adoentado. Muitos morreram. A escravidão acontece nas barbas do Brasil, que finge que ela não existe”, diz.

Novamente, foi Ademir quem fez a denúncia ao Ministério do Trabalho. Dessa vez, demoraram 73 dias para entrar na fazenda e salvar os escravos. Desde então, ele teve acesso a palestras sobre direitos trabalhistas e aprendeu a reconhecer propostas criminosas.

Correntes invisíveis das senzalas modernas

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Maurício Fagundes, coordenador da Divisão de Fiscalização para Erradicação do Trabalho em Condição Análoga à de Escravo (Detrae) da Secretaria Especial da Previdência e Trabalho, órgão vinculado ao Ministério da Economia, explica o processo que ocorre após o resgate.

“O segundo procedimento é a reparação de danos: pagamento de verbas rescisórias, notificação para quitar parcelas e concessão do seguro-desemprego de três meses, no valor de um salário mínimo. O terceiro passo é encaminhar à assistência social e a programas de capacitação”, descreve.

As empresas flagradas explorando trabalhadores também são multadas e o dinheiro deve ir para o Fundo de Amparo ao Trabalhador. Só em 2018, mais de 2 mil autos de infração foram lavrados. O empregador tem prazo para defesa de cerca de seis meses. Se aceitar pagar em primeira instância, recebe 50% de desconto. O valor fica entre R$ 402 e R$ 40 mil. O então Ministério do Trabalho, porém, se recusou a fornecer dados a respeito dessa arrecadação. Segundo especialistas, a quantidade de multas pagas é ínfima.

“Me levou para o mato e me ameaçou de morte com uma arma. Nunca me deu o medicamento e ainda abusou de mim”

Outro problema, segundo o doutor em trabalho escravo Sávio Dias, é a não quitação das indenizações. Os ex-escravizados morrem antes de receber qualquer valor por morosidade da Justiça. “Quanto custa a desumanização de uma pessoa?”, questiona.

Um dos lugares beneficiados com verbas desse fundo é o Centro de Defesa da Vida e dos Direitos Humanos Carmen Bascarán, referência em trabalho social no Maranhão. Eles oferecem aulas de capoeira, teatro, costura e reciclagem, além de auxiliarem famílias de trabalhadores resgatados.

“Quando você não cobra a multa, nega um direito de reparação. Muitos aqui nem sabem o que é trabalho escravo, acham normal ser explorado, por isso precisamos oferecer noções de cidadania”, explica Maria Aparecida Moreira, agente da Centro Carmen Bascarán.

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