Varig
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O uniforme impecavelmente alinhado nem parece ter sido guardado numa gaveta por quase duas décadas. De terninho azul-escuro, saia xadrez, meia-calça preta e lenço amarelo no pescoço, Vera Lúcia Amorim rememora alguns dos anos mais alegres de sua vida. “Fui muito feliz aí dentro”, suspira ela, diante da carcaça de um imponente Boeing 767-200 da extinta Transbrasil.
O esqueleto está estacionado na Avenida Elmo Serejoconheça o caso, próximo ao Parque Ecológico Saburo Onoyama, em Taguatinga – periferia do Distrito Federal e distante 22 quilômetros da região central de Brasília.
Ex-comissária da companhia aérea que encerrou as operações em 2001, Lilian Amorim – seu nome de guerra na aviação –, 55 anos, emociona-se ao narrar histórias de bordo. O olhar nostálgico, no entanto, dá lugar a uma expressão sisuda quando ela fala sobre o fim melancólico da empresa.
De um dia para o outro, Lilian ficou desempregada. Para piorar, a ex-gigante dos ares não lhe pagou centavo algum de direitos trabalhistas. “Foi um baque enorme. De repente, me vi sem chão, sem salário e completamente desamparada”, conta. A fim de conseguir se sustentar, ela começou a desfazer-se de bens conquistados ao longo de toda a vida.
“Primeiro, vendi um apartamento no Rio de Janeiro; depois, um em Brasília. Meu padrão de vida despencou abruptamente.”
Lilian Amorim, 55 anos, ex-comissária da Transbrasil
Hoje aposentada pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) por tempo de contribuição, Lilian ainda aguarda na Justiça um desfecho favorável do processo movido para receber cerca de R$ 200 mil. Drama compartilhado – em maior ou menor grau – por milhares de aeronautas e aeroviáriosconheça a diferença brasileiros. Além da Transbrasil, as igualmente gigantes do setor Vasp e Varig também fecharam as portas na década de 2000 e deram calote bilionário em seus funcionários.
Segundo levantamento do Tribunal Regional do Trabalho (TRT) e do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região (TRT-2), em São Paulo, há 7.191 processos trabalhistas em tramitação contra os três grupos: a Vasp é acionada em 4.315 deles; a Varig, em 2.050; e a Transbrasil, em 826. O débito ultrapassa os R$ 3 bilhões, em valores atualizados. Se forem consideradas dívidas com fornecedores, fundos de pensão e impostos não pagos ao governo, o montante beira os R$ 20 bilhões.
As três empresas se apresentaram sólidas durante décadas. Seus fechamentos repentinos foram duros golpes na vida de profissionais que nunca tiveram outros empregos e já se encaminhavam para a aposentadoria. A maioria dos trabalhadores mais jovens conseguiu se recolocar no mercado em outras companhias aéreas. Os grupos em atividade, contudo, preteriram aeromoças, comissários e pessoal de áreas administrativas com idades acima dos 40 anos.
Sem espaço na aviação, muitos profissionais mais experientes engoliram o orgulho e, para sobreviver, passaram a se virar em subempregos. O ex-planejador de escalas de voos Eduardo Chermont de Barros, 56 anos, entrou para as estatísticas de brasileiros desocupados em julho de 2006, ao receber um telegrama de desligamento da Varig. “A primeira reação foi a de não acreditar. Como uma das empresas que já foi a maior da América do Sul quebra assim?”, questiona-se.
A duras penas, ele assimilou a demissão. Pensou que os 18 anos e seis meses de serviços prestados à aérea lhe renderiam uma boa indenização e tranquilidade até arrumar outro ofício. Contudo, assim como os colegas dispensados pela Varig – foram cerca de 9 mil no total –, Eduardo Chermont saiu de cena com uma mão na frente e outra atrás.
Sem renda fixa, começou a fazer bicos de segurança informal em eventos e estabelecimentos. O drama pessoal de Eduardo se agravou com o diagnóstico de que havia perdido 45% da audição nos dois ouvidos.
O problema é consequência das centenas de deslocamentos feitos até as aeronaves já ligadas para repassar à tripulação informações sobre alterações em escalas. Naquela época, a empresa não fornecia equipamento de proteção auricular.
“É muito revoltante saber que temos direito e não podemos usufruir dele. Tiraram o meu emprego, a minha audição e a minha dignidade.”
Eduardo Chermont de Barros, 56 anos, ex-planejador de escalas de voos da Varig
Ao ingressar na Vasp, em 1982, Bruno Cappocanoli sonhava em se aposentar pela empresa. Durante 20 anos, o projeto parecia caminhar conforme o planejado, até que, em 2002 – três anos antes do fechamento definitivo da companhia –, ele foi demitido sem ter acesso à sua rescisão contratual. Bruno prefere não revelar quanto tem a receber, mas diz ser um valor que representaria alívio em seu orçamento.
Já fora da Vasp, aos 45 anos, fez diversas entrevistas de emprego em outras aéreas, mas percebeu que a experiência acumulada mais o atrapalhava do que ajudava a conseguir voltar ao ofício de comissário de bordo. “O fator idade pesou. Ou virava a página ou sucumbia”, conta, resignado.
Sem bagagem em outro ramo profissional, teve de se reinventar para manter a família. Com economias guardadas, montou um escritório de telefonia móvel. O negócio vingou por cinco anos. Hoje, ele ganha a vida vendendo docinhos italianos caseiros em uma loja batizada com seu sobrenome.
“Estava empregado num serviço que eu achava estável e só tinha plano A. De repente, a vida te obriga a elaborar planos B, C… Além de ter migrado para a gastronomia, também me viro fazendo bazar, feiras e eventos.”
Bruno Cappocanoli, 61 anos, ex-comissário de bordo da Vasp
O declínio das três potências da aviação nacional provocou uma corrida de desempregados em busca de reposicionamento no mercado de trabalho. Nem o surgimento da Gol Linhas Aéreas, em 2001, e o crescimento da TAM – atual Latam – foram capazes de absorver toda a mão de obra.
Para se ter ideia do tamanho do problema, em 2000, a Transbrasil, a Vasp e a Varig tinham, juntas, 24 mil funcionários, entre pilotos, comissários, mecânicos de avião, auxiliares, vendedores de passagens e outros profissionais.
João Ricardo Motta, 53 anos, também faz parte da massa mandada para o olho da rua com as garantias trabalhistas completamente ignoradas. Embora fluente em espanhol e inglês, inclusive com experiência de guia turístico em Nova York (EUA), deparou-se com enormes dificuldades para permanecer no ofício de comissário.
Além da frustração por não conseguir voltar a voar, a preocupação com as contas o assombra. Com as reservas perto do fim, está prestes a perder o apartamento financiado pela Caixa Econômica Federal, devido ao atraso no pagamento das prestações. A Defensoria Pública do Rio de Janeiro pediu a revisão da dívida e, agora, João Motta espera uma decisão judicial para saber se será despejado do imóvel com seus quatro filhos.
Não bastasse a batalha para manter a moradia, João Motta luta como pode para levar alimento à família. Cansado de peregrinar de porta em porta entregando currículo, decidiu vender churrasquinho na esquina de casa, uma realidade bem diferente da época em que servia caviar aos passageiros da classe executiva da Varig.
O negócio informal nem de longe lhe rende o suficiente para voltar a ter uma situação financeira estável, mas garante o necessário para se manter. Curioso, também aprendeu a consertar computadores e fazer estampas de camisetas, atividades que ajudam a pagar as dívidas. Apesar de exercer a função de vendedor ambulante com bom humor, João Motta confessa – com os olhos marejados – sentir saudade dos tempos áureos da aviação.
“Sonho quase todos os dias que estou dentro de um avião, servindo as pessoas. Era a coisa que eu mais amava. Quando acordo, sento na cabeceira da cama e choro. Sei que, pela idade, é algo que não vou mais voltar a fazer.”
João Ricardo Motta, 53 anos, ex-comissário da Varig
Ricardo de Camargo, 50 anos, é o mais triste exemplo de como a morosidade da Justiça brasileira pode sugar a dignidade humana. Ex-comissário de bordo da Varig, fluente em inglês e com uma bagagem cultural moldada ao longo de quase duas décadas de viagens mundo afora, ele, agora, implora por comida nas ruas de São Paulo.
Após perder absolutamente todos os bens materiais, entrou em depressão, virou alcoólatra e passou a mendigar para sobreviver. Os “Variguianos” – como se intitulam os ex-trabalhadores da companhia – tentaram ajudá-lo, fornecendo roupas, comida e moradia.
Ele ficou hospedado durante um tempo na casa de João Motta – o ex-comissário que hoje vende churrasquinho no Rio de Janeiro –, mas regressou à situação de vulnerabilidade social ao voltar para São Paulo. Atualmente, os ex-colegas não têm mais notícias de Ricardo.
“É praticamente alguém de muletas tentando ajudar outro em uma cadeira de rodas. Como somos solidários na dor, tentamos nos unir e caminhar juntos. Mas somos todos Ricardos, todos enfrentamos nosso calvário diário esperando uma luz no fim do túnel.”
João Motta, sobre o colega Ricardo de Camargo
A história de degradação humana de Guilherme Gottel, 52 anos, culminou em tragédia. Contemporâneo de João Motta no comissariado da Varig nas décadas de 1990 e 2000, Gottel não suportou o fardo de viver em dificuldades extremas. No último dia 25 de julho, na casa de sua mãe, na Ilha do Governador (RJ), o ex-comissário se matou.
Após dedicar mais de duas décadas ao transporte aéreo, Luiz Motta, agora com 60 anos, tira parte do sustento com a prestação de transporte terrestre. Anos depois de conhecer o mundo pernoitando nos mais sofisticados hotéis, o ex-comissário complementa sua aposentadoria pelo INSS rodando em um aplicativo de corridas de passageiros.
Assim como a esmagadora maioria dos colegas demitidos da Varig, ele também tentou entrar em outra companhia aérea, mas viu suas chances desaparecem na entrevista de emprego quando revelou a idade. “Fiquei [de fora da seleção] por causa da idade, considerada avançada. Chegaram ao absurdo de pedirem para eu e outros candidatos tirar a camisa e mostrar o abdômen, pois não queriam homens com barriga na empresa”, revela.
Luiz Motta dividiu por anos a função de bordo com a colega Moema Ribeiro, 60. Em terra firme e bem distante do glamour de outrora, a dupla agora junta forças para cobrar seus direitos. Ao tirar de dentro de uma caixa de papelão as centenas de fotos do glorioso e próspero tempo da aviação, a mulher se emociona.
Mesmo tendo cerca de R$ 1 milhão a receber da antiga empregadora, Moema vive com dificuldade. Um câncer agressivo no pulmão, descoberto em 2016, a fez gastar seus últimos R$ 16 mil. Desiludida com o mercado de trabalho e debilitada, passou a se dedicar exclusivamente a cuidar da mãe, uma idosa de 89 anos que já não consegue mais andar sozinha.
Mesmo com cerca de R$ 1 milhão a receber da Varig, a ex-comissária Moema vive com dificuldade: gastou seus últimos R$ 16 mil no tratamento de um câncer
Moema Ribeiro se emociona ao olhar fotos do tempo em que ganhava a vida nos ares
Luiz Motta, ex-comissário da Varig, complementa aposentadoria rodando em um aplicativo de corridas de passageiros
Ex-comissário Luiz Motta tem mais de R$ 1,2 milhão para receber de dívidas trabalhistas e fundo previdenciário
“Tiraram de mim não só um emprego; tiraram uma paixão, meu orgulho.”
Moema Ribeiro, 60 anos, ex-comissária de bordo
Em quase 20 anos de ações e recursos na Justiça, apenas os ex-empregados da Vasp, entre 2015 e 2016, conseguiram receber cerca de 15% dos valores aos quais têm direito. O pequeno alívio foi possível após o Ministério Público do Trabalho (MPT), o Sindicato Nacional dos Aeronautas e o Sindicato dos Aeroviários no Estado de São Paulo ajuizarem uma Ação Civil Pública contra a companhia, seus administradores e empresas que formavam o grupo econômico Canhedo Azevedo.
Depois de um longo embate nos tribunais, a Fazenda Piratininga, localizada no norte de Goiás e à época pertencente à família do empresário Wagner Canhedo, SAIBA QUEM É?foi arrematada, em lance único de R$ 430 milhões, pela Conagro Participações Ltda. Além de ser dono da Vasp, Canhedo era proprietário da Viação Planalto (Viplan), que transportou passageiros em coletivos no Distrito Federal por quase quatro décadas. Em 2017, a Justiça do DF decretou a falência da Viplan.
No caso Vasp, Canhedo sofreu mais uma derrota após o Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região (TRT-2), em São Paulo, determinar a alienação de outras duas fazendas de sua propriedade: a Santa Luzia e a Rio Verde, ambas em Goiás. Na ocasião, em 2015, as posses rurais foram vendidas por R$ 177 milhões.
No entanto, os pagamentos estão suspensos. Os administradores da massa falida da Vasp exigiram que os valores fossem destinados à antiga companhia aérea para posterior repasse aos trabalhadores. Massa falida é uma espécie de firma criada por determinação judicial com objetivo de localizar e gerenciar o restante de aeronaves, obras de arte, imóveis, sucatas e outros bens passíveis de serem negociados, a fim de liquidar o débito do grupo.
Segundo o advogado e especialista em direito aeronáutico Carlos Duque Estrada, que representa mais de 800 ex-funcionários das três gigantes de outrora, no caso da Vasp, há ainda a possibilidade de o governo de São Paulo se responsabilizar pelo restante da dívida da companhia. “O estado chegou a ter 40% das ações da Vasp e representação no conselho administrativo da empresa. Portanto, é dever chamá-lo à responsabilidade e quitar [com sua participação] esse passivo”, defende.
A Justiça concordou com o argumento do defensor e colocou o governo paulista no polo passivo da ação, mas o Palácio dos Bandeirantes – sede do Executivo estadual – recorreu. O agravo tramita no Superior Tribunal de Justiça (STJ) e ainda não foi analisado pela Corte.
Das três empresas, a situação da Varig, em teoria, é a mais bem encaminhada para um desfecho favorável aos ex-trabalhadores. Na prática, contudo, o descumprimento de decisões por parte do próprio Estado trava a liberação de um recurso bilionário que poderia aliviar a penúria dos antigos funcionários.
Em 2017, os demitidos da companhia venceram um imbróglio judicial ao cobrarem da União a reparação de prejuízos causados pela política econômica de congelamento de preços das passagens aéreas imposta pelo Plano Cruzado (1985–1992). A medida iniciou o processo de quebra da empresa.
Em agosto do ano passado, o Supremo Tribunal Federal (STF) determinou que a União indenizasse o grupo em R$ 3 bilhões. Com as correções aplicadas, os valores ultrapassam a cifra de R$ 7 bilhões. Apesar de se tratar de decisão transitada em julgado – portanto, não mais passível de recurso –, esse dinheiro pode ficar retido com o próprio governo federal, que cobra da Varig uma dívida bilionária referente a impostos.
Além disso, o pagamento dos ex-funcionários pode atrasar ainda mais porque não está estabelecido quem receberá primeiro. O dinheiro deve ser usado para honrar passivos trabalhistas individuais e reforçar o caixa do Aerus – fundo de previdência privada criado para pagar os aposentados da Varig, mas que ficou sem recursos com a derrocada da empresa.
No entanto, ex-empregados que aderiram ao Aerus no passado, com a esperança de gozar de uma renda a mais na velhice, não sabem se serão contemplados. O advogado Carlos Duque Estrada também considera difícil o saldo ser suficiente para amparar os aposentados. Apesar da vitória na Justiça, o defensor admite a improbabilidade de os ex-colaboradores verem a cor do dinheiro em menos de 5 anos.
“Mesmo com o acordo, o governo alega não ter dinheiro. É bem possível que essa dívida se transforme em precatório. Não vejo solução antes de 5 ou 7 anos.”
Carlos Duque Estrada, advogado, especialista em direito aeronáutico
Arraste para o lado
Pelas mãos do alemão Ernst Meyer, surge a Viação Aérea Rio-Grandense, que, posteriormente, ficou conhecida apenas pela sigla Varig. A primeira rota, Porto Alegre-Pelotas (RS), foi feita com um avião Dornier Wal, batizado de Atlântico
O primeiro funcionário brasileiro da empresa, Ruben Martin Berta, torna-se presidente da Varig e ocupa o cargo até sua morte, em 1966
1941
Menos de um ano após o fim da Segunda Guerra Mundial, a Varig tem uma grandiosa expansão e, aproveitando o preço baixo de aviões pós-conflito, compra modelos modernos que abriram rotas até para aeródromos da Região Nordeste, algo inédito à época
A Varig compra a Real Aerovias, principal companhia brasileira no mercado doméstico à época. A operação faz a empresa dobrar sua participação em rotas nacionais e internacionais, e contribui para torná-la a maior viação aérea do país
1961
Começa a se destacar das concorrentes pela qualidade do serviço de bordo. Chega a servir caviar e churrasco no espeto a seus passageiros. Os talheres e louças de alto padrão são vistos como um diferencial
O período de maior investimento da empresa coincide com a forte diminuição, em todo o mundo, de passageiros na aviação comercial. O recuo foi motivado pelos atentados terroristas de 11 de setembro, nos Estados Unidos. No mesmo ano, nasce a Gol Linhas Aéreas
2001
A Varig fecha o ano no vermelho e, para piorar o cenário, assiste a Latam e Gol crescerem ao adotarem o modelo low-cost. As duas empresas passam a vender passagens mais baratas do que as praticadas no mercado, e absorvem grande parte da clientela da Varig
Com dívida estimada em R$ 5,7 bilhões, a Justiça brasileira defere um pedido e os bens da empresa são congelados. No mesmo ano, a TAP Portugal compra as subsidiárias Varig Log e Varig Engenharia e Manutenção
2005
No dia 28 de julho, cerca de 5,5 mil empregados são demitidos. Além de estarem com o salário atrasado há quatro meses, não tiveram seus direitos trabalhistas respeitados. Em 3 de agosto, a companhia faz seu último voo internacional e reduz a frota doméstica para 10 aeronaves
Com nova razão social, a Varig consegue autorização para operar como VRG Linhas Aéreas. A empresa é comprada pela Gol Linhas Aéreas por R$ 320 milhões. É o fim da Varig
2006/2007
Arraste para o lado
Em novembro, no Campo de Marte (SP), sob a liderança de Heribaldo Siciliano, são inauguradas as primeiras duas linhas da empresa: São Paulo-São José do Rio Preto (SP) e São Paulo-Uberaba (MG)
Praticamente falida, a Vasp sobrevive ao ser socorrida pelo Governo do Estado de São Paulo. Ela é estatizada e recebe um grande aporte financeiro
1935
No Aeroporto de Catanduva (SP), a Vasp inaugura suas primeiras linhas diretas para São Paulo, Santos e Rio de Janeiro
A empresa surpreende ao lançar, na aviação comercial brasileira, a primeira aeronave à turbina, a Viscount 800. Pouco depois, trouxe uma similar, a Namc Ys-11
1955
É privatizada. O empresário Wagner Canhedo assume o comando da empresa e investe pesadamente em voos internacionais, abrindo dezenas de rotas mundo afora
O lucro não é proporcional ao gigantesco investimento que a empresa fez. O resultado é um declínio acentuado na receita da companhia
1992
A Vasp começa a atrasar salários e até taxas de navegação. Encerra as rotas internacionais e reduz drasticamente sua frota
Já combalida, a empresa sofre um duro golpe ao ter oito aeronaves proibidas de voar por determinação do Departamento de Aviação Civil (DAC). Segundo o órgão, a Vasp não cumpria exigências técnicas, como a realização de revisões periódicas, colocando em risco a vida dos passageiros
2004
No final do ano, a Vasp detinha apenas 1,39% do mercado. Em grave crise financeira e “engolida” por Gol e Latam, tenta operar com suas últimas três aeronaves
Quando a companhia teve todas as autorizações cassadas, em janeiro, ocorre o último e melancólico voo
2005
Arraste para o lado
Em 5 de janeiro, pelas mãos de Omar Fontana – filho de Attilio Fontana, fundador da Sadia –, surge a Sadia S.A. Transportes Aéreos. A futura Transbrasil nasce com o arrendamento de um Douglas DC-3 para transportar carne fresca de Santa Catarina a São Paulo
Omar Fontana ousa ao combinar os serviços de transporte de cargas com o de passageiros. O primeiro voo do tipo sai de Florianópolis (SC) para São Paulo
1956
Em processo de expansão, a empresa compra a Transportes Aéreos Salvador e amplia sua frota
Década dourada da empresa. Após comprar seu primeiro jato, um BAC 1-11, a razão social é alterada e a companhia passa a se chamar Transbrasil S.A. Linhas Aéreas
1973
As aeronaves são pintadas com cores chamativas e vibrantes. Em pleno crescimento, a Transbrasil passa a ocupar a terceira posição no mercado nacional da aviação
O período de maior investimento coincide com a chamada “década perdida”, que congelou preços, mas não custos. Resultado: prejuízo milionário para o grupo
1980
O proprietário da Transbrasil processa a União e exige indenização por reparação de perdas. No entanto, o governo contra-ataca, faz uma intervenção e afasta Omar Fontana do comando da companhia aérea
Omar Fontana, via decisão judicial, volta ao comando da empresa e inicia processo de expansão das rotas internacionais, porém tais voos não geram o lucro esperado
1990
Com a saúde debilitada, Omar Fontana se afasta do dia a dia da Transbrasil. No mesmo ano, a companhia deixa de operar todos os voos internacionais e reduz drasticamente suas linhas domésticas
Com a morte de Omar Fontana, ocorre uma forte queda da empresa em termos de participação no mercado aéreo brasileiro. Em situação de penúria, a Transbrasil fica sem crédito até para comprar combustível
2000
Já em estado terminal, a empresa sofre um revés ainda maior com a crise da aviação mundial provocada pelos atentados terroristas de 11 de setembro, nos Estados Unidos. Em 3 de dezembro, no Aeroporto de Congonhas (SP), vários passageiros se apresentaram para embarcar, mas se depararam com avisos de que a companhia havia encerrado suas atividades por tempo indeterminado. Era o triste fim da empresa de cores alegres
2001
Para o vice-presidente da Associação de Pilotos da Varig (Apvar), Élnio Borges Malheiros, o processo todo de recuperação da Varig não passou de uma “fraude”. A empresa foi uma das primeiras a se beneficiar, em 2005, da Lei de Falências – como é popularmente chamada a Lei Federal nº 11.101/2005. Porém, além de não ter se recuperado financeiramente, a companhia acumulou uma dívida ainda maior: aumentou de R$ 7 bilhões para R$ 18 bilhões, um salto de 157%.
“Vendeu-se a empresa para recuperá-la, o que já é uma incoerência jurídica. A situação só piorou e não pagaram absolutamente nada aos trabalhadores. Foi um golpe clássico e descarado”, protesta Malheiros.
Autor da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Varig, o deputado estadual do Rio de Janeiro Paulo Ramos (PDT) denuncia ter havido uma trama na gestão da massa falida da empresa aérea.
“Ele mandou um parecer para a Superintendência Nacional de Previdência Complementar [Previc] dizendo que o ideal seria enviar os recursos referentes à indenização direto para a massa falida. Foi parcial, prejudicando os aposentados. Isso não é aceitável”, acusa Paulo Ramos.
O “ele”, ao qual se refere o parlamentar da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj), é Luís Gustavo da Cunha Barbosa, designado liquidante do Plano Aerus de Seguridade da Varig. De acordo com o deputado carioca, a forma como o processo foi conduzido praticamente excluiu os aposentados do rateio bilionário de recursos a serem pagos pela União. Até a última atualização deste texto, a reportagem não havia conseguido localizar Luís Gustavo.
Os ex-funcionários da companhia também reclamam da postura do atual administrador judicial da massa falida da Varig, o advogado Wagner Bragança. Eles o acusam de falta de transparência na gestão dos processos. O grupo reprova ainda as últimas decisões do juiz Alexandre de Carvalho Mesquita, da 1ª Vara Empresarial do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro.
O magistrado chegou a negar o pedido de um ex-trabalhador que exigiu de Bragança a apresentação de notas fiscais, recibos e contratos de prestação de serviço. Por ser o gerenciador da massa falida, o escritório do advogado tem direito a receber 3% de todos os bens vendidos da empresa, cujos valores ficam retidos em conta judicial.
O Metrópoles ligou e deixou recados no escritório de Bragança, mas não houve retorno dos contatados. A reportagem encaminhou ainda, por e-mail, os questionamentos ao juiz Alexandre de Carvalho Mesquita, todavia não obteve resposta também.
Na visão do presidente da Comissão de Direito Aeronáutico da Ordem dos Advogados do Brasil seccional Goiás (OAB-GO), Georges Ferreira, o dilema envolvendo a destinação do ressarcimento da União pode ser dirimido com bom senso.
“Primeiro, estamos falando de um valor que causará impacto muito grande à União e, portanto, deve demorar para começar a ser pago. Segundo, é preciso ser razoável e aplicar a proporcionalidade para que aposentados, pensionistas e aqueles que moveram processos trabalhistas individuais sejam contemplados com alguma quantia”, opina Georges Ferreira.
Bem antes da derrocada de Transbrasil, Vasp e Varig, uma gigante dos ares também sucumbiu. A Panair dominou o mercado da aviação comercial brasileira entre as décadas de 1940 e 1960: tinha a exclusividade de rotas para Europa, África e Oriente Médio, além de operar em vários países latino-americanos e em todo o Brasil.
Orgulho nacional, imortalizada na música Saudades dos aviões da Panair, de Milton Nascimento e Fernando Brant, a companhia teve sua licença de operação cassada pelo regime militar e, em seguida, foi liquidada judicialmente.
Com apenas uma canetada e sem apresentar qualquer motivo, em 1965, o então presidente da República, marechal Humberto de Alencar Castelo Branco, cessou os efeitos da concessão do que era a maior companhia aérea do país. A Varig assumiu, imediatamente, as linhas para a Europa. As rotas domésticas ficaram com a Cruzeiro do Sul.
O ato presidencial deixou a Amazônia isolada, já que as aeronaves da Panair faziam a integração de 43 localidades da região e nenhuma companhia assumiu esses voos. Do dia para a noite, 5 mil pessoas ficaram desempregadas. Assim como os trabalhadores das três gigantes citadas nesta reportagem, os funcionários da Panair também enfrentaram dificuldades para obter seus direitos trabalhistas: muitos ainda brigavam na Justiça por indenização 50 anos após o desmonte da companhia.
As famílias controladoras da Panair travaram uma guerra judicial com a União durante 15 anos, tiveram ganho de causa, mas não receberam reparação financeira ou moral. A Comissão Nacional da Verdade concluiu, em 2014, que a empresa foi liquidada por motivos políticos, e não financeiros.
A situação dos ex-funcionários da Transbrasil também parece estar longe de ser resolvida. Atualmente, os representantes dos demitidos tentam garantir na Justiça uma vitória que permita o sequestro de bens da família de Omar Fontana, fundador da companhia, morto em 2000.
Além disso, a massa falida da Transbrasil espera receber da General Electric Capital Corporation (GE) cerca de US$ 20 milhões. A GE fazia manutenção de aeronaves e foi a autora do pedido de falência da empresa, sob argumento de impontualidade em uma nota promissória no valor de US$ 2,6 milhões.
No entanto, em 2010, ministros da 3ª Turma do STJ entenderam que o protesto movido pela GE contra a Transbrasil correu de forma injustificável. Por meio de perícia feita na documentação apresentada à época, a Corte concluiu: a companhia já havia quitado a dívida de US$ 20 milhões relativa a contratos de leasing de aeronaves e motores.
Existia, ainda, um pedido de indenização à Transbrasil no valor de R$ 402 milhões, mas o STJ o indeferiu por depreender que, apesar do protesto indevido, a GE não agiu de má-fé. O Metrópoles entrou em contato com o escritório de advocacia Manhães Moreira, representante da GE, mas os defensores alegaram não ter autorização para repassar informações sobre o processo.
Na opinião de Marthius Sávio Lobato, professor de direito coletivo de trabalho da Universidade de Brasília (UnB), o Estado é o principal culpado pelo calvário judicial dos milhares de ex-empregados da Vasp, Varig e Transbrasil. Para o docente, os órgãos de controle falharam ao permitir que essas companhias chegassem ao fim sem tomar medidas para evitar o bilionário calote trabalhista.
“No decorrer da vida útil das empresas, as relações delas devem ser transparentes, e era notório que [as aéreas] deram vários sinais antes de quebrar. Se o Estado assistiu suas concessionárias se desmantelarem sem fazer absolutamente nada, ele deve, sim, responsabilizar-se solidariamente.”
Marthius Sávio Lobato, professor de direito coletivo de trabalho da UnB
Enquanto o Poder Público não age para sanar as gigantescas dívidas trabalhistas e sociais das empresas que foram à bancarrota, os ex-empregados que ainda gozam de saúde tentam pressionar a Justiça para acelerar as decisões.
Todas as quartas-feiras, um grupo de ex-funcionários da Varig se reúne em frente ao Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ) para protestar contra a letargia do Judiciário e pedir transparência nas operações financeiras feitas pelos gestores da massa falida da empresa.
“É algo absolutamente incompreensível e fora de propósito. Aplicaram um golpe numa empresa sólida que levava com orgulho a bandeira brasileira para qualquer lugar do mundo. Agora, o golpe é nos direitos dos trabalhadores. Parece que cometemos um crime por ter trabalhado na Varig.”
Roberto Bastos Rangel, 62 anos, ex-despachante operacional de voo
Mesmo atravessando em terra uma turbulência aparentemente longe do fim, a maioria dos trabalhadores mantém a confiança em dias melhores. André Andrade, 45 anos, é um deles. O também ex-comissário de bordo – com R$ 125 mil a receber – passou a dormir de favor em um colchão inflável na casa de um amigo, em Copacabana (Zona Sul do Rio). As roupas ficam guardadas em uma mala que ele usava na época de serviço na companhia.
Para economizar no dia a dia, André optou por uma alimentação baseada em frutas e verduras, itens mais baratos. Nos piores tempos do desemprego, admite ter passado fome. “Já fiquei sem dinheiro para comprar qualquer coisa. No auge da depressão e antes de vir morar com meu amigo e padrinho do meu filho, pedia dinheiro ao porteiro do meu prédio e bebia água da bica”, conta.
Apesar das agruras, não perde o bom humor. “Fico saudável e magro”, diverte-se. Confiante, André aposta que a vida está prestes a dar uma guinada. Seu menino de 9 anos, que mora com os avós em Porto Alegre (RS), vai se mudar para o Rio de Janeiro em dezembro. “Pelo meu filho, estou indo à luta”, diz o ex-comissário da Varig.
Em 2 de julho, alugou um carro e virou motorista de Uber. Na praia, em Copacabana, onde nasceu e foi criado, olha o mar e profetiza ao falar dele e dos amigos de aviação: “A vida é um ciclo. Agora, estamos girando na parte de baixo da roda, mas creio que ela vai girar de novo e vamos parar na parte de cima”.
62 anos
“Muitos colegas que tiveram uma vida confortável como a minha têm vergonha de fazer o que faço: ir para a rua com a cara e a coragem para conseguir um padrão de vida minimamente decente. Quem deve ter vergonha são essas pessoas que estão segurando um dinheiro nosso por direito.”
60 anos
“Uma decisão transitada em julgado determina que mais de R$ 3 bilhões sejam destinados aos ex-trabalhadores. Sem justificativa alguma, não liberam esse dinheiro. Já tiraram milhões da conta judicial para pagar advogados e nós, que passamos dificuldades, não vimos a cor de um recurso nosso.”
55 anos
“A Transbrasil era alegre, viva, uma empresa que dava prazer em se trabalhar. Infelizmente, a má gestão conseguiu destruir a companhia e, junto, o planejamento de muita gente que sonhava parar de trabalhar e gozar uma vida confortável.”
53 anos
“A coisa mais prazerosa da vida era voar. Esses caras roubaram meu sonho, meu futuro. Eu vou à luta pela minha família, mas poderia estar em situação muito mais confortável se tivesse acesso a algo que me pertence.”
62 anos
“Em menor ou maior grau, cada um de nós carrega um drama pessoal após a quebra da Varig. Estamos lutando para conseguir receber o que é nosso e tocarmos nossa vida sem essa sensação constante de injustiça.”
58 anos
“Aplicaram um golpe e mataram a Varig. Como o governo e a Justiça brasileira são cruéis… Matam a gente um pouquinho a cada dia. Não é possível que um trabalhador com todos os direitos reconhecidos passe por esse calvário para ser indenizado após a demissão. Já são 12 anos neste sofrimento.”
50 anos
Ele não foi localizado pela reportagem: está desaparecido.
60 anos
“É muito triste não ter como comprar um presente para o meu neto, não poder sair com amigos para fazer coisas simples. A falta de dinheiro te rouba muitas coisas. Parece que quanto mais corremos atrás dos nossos direitos, mais distante ficamos de uma solução definitiva.”
45 anos
“Eu e minha ex-esposa éramos comissários de bordo e fomos demitidos ao mesmo tempo. De uma hora para outra, não tínhamos mais renda alguma. O casamento acabou, me desfiz de casa e carro. Agora, estou batalhando para me reerguer e cuidar do meu filho.”
O Boeing 767-200, da Transbrasil, com capacidade para 210 passageiros, operava voos internacionais da companhia na década de 1990. A intenção dos empresários que compraram a carcaça da aeronave e a levaram para um terreno particular na Avenida Elmo Serejo, próximo ao Parque Ecológico Saburo Onoyama, em Taguatinga (DF), no ano de 2014, era transformar o espaço em um restaurante especializado em frutos do mar. A novidade tinha até data para ser lançada: março de 2016. Entretanto, dificuldades financeiras atrasaram os planos.
O leilão do esqueleto da aeronave ocorreu como parte do Programa Espaço Livre, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). A iniciativa colocou à venda o modelo abandonado no aeroporto de Brasília e outros dois similares. Um deles foi arrematado por R$ 140 mil; outro, por R$ 138 mil; e o último, por R$ 95 mil. Os sócios, que sonhavam fazer de uma das carcaças restaurante na periferia de Brasília, não revelam qual dos três valores desembolsaram para comprá-la.
Ao todo, os leilões eletrônicos e presenciais promovidos pelo CNJ resultaram em 50 sucatas de aeronaves removidas em diversos aeroportos do país, diminuindo em 80% a quantidade de fuselagens abandonadas nos terrenos dos terminais.
Aeronauta é o profissional que desempenha atividades dentro da aeronave, como pilotos, engenheiros de voo e comissários. Pessoas a bordo com conhecimento técnico para operar equipamentos instalados nos veículos aéreos – como médicos, enfermeiros e fotógrafos de sobrevoo – também podem ser chamadas de aeronautas.
Já o aeroviário é responsável por executar funções dentro das empresas de transporte aéreo, como técnicos em manutenção, auxiliares de serviços gerais, operadores de rádio e sistema elétrico, controladores de voo e até meteorologistas.
O empresário Wagner Canhedo de Azevedo, hoje com 82 anos, chegou a ser preso em Brasília, no ano de 2013, por sonegação fiscal. O ex-dono da Vasp foi condenado por crime tributário praticado entre 1997 e 1999, causando prejuízos ao Fisco de Santa Catarina. À época, ele teria deixado de repassar ao estado quase R$ 490 mil.
Herdeiro do empresário, Wagner Canhedo Filho também se envolveu em encrencas com a Justiça. Em 9 de outubro de 2015, ele foi detido, após ter sido acusado pelo Ministério Público Federal (MPF) de liderar uma organização criminosa suspeita de praticar fraude fiscal, falsidade ideológica, lavagem de dinheiro e associação criminosa. De acordo com o MPF, ele deve R$ 875 milhões aos cofres públicos. Por mais de 40 anos, Canhedo Filho controlou o sistema de transporte coletivo do DF com a empresa Viplan. Só deixou de atuar após o governo local intervir no setor, em fevereiro de 2013.