Cheiro de pão quentinho desperta a memória afetiva da maioria dos brasileiros. Difícil encontrar alguém que, na infância, não adorava ir à padaria e voltar com um saco de pão francês crocante. Com a popularização dos alimentos industrializados, a versão em forma do produto se popularizou e até virou recomendação de nutricionistas, como uma opção mais saudável de lanche.
Nos últimos três anos, o brasileiro tem retornado às origens e está, cada vez mais, comprando pão fresquinho. Voltou até o hábito de congelá-lo para não estragar e poder consumir durante toda a semana. Mas, dessa vez, o paladar do consumidor se sofisticou. Nas prateleiras das padarias, aparecem opções integrais, com grãos, sementes e misturas novas.
O principal ingrediente para se fazer um bom pão é a paciência. A frase da jurada do MasterChef Paola Carosella se refere à forma milenar de preparar o alimento. Afinal, para finalizar o processo de fermentação natural é preciso 15 horas de espera, no mínimo. Dependendo da técnica do padeiro, pode durar dias. Tudo é compensado pela qualidade do produto final, incomparável àqueles industrializados encontrados em supermercados.
Chamado de pão de Cristo, o preparo precisa de uma colônia de bactérias praticamente imortal, podendo ser cultivada por anos. Na Europa, existem padarias que usam há séculos a mesma mistura, também chamada de levain. Quando incorporadas água e farinha, os organismos “acordam”. Em aproximadamente seis horas, a massa torna-se um fermento vivo, essencial para o crescimento e o sabor do alimento.
“Um pão bem feito, com fermentação longa, ingredientes adequados e boa técnica será aromático e mais rico como alimento. A acidez o conservará, a atividade enzimática vai torná-lo leve e o processo todo gerará um melhor processamento do glúten”, resume o consultor gastronômico Luiz Américo Camargo, autor do livro Pão Nosso.
Ele faz uma ressalva: o importante é consumir pães bem-feitos, sem conservantes artificiais e “ingredientes mágicos” (geralmente produtos químicos) descritos nas embalagens. Quanto mais artesanal, melhor para a saúde.
Todas as noites, antes de fechar a loja, os proprietários da Bella Foccacia (Lago Norte), Caio Cézar e João Orlando Neto, alimentam o fermento para ser usado na manhã seguinte. Eles começam a jornada ao nascer do sol: misturam ingredientes, pesam massas, boleiam, assam. O mais trabalhoso, no entanto, é o contato com o consumidor. Muita gente chega à padaria pedindo um pão mais leve, sem glúten, adequado a dietas.
“Precisamos driblar os mitos que surgem em torno do glúten e do pão em si. Às vezes, a pessoa não come pão branco por causa da quantidade de amido. Mas, ao final da fermentação natural, o branco e o integral são quase a mesma coisa, porque o levain consome os açúcares. A diferença é que o integral pode ser mais nutritivo, dar maior saciedade e ter uma quantidade maior de fibras”, descreve João. Para ele, os padeiros têm a missão de ajudar o consumidor a se conscientizar sobre essas diferenças.
A fonte de preocupação da dupla é também a de maior satisfação. Os dois abrem sorrisos largos ao descreverem clientes diabéticos cuja glicemia não se altera após consumir o pão e até mesmo quem deixou de tomar omeprazol – conhecido remédio utilizado no combate a problemas no estômago – para comer o carboidrato. “As pessoas perceberam que a alimentação saudável é baseada na comida artesanal com poucos ingredientes. Não é mais aquela coisa de ir ao mercado e não saber quem fez o pão, de onde veio a farinha”, comenta Caio.
O consumo de pães artesanais está crescendo no país todo. De acordo com a Associação Brasileira da Indústria de Panificação e Confeitaria (Abip), o faturamento com esse estilo de alimento, que abarca pães com levain e o tradicional “francês”, aumentou em 5,4% entre 2016 e 2017. “Pouco a pouco, o método vai conquistando espaço. Mais profissionais querem entender e praticar. Os consumidores, por sua vez, aprendem e aumentam o repertório. Costumo dizer: o gosto não tem marcha à ré. Quando provamos algo bom, não desejamos voltar, queremos mais”, defende Camargo.
Dentro de casa
Quando a gastrônoma Gláucia Reis provou um pão de fermentação natural pela primeira vez, quis aprender a assá-lo em sua residência. Comprou livros, pesquisou na internet e pediu dicas a amigos. A atividade é apaixonante, mas pode ser muito frustrante no início: como se trata de uma colônia de bactérias, dependentes do clima e do tempo, é impossível ter domínio absoluto sobre a massa. Aliás, no começo, o controle é quase nenhum. Os primeiros produtos costumam sair duros, solados e muito ácidos. Com insistência, no entanto, é possível fazer bons exemplares em casa.
Gláucia Reis quis aprender a assar pão em sua residência
Comprou livros, pesquisou na internet e pediu dicas a amigos
Apesar das dificuldades encontradas nas primeiras fornadas, com insistência, conseguiu fazer bons exemplares em casa
A paixão de Gláucia pela panificação se sofisticou
Há três anos, ela passou a usar farinha italiana no preparo
Mas como cada saco pesa 25 quilos, era impossível consumir sozinha toda a produção
A gastrônoma resolveu vender seus pães simplesmente para bancar o insumo
Em seguida, comprou um forno profissional
“Para ter um bom retorno financeiro, eu teria de produzir pelo menos 150 pães por semana”, explica a padeira, que faz no máximo 15 unidades semanais
A paixão de Gláucia pela panificação se sofisticou. Há três anos, ela passou a usar farinha italiana no preparo, mas como cada saco pesa 25 quilos, era impossível consumir sozinha toda a produção. A gastrônoma resolveu vender seus pães simplesmente para bancar o insumo. Em seguida, comprou um forno profissional. O imenso aparelho não passava no corredor de seu apartamento, por isso a cozinheira decidiu derrubar a parede da sala, instalar o equipamento no antigo quarto do filho e reconstruir a própria casa.
“Para ter um bom retorno financeiro, eu teria de produzir pelo menos 150 pães por semana”, explica a padeira, que faz no máximo 15 unidades semanais. Segundo Gláucia, ela aguarda ansiosamente a chegada das segundas-feiras, dia da semana em que prepara as massas. “Meu olho brilha quando a receita dá certo”, brinca. Ela não tem planos de montar um negócio próprio, pois sofre com fortes dores na coluna causadas pela artrose.
Uma iniciativa muito parecida com a de Gláucia virou loja física: a Varanda Pães Artesanais (215 Norte), de Dilson Menezes, começou no apartamento do proprietário. “Naquele momento, percebi que uma operação maior fazia muito mais sentido para a minha vida. Parti, sempre com a ajuda de minha esposa, Raquel, em busca de um lugar maior. O espaço tem crescido organicamente, aos poucos, praticamente do boca a boca”, resume o empresário, que abandonou a carreira de engenheiro civil em nome da empreitada.
Segundo a Abip, o fluxo de clientes em padarias cresceu 1,36% em 2017, representando uma recuperação significativa do setor: o indicador vinha caindo desde 2010, com uma drástica redução de 4,06% em 2016. Os pesquisadores conversaram com donos de 400 estabelecimentos em todo país e 57% deles garantiram que o número de consumidores aumentou no ano passado.
A Varanda Pães Artesanais (215 Norte), de Dilson Menezes, começou no apartamento do proprietário
O empresário abandonou a carreira de engenheiro civil em nome do novo negócio
Abriu uma loja física com ajuda da esposa Raquel
"O espaço tem crescido organicamente, aos poucos, praticamente do boca a boca”, resume
“Naquele momento, percebi que uma operação maior fazia muito mais sentido para a minha vida", disse
Alimento artesanal
Nem todo pão artesanal é de levain: o processo de fermentação lenta pode ser obtido com o uso de fermento biológico. O modelo de negócio da Bella Focaccia, no qual é usado apenas a massa madre, é raro no mercado. “Não há nada de ilegal ou grave em misturar o natural com o biológico, desde que [o segundo apareça] em pequena quantidade, para que sua ação, muito mais potente, não se sobreponha às bactérias e leveduras da fermentação natural”, defende Camargo.
A própria Varanda realiza a mistura. Embora muitos pães levem exclusivamente a fermentação natural, alguns contêm a biológica. “Isso exige bastante cuidado, conhecimento e experiência, é diferente de em uma padaria tradicional, onde se mesclam os ingredientes e, em poucas horas, se tira pão do forno”, explica Dilson.
Caio Cézar e João Orlando Neto começam a jornada ao nascer do sol
Misturam ingredientes, pesam massas, boleiam, assam
Muita gente chega à padaria pedindo um pão mais leve, sem glúten, adequado a dietas
“Precisamos driblar os mitos que surgem em torno do glúten e do pão em si", diz João
Para ele, os padeiros têm a missão de ajudar o consumidor a se conscientizar sobre essas diferenças
A fonte de preocupação da dupla é também a de maior satisfação
Os dois abrem sorrisos largos ao descreverem clientes diabéticos cuja glicemia não se altera após consumir o pão
“As pessoas perceberam que a alimentação saudável é baseada na comida artesanal com poucos ingredientes”, comenta Caio
Na Boulangerie, tradicional padaria francesa da capital federal, somente a baguete clássica é feita com massa madre: todos os outros pães são preparados de forma artesanal, lentamente, utilizando fermento biológico. Quando introduziu o produto de levain em seu mostruário, há alguns anos, o francês Guillaume Petitgas surpreendeu-se com a reação negativa dos clientes.
“As pessoas comiam uma fatia e devolviam, dizendo que estava azeda, estragada. Pediam para revermos a receita. A gente explicava sobre o processo natural, de 15 horas de fermentação, e mesmo assim eles não gostavam. Mas, hoje, percebo que o brasiliense já se acostumou com sabores azedos e láticos”, conta o proprietário. Atualmente, sua maior satisfação é ver clientes saindo da loja já mordendo um pedaço da baguete.
O francês Guillaume Petitgas introduziu produtos de levain em seu mostruário há alguns anos
Ele se surpreendeu com a reação negativa dos clientes
“As pessoas comiam uma fatia e devolviam, dizendo que estava azeda, estragada", conta
Mas hoje, o padeiro percebe que o brasiliense já se acostumou com os sabores azedos e láticos
Sua maior satisfação é ver clientes saindo da loja já mordendo um pedaço da baguete
Ele usa o processo natural de fermentação que demora até 15 horas
O retorno dos consumidores é, para ele, uma das partes mais gratificantes do trabalho
"O dia dessas pessoas começa com o nosso produto. Eu amo isso”, orgulha-se o francês
O retorno dos consumidores é, para ele, uma das partes mais gratificantes do trabalho. Guillaume tem especial carinho por uma cliente de sua unidade da Asa Norte, que avalia quase diariamente a produção da padaria. “Ela compra quatro boules de cereais pela manhã e manda um e-mail contando se ficou bom, se o da véspera estava melhor. Fazemos pão, mas é muito mais. O dia dessas pessoas começa com o nosso produto. Eu amo isso”, orgulha-se o francês.
Força de trabalho
Segundo a pesquisa da Abip, o segmento da panificação representa em torno de 800 mil empregos diretos e 1,8 milhão indiretos nas cerca de 70 mil padarias e confeitarias existentes no Brasil. Em média, uma empresa tem em torno de 12 funcionários, mas isso pode variar. Na Bella Focaccia, Caio e João têm o apoio de mais uma padeira. Já a Le Pain Rustique, que conta com quatro lojas no DF, é uma operação com 25 trabalhadores.
À frente da brasiliense Submore há 24 anos, o empresário Hudson Souza decidiu diversificar seus negócios
Fascinado por panificação natural, rumou a São Francisco, nos Estados Unidos, para aprender a fazer o produto
Ao retornar, fundou a Le Pain Rustique
Nas receitas da casa, o levain se mistura ao fermento biológico
Futuramente, o plano é mesclar as duas operações: os pães artesanais serão usados nos sanduíches da Submore
À frente da brasiliense Submore há 24 anos, o empresário Hudson Souza decidiu, diante da crise que se anunciava em 2015, diversificar seus negócios. Fascinado por panificação natural, rumou a São Francisco, nos Estados Unidos, para aprender a fazer o produto. Ao retornar, fundou a Le Pain Rustique.
Nas receitas da casa, o levain se mistura ao fermento biológico. “É uma tendência que veio para ficar. Assamos uma média de 1 mil pães por dia. No fim de semana, a produção dobra. Todos são feitos manualmente”, pontua o proprietário. Futuramente, o plano é mesclar as duas operações: os pães artesanais serão usados nos sanduíches da Submore.
Qual é melhor?
Os benefícios do pão de levain para a saúde são inegáveis, bem como a qualidade do produto. Mas não se deve desconsiderar completamente as massas feitas em larga escala, como nosso tradicional pão de sal. A mecanização desse processo garantiu, durante os séculos 19 e 20, que muitas pessoas não morressem de fome. Para Luiz Américo Camargo, é preferível comer o bom e velho pão francês do que um alimento malfeito.
“Morro de medo do pensamento único, das verdades fechadas, do efeito manada. De repente, a fermentação natural vira ‘a correta’, ’a absoluta’, diminuindo outras alternativas. Não se trata disso. É essencial entender que há variedades diversas de pão. Sourdough bread, ao estilo de São Francisco, é maravilhoso. Mas não deve ser considerado superior a uma broa portuguesa ou a um pão pita, feitos com fermento biológico”, defende o autor.
Camargo acredita que o aumento do consumo de pão de levain seja uma nova cultura em formação. “Modismo é paleta mexicana, pipoca gourmet. O pão está na vida das pessoas há milhares de anos. Fermento natural não é coisa de hipster”, aponta.
De fato, padarias italianas tradicionais em São Paulo usam o método há mais de um século. Afinal, como o próprio Camargo gosta de dizer, o futuro do pão está no passado. Boas fornadas sempre existiram e, agora, estão cada vez mais numerosas.