pães feitos à moda antiga, com a fermentação natural, ganham espaço na panificação de Brasília

Clara Campoli

Clara Campoli

31/10/2018 18:56, atualizado em 2019-06-19 16:40:31

Cheiro de pão quentinho desperta a memória afetiva da maioria dos brasileiros. Difícil encontrar alguém que, na infância, não adorava ir à padaria e voltar com um saco de pão francês crocante. Com a popularização dos alimentos industrializados, a versão em forma do produto se popularizou e até virou recomendação de nutricionistas, como uma opção mais saudável de lanche.

Nos últimos três anos, o brasileiro tem retornado às origens e está, cada vez mais, comprando pão fresquinho. Voltou até o hábito de congelá-lo para não estragar e poder consumir durante toda a semana. Mas, dessa vez, o paladar do consumidor se sofisticou. Nas prateleiras das padarias, aparecem opções integrais, com grãos, sementes e misturas novas.

O principal ingrediente para se fazer um bom pão é a paciência. A frase da jurada do MasterChef Paola Carosella se refere à forma milenar de preparar o alimento. Afinal, para finalizar o processo de fermentação natural é preciso 15 horas de espera, no mínimo. Dependendo da técnica do padeiro, pode durar dias. Tudo é compensado pela qualidade do produto final, incomparável àqueles industrializados encontrados em supermercados.

Chamado de pão de Cristo, o preparo precisa de uma colônia de bactérias praticamente imortal, podendo ser cultivada por anos. Na Europa, existem padarias que usam há séculos a mesma mistura, também chamada de levain. Quando incorporadas água e farinha, os organismos “acordam”. Em aproximadamente seis horas, a massa torna-se um fermento vivo, essencial para o crescimento e o sabor do alimento.

“Um pão bem feito, com fermentação longa, ingredientes adequados e boa técnica será aromático e mais rico como alimento. A acidez o conservará, a atividade enzimática vai torná-lo leve e o processo todo gerará um melhor processamento do glúten”, resume o consultor gastronômico Luiz Américo Camargo, autor do livro Pão Nosso.

Ele faz uma ressalva: o importante é consumir pães bem-feitos, sem conservantes artificiais e “ingredientes mágicos” (geralmente produtos químicos) descritos nas embalagens. Quanto mais artesanal, melhor para a saúde.

JP Rodrigues/Metrópoles
Para finalizar o processo de fermentação natural é preciso 15 horas de espera, no mínimo

Todas as noites, antes de fechar a loja, os proprietários da Bella Foccacia (Lago Norte), Caio Cézar e João Orlando Neto, alimentam o fermento para ser usado na manhã seguinte. Eles começam a jornada ao nascer do sol: misturam ingredientes, pesam massas, boleiam, assam. O mais trabalhoso, no entanto, é o contato com o consumidor. Muita gente chega à padaria pedindo um pão mais leve, sem glúten, adequado a dietas.

“Precisamos driblar os mitos que surgem em torno do glúten e do pão em si. Às vezes, a pessoa não come pão branco por causa da quantidade de amido. Mas, ao final da fermentação natural, o branco e o integral são quase a mesma coisa, porque o levain consome os açúcares. A diferença é que o integral pode ser mais nutritivo, dar maior saciedade e ter uma quantidade maior de fibras”, descreve João. Para ele, os padeiros têm a missão de ajudar o consumidor a se conscientizar sobre essas diferenças.

A fonte de preocupação da dupla é também a de maior satisfação. Os dois abrem sorrisos largos ao descreverem clientes diabéticos cuja glicemia não se altera após consumir o pão e até mesmo quem deixou de tomar omeprazol – conhecido remédio utilizado no combate a problemas no estômago – para comer o carboidrato. “As pessoas perceberam que a alimentação saudável é baseada na comida artesanal com poucos ingredientes. Não é mais aquela coisa de ir ao mercado e não saber quem fez o pão, de onde veio a farinha”, comenta Caio.

O consumo de pães artesanais está crescendo no país todo. De acordo com a Associação Brasileira da Indústria de Panificação e Confeitaria (Abip), o faturamento com esse estilo de alimento, que abarca pães com levain e o tradicional “francês”, aumentou em 5,4% entre 2016 e 2017. “Pouco a pouco, o método vai conquistando espaço. Mais profissionais querem entender e praticar. Os consumidores, por sua vez, aprendem e aumentam o repertório. Costumo dizer: o gosto não tem marcha à ré. Quando provamos algo bom, não desejamos voltar, queremos mais”, defende Camargo.

Dentro de casa

Quando a gastrônoma Gláucia Reis provou um pão de fermentação natural pela primeira vez, quis aprender a assá-lo em sua residência. Comprou livros, pesquisou na internet e pediu dicas a amigos. A atividade é apaixonante, mas pode ser muito frustrante no início: como se trata de uma colônia de bactérias, dependentes do clima e do tempo, é impossível ter domínio absoluto sobre a massa. Aliás, no começo, o controle é quase nenhum. Os primeiros produtos costumam sair duros, solados e muito ácidos. Com insistência, no entanto, é possível fazer bons exemplares em casa.

A paixão de Gláucia pela panificação se sofisticou. Há três anos, ela passou a usar farinha italiana no preparo, mas como cada saco pesa 25 quilos, era impossível consumir sozinha toda a produção. A gastrônoma resolveu vender seus pães simplesmente para bancar o insumo. Em seguida, comprou um forno profissional. O imenso aparelho não passava no corredor de seu apartamento, por isso a cozinheira decidiu derrubar a parede da sala, instalar o equipamento no antigo quarto do filho e reconstruir a própria casa.

“Para ter um bom retorno financeiro, eu teria de produzir pelo menos 150 pães por semana”, explica a padeira, que faz no máximo 15 unidades semanais. Segundo Gláucia, ela aguarda ansiosamente a chegada das segundas-feiras, dia da semana em que prepara as massas. “Meu olho brilha quando a receita dá certo”, brinca. Ela não tem planos de montar um negócio próprio, pois sofre com fortes dores na coluna causadas pela artrose.

Uma iniciativa muito parecida com a de Gláucia virou loja física: a Varanda Pães Artesanais (215 Norte), de Dilson Menezes, começou no apartamento do proprietário. “Naquele momento, percebi que uma operação maior fazia muito mais sentido para a minha vida. Parti, sempre com a ajuda de minha esposa, Raquel, em busca de um lugar maior. O espaço tem crescido organicamente, aos poucos, praticamente do boca a boca”, resume o empresário, que abandonou a carreira de engenheiro civil em nome da empreitada.

Segundo a Abip, o fluxo de clientes em padarias cresceu 1,36% em 2017, representando uma recuperação significativa do setor: o indicador vinha caindo desde 2010, com uma drástica redução de 4,06% em 2016. Os pesquisadores conversaram com donos de 400 estabelecimentos em todo país e 57% deles garantiram que o número de consumidores aumentou no ano passado.

Alimento artesanal

Nem todo pão artesanal é de levain: o processo de fermentação lenta pode ser obtido com o uso de fermento biológico. O modelo de negócio da Bella Focaccia, no qual é usado apenas a massa madre, é raro no mercado. “Não há nada de ilegal ou grave em misturar o natural com o biológico, desde que [o segundo apareça] em pequena quantidade, para que sua ação, muito mais potente, não se sobreponha às bactérias e leveduras da fermentação natural”, defende Camargo.

A própria Varanda realiza a mistura. Embora muitos pães levem exclusivamente a fermentação natural, alguns contêm a biológica. “Isso exige bastante cuidado, conhecimento e experiência, é diferente de em uma padaria tradicional, onde se mesclam os ingredientes e, em poucas horas, se tira pão do forno”, explica Dilson.

Na Boulangerie, tradicional padaria francesa da capital federal, somente a baguete clássica é feita com massa madre: todos os outros pães são preparados de forma artesanal, lentamente, utilizando fermento biológico. Quando introduziu o produto de levain em seu mostruário, há alguns anos, o francês Guillaume Petitgas surpreendeu-se com a reação negativa dos clientes.

“As pessoas comiam uma fatia e devolviam, dizendo que estava azeda, estragada. Pediam para revermos a receita. A gente explicava sobre o processo natural, de 15 horas de fermentação, e mesmo assim eles não gostavam. Mas, hoje, percebo que o brasiliense já se acostumou com sabores azedos e láticos”, conta o proprietário. Atualmente, sua maior satisfação é ver clientes saindo da loja já mordendo um pedaço da baguete.

O retorno dos consumidores é, para ele, uma das partes mais gratificantes do trabalho. Guillaume tem especial carinho por uma cliente de sua unidade da Asa Norte, que avalia quase diariamente a produção da padaria. “Ela compra quatro boules de cereais pela manhã e manda um e-mail contando se ficou bom, se o da véspera estava melhor. Fazemos pão, mas é muito mais. O dia dessas pessoas começa com o nosso produto. Eu amo isso”, orgulha-se o francês.

Força de trabalho

Segundo a pesquisa da Abip, o segmento da panificação representa em torno de 800 mil empregos diretos e 1,8 milhão indiretos nas cerca de 70 mil padarias e confeitarias existentes no Brasil. Em média, uma empresa tem em torno de 12 funcionários, mas isso pode variar. Na Bella Focaccia, Caio e João têm o apoio de mais uma padeira. Já a Le Pain Rustique, que conta com quatro lojas no DF, é uma operação com 25 trabalhadores.

À frente da brasiliense Submore há 24 anos, o empresário Hudson Souza decidiu, diante da crise que se anunciava em 2015, diversificar seus negócios. Fascinado por panificação natural, rumou a São Francisco, nos Estados Unidos, para aprender a fazer o produto. Ao retornar, fundou a Le Pain Rustique.

Nas receitas da casa, o levain se mistura ao fermento biológico. “É uma tendência que veio para ficar. Assamos uma média de 1 mil pães por dia. No fim de semana, a produção dobra. Todos são feitos manualmente”, pontua o proprietário. Futuramente, o plano é mesclar as duas operações: os pães artesanais serão usados nos sanduíches da Submore.

Qual é melhor?

Os benefícios do pão de levain para a saúde são inegáveis, bem como a qualidade do produto. Mas não se deve desconsiderar completamente as massas feitas em larga escala, como nosso tradicional pão de sal. A mecanização desse processo garantiu, durante os séculos 19 e 20, que muitas pessoas não morressem de fome. Para Luiz Américo Camargo, é preferível comer o bom e velho pão francês do que um alimento malfeito.

“Morro de medo do pensamento único, das verdades fechadas, do efeito manada. De repente, a fermentação natural vira ‘a correta’, ’a absoluta’, diminuindo outras alternativas. Não se trata disso. É essencial entender que há variedades diversas de pão. Sourdough bread, ao estilo de São Francisco, é maravilhoso. Mas não deve ser considerado superior a uma broa portuguesa ou a um pão pita, feitos com fermento biológico”, defende o autor.

Camargo acredita que o aumento do consumo de pão de levain seja uma nova cultura em formação. “Modismo é paleta mexicana, pipoca gourmet. O pão está na vida das pessoas há milhares de anos. Fermento natural não é coisa de hipster”, aponta.

De fato, padarias italianas tradicionais em São Paulo usam o método há mais de um século. Afinal, como o próprio Camargo gosta de dizer, o futuro do pão está no passado. Boas fornadas sempre existiram e, agora, estão cada vez mais numerosas.

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