Ossos do Ofício

Juliana Cavalcante Juliana Cavalcante
Kelly Almeida Kelly Almeida
Otto Valle Otto Valle
03/05 5:19

Em locais abarrotados, trabalhadores repetem, mecanicamente, movimentos exaustivos por horas seguidas. A pressão aumenta à medida que o tempo corre. Sob temperatura muitas vezes abaixo dos 10ºC, homens e mulheres desempenham suas funções em silêncio. Ao manusear ferramentas e máquinas letais, não se pode errar. Mas às vezes o cansaço pesa. Músculos e articulações já não respondem como antes e sucumbem ao esforço. Numa fração de segundo, a lâmina escapa do seu curso e causa feridas irreversíveis.

Essa realidade se assemelha mais aos primórdios da Revolução Industrial do que às evoluções tecnológicas do século XXI. Passados quase 300 anos desde que os bens manufaturados foram substituídos pela produção em larga escala, o ser humano ainda é peça de reposição. Na sofisticada engrenagem preparada para maximizar o lucro dos patrões, os indivíduos são descartáveis. Como Willian, Airton, Marco Antônio, Luiz Henrique, Éder e Sérgio.

Carne, Osso / Reprodução

Há pouco tempo, eles estavam entre os 451 mil operários espalhados pelos 4,8 mil frigoríficos do Brasil. Entretanto, após sofrerem lesões nas fábricas onde atuavam, perderam membros do corpo e o sustento da família. Hoje, Willian, Airton, Marco Antônio, Luiz Henrique, Éder e Sérgio viraram estatística nesse mercado. Atualmente, o setor lidera o ranking de acidentes de trabalho no ramo alimentício do país. A cada dia, é registrada uma média de 54 ocorrências.

O Brasil ainda digere o peso da Operação Carne Fraca, que investiga a qualidade do produto que sai das fábricas. A apuração das autoridades também jogou luzes sobre a crua rotina desses operários, observada há mais de 10 anos por uma força-tarefa do Ministério Público do Trabalho (MPT) e de auditores criada para conter abusos. Mas como o poderio estatal não é suficiente para promover mudanças na velocidade em que animais são abatidos, homens e mulheres continuam vítimas dessa voraz escala de produção.

Após um mês de apuração, 2 mil quilômetros percorridos, duas dezenas de entrevistas a operários, médicos, auditores, procuradores do Ministério Público e um ministro do Tribunal Superior do Trabalho (TST), o Metrópoles conta, na semana da comemoração do Dia Internacional dos Trabalhadores, como os frigoríficos do Brasil se transformaram em fábricas de pessoas doentes.

Willian Roberval Garcia da Silva juntava patas, cabeças e gordura de gado no frigorífico de Coxim, cidade de 33 mil habitantes localizada a 258km de Campo Grande, Mato Grosso do Sul. Os restos bovinos eram jogados em um moedor. As sobras seriam torradas para produzir óleo vegetal e dois tipos de farinha: a de osso e a de sangue. A primeira é usada como componente de adubo, enquanto a segunda serve para reforçar a ração destinada a animais. Mas aquela tarde de janeiro de 2015 foi a última em que Willian, à época com 24 anos, abasteceu a máquina.

As hélices dilaceraram parte do braço esquerdo do rapaz, justamente o que tinha uma tatuagem: “Vida Loka”. Por ironia do destino, as lâminas deceparam a inscrição pela metade, deixando na pele a lição que Willian hoje carrega no corpo: vida.


Em 2014, um ano antes da tragédia, Willian começou a trabalhar no frigorífico de Coxim. Na época, recebia uma cesta básica, um pacote de costelas e cerca de R$ 900 mensais como salário. Recém-saído da atividade de jardinagem, ele “queria melhorar de situação”. Para isso, passou a exercer outras tarefas dentro da empresa, chegou a acumular três funções e fez 120 horas extras em um único mês.

“Parecia um zumbi. Era só frigorífico, casa. Casa, frigorífico. Não tinha tempo para nada. Eu dava o sangue, dava a vida ali”

Além do cansaço físico e mental, pesava a condição dos equipamentos da empresa. Alguns estavam em situação precária e funcionavam na base da “gambiarra”, demandando atenção redobrada, segundo o jovem. Faltavam peças, material de proteção e máquinas mais novas.

No dia do acidente, Willian trabalhava sozinho no setor. O jovem conta que estava colocando os restos de animais na máquina quando seu braço esquerdo ficou preso. “Só vi a hora que soltou. Acho que a pele rasgou. Então, fui desligar as máquinas e subir no RH para pedir ajuda”, relata. Como não havia equipe especializada para atendê-lo, ele precisou ser socorrido por colegas e foi levado ao hospital público da cidade.

Willian considera um golpe de sorte o fato de o abate, que normalmente acaba às 12h, ter sido finalizado próximo das 16h, horário em que se acidentou. “Se tivesse terminado ao meio-dia, não haveria ninguém para me levar ao hospital. Eu ficaria esperando algum carro vir e ia morrer de hemorragia”, conta.

“Você nunca imagina o que vai acontecer. Quando se está cansado, fazendo muitas coisas, seu ritmo fica prejudicado e você não está mais atento a tudo”


Após passar quase um mês no hospital, encarar duas cirurgias e perder 10 quilos durante o processo, novos traumas estavam por vir. Quando voltou para casa, Willian teve de reaprender a fazer coisas triviais e a lidar com a dor da rejeição da filha bebê, que não o reconhecia mais. Mas encontrou forças para recomeçar. “Agora, parece que nasci assim. Já me acostumei, não lembro de mim com os dois braços. Faço quase tudo.”

Sem trabalho atualmente, Willian luta para conseguir uma prótese que o ajude a realizar atividades simples do dia a dia. E agradece por ter a companhia da mulher, Valéria da Silva, 22 anos; e das filhas Maikelly, 6, e Emannuele, 2.

Como 62% das pessoas que trabalham na linha de produção do setor frigorífico, Airton Ribeiro da Costa não completou os estudos. Cursou somente até a 3ª série do ensino fundamental e fez da atividade braçal sua escola. Após atuar por anos como pedreiro, teve de se recolocar no mercado quando a construtora em que dava expediente foi à bancarrota. Seu caminho, então, cruzou com o da JBS, empresa goiana que hoje é uma das maiores do gênero alimentício do mundo. “Era muito humilhante o lugar em que eu atuava. Só mexia com fezes de animal e fetos de parideiras. Toda a sujeira ia pra lá”, conta.

Em maio de 2016, o homem de 53 anos que havia escapado do setor de construção civil — recordista em acidentes de trabalho no país, com média de 60 mil ocorrências por ano —
tornou-se vítima de outro segmento brutal. Após o abate de bovinos, ele estava na área de tratamento, onde as fezes dos animais são lavadas, separadas e prensadas. Ao tentar retirar pedaços de couro que se acumulavam em uma das extremidades do equipamento e impediam a passagem da água acumulada, a ponta da luva que ele usava prendeu na rosca da máquina. “Puxei o dedo, mas ele foi sendo levado”, conta Airton, que perdeu o polegar direito.

Os primeiros socorros foram feitos por uma enfermeira da empresa. Logo depois, Airton precisou ser encaminhado ao hospital público de Coxim, onde passou por uma cirurgia. No entanto, dias após o procedimento, ele teve uma infecção. “A mão começou a ficar roxa e pensei que ia perdê-la.” O homem se submeteu, então, a um segundo procedimento e o restante do osso precisou ser retirado.

“Nunca pensei que ia acontecer um acidente naquele lugar. Eu olhava e não via o perigo. E aí aconteceu isso comigo”


O trabalhador bateu às portas da Justiça em busca de reparação pelos danos que sofreu. Teve de escutar da advogada da empresa, em uma audiência, que era “apenas um dedo”. Retrucou, enfático: “A senhora abotoa a camisa sem usar o dedão? Ela falou aquilo porque não sabia a dor que eu estava sentindo”.

Hoje, Airton tenta lidar com o trauma e, um ano após o episódio, espera que seu sofrimento seja amenizado. “Não posso mais trabalhar como antes.” Ainda sem perspectivas, ele toma remédios para pressão alta na tentativa de controlar a ansiedade causada pelo trauma do acidente. Religioso, entregou seu futuro “nas mãos de Deus”.


Luiz Henrique Anunciação Ribeiro, 35 anos, queria ser professor, “mas não deu tempo”. Ele havia passado no vestibular de pedagogia e chegou a começar os estudos, mas, em fevereiro de 2012, um grave acidente no frigorífico onde trabalhava adiou seus planos. O então amarrador quebrou a perna direita e perdeu a esquerda na área de abate do gado.

A experiência de mais de sete anos em frigorífico não impediu que o desastre ocorresse. Henrique começou a atuar na área em 2004 e, em 2011, cuidava da amarração das carcaças dos bois. Os animais chegavam em uma esteira para retirada do couro e das vísceras e, após a elevação mecânica, seguiam para as outras etapas do processo.


Ao sair de uma esteira, Henrique tentou pular um vão, mas o impulso não foi suficiente e ele teve as botas puxadas para dentro da máquina. Mesmo com a dor insuportável, manteve-se consciente enquanto seus colegas desligavam o maquinário. Naquele momento, achou que ficaria sem as duas pernas.

O baque veio forte depois. Luiz Henrique conta que, após ser levado para o hospital e ter a perna amputada, entrou em coma. Quando acordou, estava engessado até a altura da cintura e achou que estava sem as duas pernas. Em desespero, precisou ser induzido ao coma para que o corpo se recuperasse.

“Quando eu acordei pela segunda vez, sabia que ainda era a mesma pessoa, mas no corpo de outra”


Após novas cirurgias e vários meses até que o processo de recuperação pudesse ser iniciado, Luiz Henrique recebeu forças da esposa e dos sete filhos.

“Perdi uns 70% da vida que eu tinha. Jogava bola, andava de bicicleta, corria, me divertia. Mas reaprendi a viver”

A empresa custeou os cuidados médicos necessários e a prótese de Luiz Henrique. Hoje ele trabalha na portaria da JBS em Coxim. Com as feridas cicatrizadas, diz estar satisfeito: “Depois do meu acidente, a empresa passou a se preocupar mais com a segurança dos funcionários”.

Domínio nacional

Atualmente, duas empresas dominam o mercado da carne no Brasil: a JBS e a BRF. A primeira detém, entre outras, as marcas Friboi e Seara; a segunda controla a Sadia e a Perdigão.

Em 2017, o Brasil deve produzir 14 milhões de toneladas de carne de frango, 9,6 milhões de toneladas de produtos bovinos e 3,8 milhões de toneladas de insumos suínos. As estimativas, divulgadas pela Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), levam em consideração o balanço de 2016 e sazonalidades como a variação de preços de matéria-prima e fatores climáticos.

De toda a produção nacional, cerca de 24,6% deve abastecer mesas estrangeiras. Hoje, famílias de Hong Kong, China, Rússia, França, Itália, Alemanha, Inglaterra e Chile se alimentam de carne brasileira. E alguns mercados têm certas peculiaridades, como as de países que exigem o abate no método halal. Nesse sistema, apenas muçulmanos saudáveis e que conhecem o islamismo são autorizados a matar os animais.

Assim é a produção no frigorífico da JBS em Samambaia — o maior do Distrito Federal. É lá que Carlos* trabalha. Desde que entrou na unidade em 2015, o rapaz já passou por três setores. O primeiro foi o da desossa de coxas e sobrecoxas. Naquele período, sentia diariamente câimbras nos braços e nas mãos. Isso é muito comum devido às baixas temperaturas somadas ao esforço repetitivo pelo corte da carne tesa.


“Eu precisava tirar os ossos de duas peças em menos de um minuto. Eram 18 movimentos nesse intervalo. A esteira não podia passar com outras peças sem que eu tivesse terminado as anteriores”, explicou, enquanto fazia os gestos dos cortes com as mãos.

Os incômodos no corpo e as inúmeras idas ao posto médico fizeram o rapaz de 20 anos ser transferido para outro local. Hoje ele integra a equipe de limpeza e, mesmo afastado das máquinas, sofreu um acidente. “O produto que usamos é muito forte e os óculos não fazem a vedação total. Quando joguei o material para limpar, ele respingou e entrou nos olhos. Precisei de acompanhamento médico e de tratamento”, contou. Por sorte, não houve sequelas.

Carlos*, que recebe pouco mais de um salário mínimo, encara jornada diária de 10 horas e não pensa em deixar o emprego. “Não vou falar que estou muito feliz aqui, mas é a oportunidade que tenho de conquistar alguma coisa na vida”, resume.

*Nome fictício a pedido do funcionário, que ainda trabalha no local e teme sofrer represálias caso seja identificado

Carne, Osso / Reprodução

Afastamentos por problemas de saúde

A pesquisa mais recente feita pelo Dieese sobre o setor alimentício aponta que, em números globais, houve redução de 3% nos casos de acidente de trabalho entre 2012 e 2014. No entanto, nos frigoríficos as ocorrências aumentaram de 18.226 para 19.821 nesse período.

O levantamento revela um dado alarmante: a cada dia, uma média de 54 operários sofre algum tipo de acidente nos frigoríficos. O número engloba lesões sofridas tanto nos abatedouros quanto na área de fabricação dos produtos.

Os frigoríficos superam, com muita folga, o segundo colocado da lista: o setor de fabricação de bebidas. Em 2012 e 2014 foram, respectivamente, 4.828 e 4.125 acidentes. No último ano analisado, a média ficou em 11 ocorrências diárias.

A exposição dos empregados da indústria de alimentos a inúmeros riscos causa uma sobrecarga na Previdência Social com os auxílios-doença. Somente no caso dos frigoríficos, em 2016 foram concedidos 4.516 benefícios — isso sem contabilizar os milhares de pedidos que ainda aguardam aprovação. Os pagamentos vêm de recursos federais, por meio do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS).

Pressão também no Judiciário

A rotina exaustiva nos frigoríficos tem reflexo direto na Justiça. Dados da Coordenadoria de Estatística do Tribunal Superior do Trabalho (TST) revelam que, em junho de 2016, a BRF aparecia como a 17ª empresa com mais processos em tramitação na Corte. À época, eram 2.213 ações.

Já a JBS aparece no ranking das 370 empresas brasileiras com mais de 100 processos trabalhistas: segundo o levantamento, a JBS ocupa a 33ª colocação, com 1.009 ações.

Os dados são os mais recentes fornecidos pelo Conselho Superior da Justiça do Trabalho (CSJT) e fazem parte das estatísticas do TST e dos Tribunais Regionais do Trabalho (TRTs).

Quando se trata de ações em primeira instância, por exemplo, as empresas que mantêm frigoríficos aparecem entre as 10 mais processadas em cinco regiões.


Cláudio Brandão ministro do TST

Na avaliação do senhor, no que o setor de frigoríficos se difere de outras áreas com muitas ações na Justiça Trabalhista?

O setor frigorífico é muito importante no contexto nacional pela atividade que exerce e pelo papel que desempenha na economia. A área demanda muita mão de obra. Ao lado disso, destaca-se que também é um setor cuja rotina é bastante propícia à ocorrência de acidentes, no sentido mais amplo da expressão. Tanto o acidente, propriamente dito, como também a doença ocupacional. Trata-se de ação repetitiva, na qual utiliza-se com muita frequência equipamentos de trabalho que podem causar danos, como facas, cutelos e serras elétricas. Além disso, há condições que também são causadoras de adoecimento, como por exemplo a alternância, várias vezes ao dia, entre ambientes frios e quentes.

“É um setor cuja proteção tem que ser destacada como necessária e de modo contínuo”

As demandas que mais chegam ao Tribunal Superior do Trabalho relacionadas a acidentes ou adoecimento em geral envolvem, por exemplo, a discussão sobre recuperação térmica — o direito ao intervalo para o corpo se acostumar a diferenças bruscas de temperatura. Ao lado disso, estão os problemas provocados por esforço repetitivo, as doenças ocupacionais. São lesões que variam desde o aparelho locomotor ao aparelho muscular.

Ao que o senhor atribui o alto número de incidentes laborais nesse segmento?

O acidente de trabalho não é algo atribuído ao acaso. As pessoas acham que o anjo da guarda estava descansando ou que Deus não as protegeu. Ao contrário. O acidente é algo presente, mapeado e previsto do ponto de vista do risco ambiental. Tanto que há os programas de saúde ocupacional que preveem as áreas de risco. Há empresas que não fornecem o equipamento necessário, mudam o processo produtivo e não capacitam os empregados ou substituem o maquinário e não os habilitam a lidar com o novo. São várias as razões e fatores que provocam os acidentes, que só são lembrados, muitas vezes, depois de acontecerem.

“É um processo de conscientização permanente. Todos somos responsáveis”

Como o TST, instância máxima da Justiça Trabalhista, pode ajudar a mudar a realidade atual?

O grande papel da Corte se revela nas ações coletivas, sobretudo ao julgar demandas que se baseiam na adoção de medidas de proteção preventiva. A importância do TST nesse tipo de contexto é determinar a adoção de medidas de proteção, a fim de que o acidente ou o adoecimento não venham a acontecer. Outro ponto importante é que, ao dar a palavra final, o tribunal vai estabilizando a interpretação e dizendo para a sociedade como ela deve se comportar. Ou seja, a Corte tem um viés pedagógico. Quando o TST diz que determinada conduta não é correta, as pessoas tendem, ou pelo menos devem tender, a ter um comportamento adequado a essa interpretação.

“O papel mais difícil, reconheço, é fixar multas ou indenizações. A vítima acha que a reparação é pequena e quem paga reclama da punição”

Paulo Rogério Albuquerque de Oliveira pesquisador da Universidade de Brasília (UnB)

Durante quatro anos, o pesquisador Paulo Rogério Albuquerque de Oliveira estudou as doenças desenvolvidas em vários segmentos de trabalho no Brasil para tentar decifrar os perigos dentro desses locais.

Com base em dados de pessoas que chegavam doentes ao INSS, o professor concluiu, em sua tese de doutorado, que os frigoríficos estão entre os ambientes mais prejudiciais à saúde dos trabalhadores, onde os empregados costumam ter “vida útil” de apenas dois anos até começarem a sofrer danos em decorrência da exaustiva rotina de movimentos. Entre as doenças que mais afetam os operários da área estão lesões por esforço repetitivo (LER), bursites, tendinites, depressão e mutilações. “O processo acelerado não respeita a subjetividade das pessoas em um conjunto ruim, com cortes cronometrados, rápidos e metas imbatíveis. É desumano”, diz o especialista, que coordena o curso de engenharia da segurança do trabalho na faculdade Unip do Distrito Federal.

O professor ressalta que, neste momento, no qual o governo quer aprovar a Reforma da Previdência no Congresso, o enfoque deveria ser outro. Para Paulo Rogério, em vez de se reduzir benefícios dos contribuintes, Executivo e Legislativo deveriam voltar as atenções às causas de haver tantas pessoas doentes nos ambientes laborais.

“O questionamento que devemos fazer é se a reforma deve ser da Previdência ou do processo produtivo. Hoje, a cada duas horas no Brasil, três pessoas morrem no local de trabalho. Não são acidentes, são assassinatos”

Responsável por agregar e defender os interesses dos sindicatos do setor frigorífico, a Confederação Nacional dos Trabalhadores nas Indústrias de Alimentação e Afins (CNTA) faz inúmeras denúncias relacionadas às condições enfrentadas pelos empregados.

O presidente da entidade, Artur Bueno de Camargo, afirma que a área é a mais crítica entre todas as representadas pela confederação. “Os trabalhadores estão no auge da produção, mas enfrentam condições precárias e estão sujeitos a acidentes que podem levar à morte.”


Para Bueno, uma das conquistas que a categoria teve nos últimos anos foi a implantação da Norma Regulamentadora n° 36 (NR-36). Publicada em abril de 2013 pelo Ministério do Trabalho e Emprego, a regra trata especificamente da segurança e da saúde de quem atua em abates e no processamento de carnes e derivados. O problema é que as determinações não são cumpridas.

“Não existe outro caminho senão o da fiscalização. Para as empresas, é mais fácil e barato substituir um funcionário. As companhias precisam ser responsabilizadas”

Posturas viciosas e doenças osteomusculares

O setor é motivo de preocupação, segundo a médica do trabalho Priscilla Sabino. “Os ambientes são muito insalubres, com enorme variações térmicas. Quando funcionários saem muito depressa de um local frio para um quente, o sistema imunológico sofre um baque. Além disso, há um alto número de movimentos repetitivos”, detalha.

Os casos mais recorrentes, de acordo com a especialista, estão relacionados às doenças osteomusculares. Os principais fatores que merecem atenção segundo a médica são: as jornadas prolongadas, a ausência de intervalos para repouso, as posturas viciosas e os movimentos repetitivos, sem pausa para recuperação de fadiga.

Para Priscilla, é necessário haver uma fiscalização mais ostensiva das empresas e o cumprimento das normas regulamentadoras direcionadas ao setor. “As companhias devem se conscientizar de que obedecer essas regras não é um custo, mas um investimento. Ao se preservar e capacitar os funcionários, promove-se economia a longo prazo”, pondera.


Leomar Daroncho diretor-geral do Ministério Público do Trabalho

Alterar a realidade na qual a mão de obra é explorada até se tornar descartável não é simples. Ainda assim, as opiniões de funcionários, sindicalistas, pesquisadores, fiscais, procuradores e juízes convergem em um ponto: os frigoríficos precisam ser responsabilizados e receber penas duras. Se não doer no bolso, o cenário continuará o mesmo.

A avaliação é do diretor-geral do Ministério Público do Trabalho (MPT), Leomar Daroncho. O procurador atuou por muitos anos na fiscalização do setor. Depois de ver de perto o problema, é enfático ao dizer que apenas ações de regresso — nas quais as empresas seriam obrigadas a ressarcir a Previdência — podem mudar a realidade vivida dentro dos frigoríficos brasileiros.

“É preciso saber quanto a Previdência gastou com cada ‘doente de frigorífico’ de tal forma que a União possa ajuizar uma ação contra a empresa para que ela reponha o valor”

Leomar Daroncho reconhece que a estrutura atual do órgão, com déficit de servidores, prejudica uma fiscalização mais combativa, mas reforça o empenho do Ministério Público do Trabalho em combater os abusos da indústria alimentícia no Brasil.

“Fazer as inspeções é a maior dificuldade, pois nossa capacidade de trabalho está reduzida. Mesmo assim, atuamos com a intervenção e, quando necessário, por meio de ações judiciais. Não pode valer a pena descumprir a lei. As medidas precisam ser efetivas para que as empresas cumpram as normas.”

O entendimento do procurador Leomar Daroncho é o mesmo do auditor-fiscal do Trabalho José Almeida, do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). “Você sabe de quanto é o prejuízo anual do país com esses acidentes e doenças desenvolvidas nos ambientes laborais? Cerca de R$ 220 bilhões. E ninguém fala absolutamente nada. Ninguém toma providência nenhuma. É preciso uma mudança de cultura.”

Segundo Almeida, esse valor engloba todo o universo de acidentes de trabalho no país entre 2012 e 2016.

“Nos últimos cinco anos, a média anual foi de 710 mil acidentes: um a cada 33 segundos. Foram 15 mil incapacitações permanentes e 2,8 mil mortes. São números de países em guerra”

A Organização Internacional do Trabalho (OIT) estima que 4% do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro seja destinado para despesas com doenças e acidentes relacionados a atividades laborais.

No universo de registros dessas ocorrências, o recorte relacionado ao setor frigorífico preocupa o auditor. Em 2015, Almeida realizou fiscalizações nas grandes empresas de Mato Grosso e verificou condições precárias.

“Vi casos de pessoas trabalhando 18 horas por dia, em temperaturas frias, alta umidade e realizando movimentos altamente repetitivos. É um setor muito complicado”

Assim como no MPT, o efetivo de servidores no Ministério do Trabalho e Emprego é insuficiente. Segundo Almeida, o quadro de auditores e fiscais tem diminuído devido aos vários pedidos de aposentadoria e à ausência de concursos para reposição do efetivo.

A realidade dos frigoríficos brasileiros foi registrada no documentário “Carne, Osso”, de 2011, dirigido por Caio Cavechini e Carlos Juliano Barros. Ao longo dos dois anos entre o início do projeto e o lançamento do filme, a equipe visitou unidades das regiões Sul e Centro-Oeste. “Começamos a investigar e nos dar conta de que, de fato, era um quadro bastante grave, tanto no sentido de acidentes mutiladores quanto em relação ao ritmo de trabalho que gerava o aparecimento de doenças por esforço repetitivo”, disse Carlos ao Metrópoles.

A obra conta a história de vítimas do sistema e ressalta a preocupação de auditores, procuradores e desembargadores do Trabalho com a situação. “É comum encontrarmos gente no setor de frigoríficos exercendo de 80 a 120 movimentos em um único minuto. Estudos médicos dão conta de que o padrão de segurança é de até 35 movimentos”, afirma Paulo Cervo, auditor fiscal do Trabalho.

Para o procurador Heiler Ivens de Souza Natali, do MPT, a indústria não tem interesse em reverter esse quadro. “Há Varas do Trabalho neste país em que mais da metade dos processos existentes são de pessoas que vieram do setor frigorífico. Se, por um lado, há todo um discurso de melhoria das condições dos funcionários por parte das empresas, a realidade e os números não demonstram isso.”

O desembargador Sebastião Geraldo de Oliveira, do Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região (TRT-3), é enfático: “O que podemos perceber no Judiciário Trabalhista é que o volume de transtornos mentais e de doenças neurológicas tem aumentado bastante, especialmente por essa conduta febril pela produtividade acelerada, essa competitividade intensa”.

Confira a íntegra do documentário

No pós-Carne Fraca, a ordem é discrição

As grandes indústrias do setor frigorífico vivem atualmente a tensão pós-Operação Carne Fraca. Deflagrada pela Polícia Federal no dia 17 de março de 2017, a ação pôs em xeque a qualidade da carne produzida no país, causando impacto nacional e internacional. O produto brasileiro sofreu embargos de várias nações e a importação chegou a ser totalmente barrada em alguns países.

O cenário voltou os olhares da sociedade não apenas para o resultado, mas para toda a cadeia produtiva. Embora nas últimas semanas a situação tenha sido normalizada aos olhos do público, as empresas mantêm o receio à exposição.

Em Mato Grosso do Sul, a reportagem não pôde tirar fotos da fachada da unidade da JBS em Campo Grande. Foi alertada por funcionários que, caso direcionasse as lentes para o logotipo da empresa, seguranças impediriam o registro. Trabalhadores confirmaram que, devido aos recentes acontecimentos, a ordem é reforçar a discrição.

Procurada pelo Metrópoles, a JBS disse que não se pronunciaria sobre a situação dos funcionários de frigoríficos. Já a BRF não tinha respondido aos questionamentos até a última atualização desta reportagem.

Apesar da opção das companhias pelo silêncio, procuradores, auditores, juízes, ministros e vítimas da indústria continuam agindo para evitar que os ecos do setor alimentício fiquem restritos ao interior de abatedouros e de câmaras frias.