MORTES NO ATACADO
Chacina e vila de cadáveres expõem terror das incursões policiais na periferia do litoral
Renan Porto e William Cardoso
09/05/2024 05:00
Já era noite no Jardim Rio Branco, bairro afastado na periferia de São Vicente, quando moradores foram surpreendidos pelo barulho de rajadas de tiros. Cinco jovens, entre eles dois menores de idade, foram fuzilados em uma “biqueira” — ponto de venda de drogas —, na ação que marcou a maior chacina da Operação Verão.
Testemunhas relatam que policiais militares tinham feito ameaças na véspera, por causa do sumiço de um drone que coletava imagens da região. Ninguém havia visto o tal “passarinho”, apelido dado pelos PMs ao equipamento, e, em menos de 24 horas, a ameaça se concretizou.
Os relatos, inclusive dos agentes, apontam para uma emboscada naquela terça-feira, 27 de fevereiro. Por volta das 19h, viaturas cercaram a entrada do quarteirão, enquanto policiais escondidos no matagal, no fundo do território, dispararam contra quem tentou escapar por uma trilha.
O laudo necroscópico de Luiz Henrique Jurovitz Alves de Lima, um dos mortos na chacina do Rio Branco, mostra a brutalidade da ação policial. Aos 18 anos, Lima foi fuzilado pelas costas, com sete tiros.
Os assassinos acertaram uma bala em cada panturrilha.
Um tiro atingiu a nádega esquerda.
Um disparo pegou na lombar.
Três tiros acertaram os braços. Um deles na altura do ombro, entre o meio e a parte posterior do braço.
De todos os projéteis, somente um foi encontrado pelo legista — balas de fuzil são transfixantes, atravessam o corpo da pessoa.
Uma oitava bala penetrou a cabeça dele, na altura do ouvido, e foi parar na região abdominal.
A suspeita é que o disparo que perfurou a lateral da cabeça do rapaz tenha sido o “confere”, como é chamado o tiro que costuma ser efetuado à curta distância, quando a vítima está caída, para acabar com qualquer chance de sobrevivência.
O corpo do rapaz teve uma laceração de 22 cm na altura da bacia — ferimento provocado, muito provavelmente, pelos ossos que se desprenderam em decorrência do fuzilamento.
Projéteis de fuzil têm a capacidade de matar uma pessoa a 800 metros do local do disparo. Dentro da trilha, a distância era muito menor. Nenhum policial ficou ferido na ação.
Oito pessoas foram mortas pela PM na Vila dos Criadores, é a maior concentração de vítimas no âmbito da Operação Verão
Nada foi recolhido no local da chacina, além de corpos, porções de drogas e armamentos que estariam em posse dos suspeitos mortos — dois revólveres e uma pistola. Também não foi feita perícia no local, como exige o protocolo, com o argumento de que havia risco de novos confrontos.
No registro da ocorrência, obtido pelo Metrópoles, constam apenas informações sobre três policiais envolvidos na ação: Gabriel Henrique Rampim Natali, Luis Carlos da Silva Junior e Felipe da Cruz Fernandes de Almeida.
Segundo testemunhas, pelo menos 10 agentes participaram da ocorrência, incluindo policiais do Batalhão de Ações Especiais da Polícia (Baep), que se aproximaram da biqueira com as viaturas, e oficiais do Comando de Operações Especiais (COE), que aguardavam os alvos no matagal.
A chacina em São Vicente não foi o único caso que concentrou mortos em uma mesma comunidade na Operação Verão, a mais letal da PM paulista desde os Crimes de Maio, em 2006, quando 137 foram mortos por policiais em todo o estado somente naquele mês, em reação aos ataques do Primeiro Comando da Capital (PCC) que mataram 59 agentes públicos.
VILA DOS CADÁVERES
Desde o início de fevereiro, o sobrevoo dos urubus não tem mais o mesmo significado para alguns habitantes da Vila dos Criadores, na periferia de Santos. A comunidade, que surgiu no entorno do Lixão da Alemoa, nos anos 1970, convive há décadas com as aves, que se alimentam de resíduos orgânicos no depósito de lixo da prefeitura. Mas, com o início da operação policial, qualquer comportamento atípico dos animais passou a provocar apreensão entre os moradores: “Será que mais alguém morreu?”.
Desde 3 de fevereiro, quando o secretário da Segurança Pública, Guilherme Derrite, enviou mais policiais após o assassinato de um soldado da Rota dentro de uma favela em Santos, oito pessoas foram mortas pela PM na Vila dos Criadores, o que faz da comunidade a região com a maior concentração de vítimas na Operação Verão em toda a Baixada Santista.
O aumento de sobrevoo dos urubus na Vila dos Criadores, na periferia de Santos, causou espantou na comunidade
Apesar da proximidade com depósitos de contêineres do Porto de Santos, o cenário na Vila dos Criadores remete a uma zona rural. Galinhas, cavalos e cabras caminham por entre as casas. Atualmente, cerca de 4 mil pessoas vivem na região e, segundo os moradores, “todo mundo se conhece”. Ainda assim, apenas uma das vítimas da PM na comunidade foi reconhecida pelos habitantes: o ajudante de obras José Marcelo Neves dos Santos, de 31 anos.
Apenas uma das vítimas da PM na Vila dos Criadores foi reconhecida pelos habitantes: o ajudante de obras José Marcelo Neves dos Santos
Três dos mortos nem sequer foram identificados, e quatro tiveram sua identidade omitida pela Secretaria da Segurança Pública. A suspeita, entre os moradores, é que eles não sejam da Vila dos Criadores e que os policiais militares tenham utilizado o local como uma espécie de “matadouro”, levando suspeitos para serem executados em áreas desertas, sob a alegação de supostos confrontos.
Duas mortes ocorreram na noite de 14 de março, em uma área de mata localizada à beira do Rio Casqueiro. Para acessar o local, é necessário caminhar cerca de 10 minutos por uma trilha de terra, na rua projetada F. À medida que se aproxima do local, o cenário fica cada vez mais deserto, e os barracos, cada vez mais simples, sem saneamento nem energia elétrica.
Novas construções na região são proibidas há anos pela gestão municipal. A Vila dos Criadores chegou a ser parcialmente desocupada no início dos anos 2000, quando a Prefeitura de Santos desativou o Lixão da Alemoa, com o plano de ampliar o parque portuário.
Naquela noite de março, moradores da rua F, desacostumados com a presença de carros, viram viaturas do Baep se enfileirarem no trecho que dá acesso ao matagal. Com medo, trancaram-se em seus barracos. Foi possível apenas ouvir o som dos tiros de fuzil. “Fechei porta, janela, não tive coragem nem de olhar. A gente nunca sabe o que pode acontecer. Eu e minha esposa ficamos deitados no chão. Só deu para ouvir os tiros, bem aqui atrás. Foram mais de 20. Não sobrou milho para pipoca”, afirma um morador da região, que terá a identidade preservada.
“EU TENHO MEDO DE CONTAR O QUE EU VI. A GENTE SABE, AQUI QUEM FALA MUITO VIVE POUCO. É ASSIM QUE FUNCIONA”
Morador da região
Uma das vítimas da PM na região, identificada pelo Metrópoles, é Thiago de Oliveira, de 31 anos, morto em 8 de fevereiro, entre uma linha de trem e a ponte que liga a comunidade à periferia de Cubatão, passando pelo Rio Casqueiro. De acordo com o boletim de ocorrência, por volta das 23h, Thiago e outro rapaz, que segue sem identificação, depararam-se com policiais que faziam patrulhamento na Vila dos Criadores e, sem motivo aparente, teriam começado a atirar contra os agentes, que revidaram. Os suspeitos foram socorridos e levados para a Unidade de Pronto Atendimento (UPA) da Zona Noroeste, mas não resistiram.
Viciado em crack, Thiago de Oliveira não era conhecido pelos moradores da Vila dos Criadores
Thiago nasceu em Guaratinguetá, na região leste do estado, e viveu a maior parte da vida na vizinha Lorena, cidade onde chegou a atuar como servente de pedreiro. Desde 2009, foi preso algumas vezes por roubo e receptação. Segundo familiares, ele era viciado em crack. Em 2022, Thiago foi internado em uma clínica de reabilitação; no fim daquele ano, foi morar na rua. Desde então, a polícia não sabia seu paradeiro. No Piratininga, na Alemoa e na Vila do Siri, comunidades vizinhas à Vila dos Criadores, moradores dizem nunca ter visto Thiago na região.
Familiares das vítimas
Corpos fuzilados e banho de sangue compõem o pano de fundo da maioria dos filmes de ação, nos quais raras são as mortes que despertam compaixão no espectador. Na ficção, o enredo do bem contra o mal funciona para definir quem são os “matáveis”, os corpos que caem às dezenas durante a trajetória do protagonista, invariavelmente orgulhoso do resultado. Já as balas da vida real deixam marcas que fogem do script e fragilizam a retórica da guerra. O Metrópoles apurou o impacto desses rastros de pólvora em famílias e comunidades onde ocorreram as 66 mortes documentadas pelo estado na Operação Verão.
Leonel Andrade Santos, de 36 anos, ficou conhecido como o homem que usava muletas ao ser atingido por tiros de fuzil disparados por PMs do Comando de Operações Especiais (COE). A versão oficial diz que ele estava armado e teria atirado contra os policiais, antes de ser baleado e morto no Morro do São Bento, em Santos, no dia 9 de fevereiro. A merendeira Beatriz da Silva Rosa, de 29 anos, viveu 14 anos com Leonel, tem três filhos com ele e diz que seria impossível o marido ter atirado contra os PMs. Para ela, a reação mais marcante provocada pela ação dos policiais veio de seu caçula.
A morte de Leonel ricocheteou também na de Jefferson Ramos Miranda, de 37 anos, o amigo que estava ao lado dele no Morro do São Bento durante a incursão do COE. A irmã dele aponta que o rapaz foi executado e teve o socorro impedido pelos PMs.
Em um filme, o corpo do entregador de colchões Davi Gonçalves Júnior seria só mais um tombando em meio ao avanço das forças especiais. Mas testemunhas afirmam que ele foi morto dentro de casa, no bairro Parque São Vicente, ao lado do amigo Hildebrando Simão Neto, de 24 anos, que tinha deficiência visual. PMs da Rota alegam que compareceram ao local para averiguar uma denúncia de tráfico de drogas e foram recebidos a tiros pelos dois. Segundo familiares, ambos estavam em um quarto jogando no celular. Davi morreu no local, e Hildebrando, dois dias depois, no hospital. A irmã de Davi diz que o rapaz trabalhava e que jamais atiraria contra policiais.
O pedreiro José Marcelo Neves dos Santos, de 31 anos, foi morto por PMs nas proximidades da Vila dos Criadores, onde vivia. Moradores da região refutam a versão policial de que houve confronto; dizem que se tratou de mais uma execução, com torturas e até a raspagem à faca de uma tatuagem que trazia no corpo, deformado após a ação policial.
“REAÇÃO VIOLENTA DE BANDIDOS A AÇÕES DE COMBATE AO CRIME ORGANIZADO”
Por meio de nota, a gestão do secretário Guilherme Derrite afirmou que as forças de segurança paulistas “operam estritamente dentro de seu dever constitucional” e que “as mortes decorrentes da reação violenta de bandidos a ações de combate ao crime organizado são rigorosamente investigadas”.
Leia a íntegra da nota oficial:
“As forças de segurança do Estado de São Paulo são instituições legalistas e operam estritamente dentro de seu dever constitucional, seguindo protocolos operacionais rigorosos. Não são tolerados excessos, indisciplina ou desvios de conduta. É importante ressaltar que a Corregedoria da Polícia Militar está à disposição para receber e apurar denúncias sobre a atuação de seus agentes.
As mortes no âmbito da Operação Verão, decorrentes da reação violenta de bandidos a ações de combate ao crime organizado, são rigorosamente investigadas pelas polícias Civil e Militar, com acompanhamento das respectivas corregedorias, do Ministério Público e do Poder Judiciário. Em todas as ocorrências, as armas utilizadas por criminosos, incluindo fuzis de uso restrito, foram apreendidas.
O trabalho da perícia é parte fundamental da investigação. Na Operação Verão, todas as ocorrências tiveram algum tipo de exame pericial, seja nos locais dos eventos ou de corpo de delito, residuográfico e balística. As perícias locais são solicitadas pelas polícias ou pelo Ministério Público, mas podem ser suspensas ou canceladas devido a situações excepcionais, como alto risco de novos confrontos. Em uma das ocorrências da Operação Verão, por exemplo, houve disparos contra a equipe que tentava fazer a perícia no local.
As ações de combate ao crime organizado na Baixada Santista, entre 28 de julho e 5 de setembro de 2023 e a partir de 3 de fevereiro deste ano, resultaram na prisão de importantes lideranças do tráfico de drogas na região. Além disso, mais de 2 mil criminosos foram presos, dos quais 876 eram procurados pela Justiça. Também foram retiradas das ruas 238 armas de fogo ilegais e 3,5 toneladas de drogas, gerando prejuízos significativos ao crime organizado”.
Lilian Tahan
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