Os relatos sobre jovens vítimas de violência são profundamente marcados por quebras e ausências. As histórias que poderiam ter sido. Os estudos a concluir. As profissões que não foram escolhidas. As crianças que ficaram órfãs. Mães, pais, irmãos em luto até o fim de suas vidas. Todos atingidos pela violência letal. Assim também é a trajetória de Lilian Cristina da Silva Nunes, interrompida aos 25 anos por causa do ódio contra as mulheres.
Lilian viveu menos de um terço dos 79 anos esperados como média de idade das brasileiras. Na manhã do dia 12 de setembro de 2019, o ex-companheiro – com quem se relacionou por um breve período – desferiu facadas contra seu coração. Jhonnatan Neto, ao ser preso em flagrante, alegou não aceitar o fim do relacionamento. Ao vê-la com um novo namorado, teria sido “tomado pelo ódio”. Quando deu fim à vida da ex, o homem de 36 anos que cumpriu, até este ano, pena por roubo deixou cinco crianças, com idades entre 1 e 9, sem a mãe.
À época do feminicídio, Lilian morava no Núcleo Rural do Boqueirão (a 23 km da região central de Brasília) apenas com a caçula. Dividia o tempo entre os cuidados com a criança, fruto do relacionamento com o terceiro marido, bicos para conseguir alguma renda como manicure ou cabeleireira e os estudos. Cursava o sétimo ano no Centro de Ensino Fundamental (CEF) 1 do Paranoá. Quando engravidou do filho que hoje tem 9 anos, a jovem saiu da escola, mas retornou em 2017. Na quinta-feira, dia do assassinato, faria a apresentação de um trabalho para o qual vinha se dedicando.
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“Ela tinha o sonho de ter uma casa e um trabalho, queria voltar a morar com as crianças. Era muito alegre, extrovertida, contagiava a família toda”, conta a irmã Monika Nunes, de 23 anos. “Estávamos pensando em fazer uma vaquinha para comprar um kit de unha em gel, queríamos que ela conseguisse se estabelecer”, lembra.
Lilian – a segunda filha de Damiana e Adão Pedro – cresceu em uma família de quatro mulheres. Para o pai, que tem 50 anos, a jovem era destemida. A irmã Monika concorda: “Ela não era de briga, mas enfrentava qualquer coisa para proteger a gente e os filhos”.
De acordo com a família, Lilian nunca tinha vivenciado um episódio de violência doméstica até conhecer Jhonnatan. Apesar disso, há três ocorrências de Lei Maria da Penha em que ela é a vítima registradas na 6ª Delegacia de Polícia (DP), no Paranoá. A primeira data de 2011 por vias de fato (quando não há lesão na briga); a segunda, de 2015, por ameaça; e a última, de 2017, ainda está em apuração. Em outro registro policial, de 2009, ela aparece como vítima de tentativa de homicídio. Nesse caso, a acusada era uma mulher.
Monika – a mais próxima da jovem entre as três irmãs – percebeu que, no mês antes do crime, Lilian andava sumida. Ela acredita que Jhonnatan já estava fazendo ameaças. “Ao contrário do que falaram, eles não tinham se separado havia apenas 15 dias nem viveram um relacionamento de cinco meses. Ela ficou com ele só uns três meses. Não queria parar a vida por causa dele”, desabafa. Provavelmente, Lilian evitou encontrar a família para não falar sobre o problema pelo qual vinha passando.
Monika foi a responsável por fazer o reconhecimento do corpo de Lilian antes de ele seguir para o necrotério do Paranoá. Viu que a irmã foi golpeada pelas costas, na altura do tórax. Segundo ela, foram várias facadas no mesmo local, como que para ter certeza de que não haveria chance de sobreviver. “O coração dela ficou despedaçado. Acho que ele cortou todas as artérias”, lembra emocionada.
“Todos os dias, eu choro. A dor é imensa, e a saudade, maior ainda. As duas crianças mais velhas sofrem muito. A pequenininha fica olhando, esperando a mãe chegar”, revela. A família de Monika é corresponsável pelas necessidades materiais e emocionais dos cinco filhos de Lilian (três meninas e dois meninos), nascidos de três relacionamentos anteriores ao que ela teve com Jhonnatan. Os dois mais velhos (de 9 e 7 anos) e a mais nova (de 1 ano e meio) vivem agora com a avó materna. Os outros dois (de 5 e 4 anos) moram com a avó paterna.
A família segue em luto pela morte ainda recente da jovem. Apenas uma das três irmãs e o pai aceitaram conceder entrevistas. Adão Pedro trabalha com a televisão ligada algumas horas do dia e se diz assustado com a quantidade de casos de feminicídios noticiados. “Uma pessoa que dorme com uma mulher, que diz que a ama e depois maltrata e mata não é gente”, afirma. A filha não é a única vítima deste ano que ele conheceu. Adriana Maria de Almeida, 29 anos, morta no Riacho Fundo apenas 17 dias depois de Lilian, era vizinha dele.
“Ninguém é dono de ninguém. Você vem de uma mulher, convive com uma mulher, não pode achar que tem o poder sobre a vida dela. Isso não tem nada a ver com amor”
Adão Pedro, pai de Lilian
O feminicídio é sobre todas as mulheres
No jornalismo, a reportagem cujo tema central é a vida de uma pessoa chama-se perfil, como uma referência à imagem de um rosto. O retrato de Lilian Cristina construído a partir dos relatos de familiares leva a uma outra metáfora, a do espelho. A história de vida da jovem moradora da periferia do Distrito Federal reflete a da maioria das vítimas de feminicídio no Brasil.
O Mapa da Violência 2015 traz a análise dos crimes de assassinatos contra mulheres desde 2003 e revela que a maioria das vítimas era negra e com idades entre 18 e 30 anos. “Nos homicídios femininos, há maior incidência de mortes causadas por força física, objeto cortante/penetrante ou contundente. A agressão perpetrada no domicílio da vítima tem maior incidência entre as mulheres do que entre os homens. É cometida, preferencialmente, por pessoas conhecidas”, destaca o documento elaborado pela Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso) Brasil.
Dados mais recentes apresentados pelo Atlas da Violência 2019, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), revelam que os homicídios seguem como a principal causa de morte entre jovens (homens e mulheres) no país. As negras representam 66% do total de mulheres assassinadas.
A história de uma vítima de feminicídio, em parte, também conta um pouco do que é ser mulher. O caso de Lilian leva a uma reflexão sobre como a desigualdade de gênero está imbricada nas relações sociais.
Em poucos meses, Jhonnatan foi do início de um relacionamento à violência extrema. O professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Cristiano Rodrigues tem se dedicado à compreensão das masculinidades não hegemônicas (isto é, identidades de homens que não são, ao mesmo tempo, heterossexuais, brancos e ricos) e encontra, nos estudos de gênero, a lente que permite analisar o que aconteceu entre Lilian e Jhonnatan.
A célebre frase da teórica feminista francesa Simone de Beauvoir – “Não se nasce mulher, torna-se mulher” – pode também ser aplicada à construção da identidade dos homens, como um grupo social de características semelhantes.
Para Rodrigues, a masculinidade hegemônica se constrói por meio de dois movimentos. O primeiro se dá a partir da estabilidade da identidade do outro. Lilian e as mulheres que se contrapõem às decisões dos homens desestabilizam a masculinidade. As respostas a esse fato – de acordo com as análises de Rodrigues – são, em geral, a autoviolência (como o silêncio) ou a eliminação do outro (o feminicídio).
“Não se constitui a masculinidade sem o ódio às mulheres”
Cristiano Rodrigues, pesquisador do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre a Mulher (Nepem) da UFMG
O outro movimento de construção da masculinidade está relacionado ao fato de os homens conviverem, ao mesmo tempo, com sentimentos de objetificação da mulher e de abjetificação do que é feminino. Ou seja, o desejo pela mulher conecta-se com um sentimento de desprezo a tudo o que se refere a ela. A alternativa para lidar com essa dicotomia também é a partir da violência. Quanto mais tomados pela abjetificação, maiores são o ódio e a necessidade de demonstrá-lo, inclusive para seus pares.
A delegada titular da 6ª Delegacia de Polícia, Jane Klébia, que registrou a ocorrência do feminicídio de Lilian, surpreendeu-se com o fato de os dois estarem dividindo a casa mesmo depois do fim do relacionamento. Jane adverte que é importante que as mulheres compreendam o potencial lesivo do ódio deles contra elas. “A mulher tem direito a viver livre, a ter os parceiros que quiser. É importante, porém, que consiga zelar pela própria segurança”, argumenta.
Saídas para o problema
Depois de realizar 50 entrevistas com homens em Belo Horizonte para a pesquisa sobre masculinidades e de 15 anos dedicados aos estudos de gênero, Cristiano Rodrigues acredita que há caminhos para um novo projeto de identidade masculina, mais distante da violência.
Para ele, o ponto de partida está no aumento da responsabilização dos homens. “É preciso assumir que estamos em condições mais positivas que as mulheres por conta da estrutura patriarcal das nossas sociedades. Isso vale também para homens que não são heterossexuais, brancos ou ricos”, diz. Entre as vantagens masculinas, é possível mencionar os ganhos mais elevados com o trabalho, a menor participação em tarefas não remuneradas e a maior representação política e em espaços de poder.
Outra questão importante é reconhecer as desigualdades entre homens, o que Rodrigues chama de fraturas internas. Ele afirma que, durante muito tempo, movimentos sociais e especialistas atuaram para proteger as mulheres contra a violência de gênero dizendo a elas o que fazer. “Agora, as respostas devem ser outras: precisamos dizer aos homens como eles têm de agir e, sobretudo, como não devem agir”, destaca.
É em meio a esse caldo de cultura que são definidos status sociais e poderes desiguais para homens e mulheres. É também nele que se constroem as instituições que mediam as relações sociais. No caso de Lilian e Jhonnatan, nem houve tempo para uma denúncia ao sistema de Justiça, mas esse feminicídio nos coloca frente ao questionamento de como é necessário enfrentar a cultura machista com políticas públicas.
Na visão da advogada criminalista Soraia Mendes, o sistema de Justiça, especialmente o criminal, ainda está no início de sua caminhada em relação aos direitos das mulheres. Apenas no século 21, em 2006, o Brasil passou por uma mudança legislativa significativa, a promulgação da Lei Maria da Penha.
“O sistema de Justiça segue como reflexo da nossa sociedade. Encontramos, por exemplo, vieses machistas na visão que magistrados têm de subalternidade das vítimas, como a mulher que gosta de apanhar ou o fato de que a violência doméstica deva ser solucionada no campo da família”
Soraia Mendes, advogada criminalista
Soraia — que tem pós-doutorado em Teorias Jurídicas Contemporâneas na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) — defende que tanto a Lei Maria da Penha (LMP) quanto a Lei de Feminicídio são ganhos para a luta pelo direito a uma vida livre de violência. “A tipificação dos feminicídios trouxe a desigualdade de gênero para o centro da discussão processual”, defende.
Entre as especialistas responsáveis por elaborar o anteprojeto que deu origem à Lei Maria da Penha, Myllena Calasans reforça a importância de as estruturas do Estado garantirem o aparato de serviços de atendimento às mulheres de forma descentralizada e com qualidade. “Não podemos dar margem para que a vítima seja responsável pelo risco a que está submetida. Uma mulher só pode escolher se afastar do agressor se tiver para onde ir”, alerta. “As estratégias para neutralizar o ódio dos homens contra as mulheres não podem ser apenas culturais. Devem ser materiais também”, explica.
Myllena ressalta que não adianta a população permanecer em vigília e como agente denunciador enquanto o poder público se distancia do papel de garantidor de ações de enfrentamento às violências. Para ela, o feminicídio precisa ser compreendido como “a ponta do iceberg” das ausências do Estado em sua função de promover políticas públicas preventivas, de assistência e de coibição.
Nísia Bahia
É jornalista com experiência em temas dos direitos das mulheres no Brasil. Nos últimos anos, tem desenvolvido análises e projetos sobre desigualdade de gênero, levando em conta aspectos raciais e de classe social.
Elas por elas
Neste 2019, o Metrópoles inicia projeto editorial para dar visibilidade às tragédias provocadas pela violência de gênero. As histórias de todas as vítimas de feminicídio do Distrito Federal serão contadas em perfis escritos por profissionais do sexo feminino (jornalistas, fotógrafas, artistas gráficas e cinegrafistas), com o propósito de aproximar as pessoas da trajetória de vida dessas mulheres.
Até sexta-feira (20/12/2019), 16.376 mulheres do DF já procuraram delegacias de polícia para relatar abusos, ameaças e agressões que vêm sofrendo por parte de maridos, companheiros, namorados ou pessoas com quem um dia se relacionaram. Já foram registrados 29 feminicídios. Com base em informações da PCDF, apenas uma pequena parte das mulheres que vivenciam situações de violência rompe o silêncio para se proteger.
O Elas por Elas propõe manter em pauta, durante todo o ano, o tema da violência contra a mulher para alertar a população e as autoridades sobre as graves consequências da cultura do machismo que persiste no país.
Desde 1° de janeiro, um contador está em destaque na capa do portal para monitorar e ressaltar os casos de Maria da Penha registrados no DF. Mas nossa maior energia será despendida para humanizar as estatísticas frias, que dão uma dimensão da gravidade do problema, porém não alcançam o poder da empatia, o único capaz de interromper a indiferença diante dos pedidos de socorro de tantas brasileiras.