Elizabete era criança quando percebeu que as mães das amiguinhas e até as próprias crianças não a deixavam brincar com o grupo. Achava que o motivo era porque, menina, ela gostava de ficar na rua. Só descobriu que havia algo errado quando uma das amigas – loira, querida pelos colegas – avisou que só brincaria se Elizabete estivesse junto. Essa era a única forma de sua presença não ser ignorada: era a única negra na turminha de garotas. Em quase 30 anos, a brasiliense conviveu e enfrentou cenas de racismo e discriminação ao menos por outras três vezes; a última, há cerca um ano.
A história de Elizabete Braga expõe uma realidade preocupante na capital do país, a do racismo e da injúria racial. Entre 2011 e 2016, o Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT) denunciou 358 pessoas por discriminação racial. No mesmo período, o número de presos em flagrantes do crime cresceu 375%, passando de oito para 38 casos.
As estatísticas fazem parte de um estudo inédito elaborado pelo MPDFT que traça o perfil da discriminação racial no DF. Coordenado pelo promotor Thiago Pierobom, o levantamento analisou 150 denúncias oferecidas pelo Núcleo de Enfrentamento à Discriminação (NED) da instituição nos últimos 10 anos.
O nível de detalhamento é tamanho que o grupo conseguiu identificar, inclusive, os xingamentos usados pelos agressores. As palavras mais encontradas nos processos de discriminação foram “preto safado”, “macaco” e “seu preto”.
Brasília é a região administrativa com o maior número de casos (48%). Taguatinga aparece como segunda colocada (20%). O restante das denúncias se espalha entre as demais cidades. A explicação, segundo os representantes do MPDFT, é que as duas regiões administrativas com mais casos concentram também os postos de trabalho. O estudo virou livro, que será lançado nesta terça-feira (12/6), na sede do Ministério Público do DF e Territórios. Veja os principais dados inclusos na obra:
Para o promotor Thiago Pierobom, o estudo revela quão discriminatória é a capital do país. “É só uma lasca da ponta do iceberg do que é submetido ao Poder Judiciário. A discriminação não é só problema para as pessoas negras. “Ela é um câncer que corrói um dos pilares da democracia, o princípio da igualdade. Uma sociedade que não se constrói na igualdade está fadada à arbitrariedade”, afirma.
Apesar dos dados negativos, o promotor indica que há um ponto positivo na pesquisa. Diz respeito à responsabilização dos agressores. “Em 80% dos casos que denunciamos, há responsabilização do agressor. E, em 87%, o Tribunal mantém a condenação. Criou-se uma jurisprudência favorável de que é preciso condenar. Com isso, podemos afirmar que o agressor não sai impune”, destaca Thiago Pierobom.
“Gosto do que vejo no espelho”
Elizabete Braga tem 39 anos. Ao longo da vida, foi parar três vezes em delegacias de polícia. Todas elas para denunciar discriminação sofrida por ser negra. O caso mais recente ocorreu em 28 de junho do ano passado, quando Terezinha de Oliveira Silva, 78 anos, puxou os cabelos da produtora audiovisual. Incomodada, Elizabete reclamou com a mulher, que passou a xingá-la de “negra do cabelo ruim, negra nojenta e mal-educada”. Passado quase um ano, Elizabete ainda aguarda um desfecho. A agressora foi denunciada, mas a Justiça espera um laudo de sanidade mental.
A situação fez a produtora reviver outros dois casos. Um em 2007, quando ela trabalhava em um café. “Um homem falou que ‘esses pretos deveriam voltar para a África’. Chamei a polícia e fomos para a delegacia. Lá, o escrivão insistiu para que eu colocasse como ofensa. Falava que era [o agressor] um pai de família que havia bebido demais”, lembra.
Outra vez, em 2015, saindo do estacionamento de um shopping, Elizabete não deu dinheiro para o guardador de carros e ouviu que “esses pretos são todos assim mesmo”. Desta vez, nem o registro da ocorrência conseguiu fazer. “Cheguei na delegacia e fiquei feliz ao ver um policial negro, mas, quando contei o que aconteceu, ele falou para eu não mexer com isso, que não dava nada. Saí de lá calada, sem registrar a ocorrência”, conta.
Quando criança, Elizabete também teve de enfrentar o preconceito das mães das amigas, que não a deixavam brincar com as outras garotas.
Sempre achei que era porque eu ficava muito na rua. Mas a minha amiga, loira e de olhos verdes, precisava brigar com as outras meninas para brincarmos juntas. Como todas queriam brincar com ela, deixavam eu participar. Só quando cresci entendi o motivo. Com exceção da minha cor, éramos todas iguais.Elizabete Braga, produtora audiovisual
Por muito tempo, o preconceito fez Elizabete se culpar. “Eu tinha mais cuidado em lidar com as pessoas, como se eu tivesse culpa por ter nascido negra. Me via com receio de que alguém se levantasse contra mim. Essa consequência que fica nas vítimas do racismo ninguém contabiliza”, desabafa.
Apesar dos ataques sofridos ao longo da vida apenas pela cor de sua pele, Elizabete não desanima. Garante que vive uma luta constante, mas é feliz quando se olha no espelho. “Você cresce achando que o cabelo é feio, que a cor é feia. Mas, hoje, me olho no espelho e gosto do que vejo, valorizo o que vejo”, afirma a produtora. Para ela, só haverá mudança quando a sociedade passar a compreender e a cortar todas as atitudes racistas. “E também é importante que quem sofre algum tipo de discriminação denuncie”, recomenda.
Crime
O racismo e a injúria racial são crimes previstos no Código Penal. As penas para ambos chegam a três anos de cadeia. A maior diferença em relação à injúria é que o racismo é crime inafiançável e imprescritível: ou seja, seu autor não pode ser posto em liberdade mediante pagamento de fiança e nem importa quando o delito foi praticado, o responsável pode ser punido a qualquer tempo.
Mas, em ambos os casos, a legislação permite que o agressor cumpra medidas alternativas ou faça acordo com a vítima. Apesar de dificilmente alguém ser sentenciado à prisão, o promotor Thiago Pierobom não defende endurecimento da pena.
“O que faz a pessoa parar de praticar crimes não é o tamanho da pena, mas a rapidez e a efetividade da punição. Eu aposto na capacidade de ressocialização”, afirma Pierobom
Ele considera ainda que um rigor maior na legislação desses crimes pode ir contra a vítima no futuro. “O Direito Penal, em algumas situações, é instrumento de violência institucional. Pois é o mesmo que, em vários casos, viola o direito da população negra. E, hoje, 80% dos encarcerados são negros e pobres”, pontua o promotor. “A hiperpenalização é algo que, por vias transversas, alcança os negros. Em certa medida, fortalecer esse discurso excessivamente punitivista, que não tem uma ligação direta com a proteção da vítima, pode ser prejudicial para a própria vítima a médio prazo”, justifica.
A quem recorrer
Além do Ministério Público, quem sofre discriminação no DF pode recorrer à Delegacia Especial de Repressão aos Crimes por Discriminação Racial, Religiosa ou por Orientação Sexual ou Contra a Pessoa Idosa ou com Deficiência (Decrim).
A unidade foi criada em janeiro de 2016 com o objetivo de atender especialmente vítimas desses crimes. A unidade funciona no Departamento de Polícia Especializada (DPE), ao lado do Parque da Cidade, de segunda a sexta-feira, das 12h às 19h. O telefone é (61) 3207-4242.
Estatísticas deficientes
Ao contrário do MPDFT, que mantém os dados de discriminação atualizados, a Secretaria de Segurança Pública (SSP) do DF não tem estatísticas recentes. Os números mais atuais da pasta são de janeiro a outubro de 2016, quando foram registradas 341 ocorrências de injúria racial no território candango.
No mesmo período de 2015, o número chegou a 296 casos. Nesse levantamento, as cidades com mais ocorrências de injúria foram Brasília (54), Ceilândia (46) e Taguatinga (33). Quanto aos registros de racismo, os últimos dados da SSP são de 2015: total de quatro ocorrências.