A QR 217 de Santa Maria está sempre tranquila, os vizinhos transitam livremente e os cachorros se divertem pela rua. Ninguém se atreve a imaginar que o local foi palco de uma tragédia. No mesmo asfalto onde correm as crianças, a vida de Necivânia Eugênio de Caldas, de 37 anos, foi tirada.

Era 14 de novembro, uma tarde de quinta-feira. Vânia, como era conhecida a manicure, chegava à casa de seu pai conduzindo sua Honda Bis. Estava acompanhada do filho de 8 anos, com quem retornava do cabeleireiro.

Rafaela Felicciano/Metrópoles
Francisco matou Necivânia quando ela chegava em casa com sua Honda Bis
Francisco matou Necivânia quando ela chegava em casa com sua Honda Bis

Francisco Dias Borges, 37, o ex-companheiro, a aguardava. À espreita, planejava matá-la. Conforme relatado por testemunhas, o homem chutou a motocicleta para derrubar a manicure e a esfaqueou. A lâmina atingiu o peito dela.

Tudo aconteceu na frente da casa da família de Vânia. Enquanto o garoto de 8 anos saía gritando por socorro, o pai dela, Manoel Eugênio, 65 anos, se desesperava: “Não faz isso com ela! Não faz isso com ela!”.

O irmão, Adaílton Eugênio, 33, tentou impedir o crime, lançando-se sobre o agressor. Adaílton terminou ferido; Necivânia, morta. Já sobre Francisco, caiu a fúria popular, sendo espancado por testemunhas momentos depois.

O relacionamento

Aquela foi a última agressão de Francisco contra Necivânia, mas não a primeira. A relação de ambos durou cerca de 6 anos, entre idas e vindas conturbadas, nas quais ela acabava sendo vítima de alguma forma.

“Ele batia nela e quebrava as coisas durante as discussões” afirma Fabiana da Silva Gomes, 35 anos, dona de casa. Fabiana é esposa de Adaílton e, portanto, convivia intimamente com a cunhada Vânia. “Já quebrou televisão, celular. Uma vez estragou a moto dela, de propósito, para ela não poder sair”.

Os dois se conheceram por meio do Facebook, por onde trocavam mensagens. Francisco morava em Mato Grosso. Necivânia estava em Brasília. Até que, por fim, uma ocorrência criminal levou Vânia a se mudar para a casa dele.

A manicure foi condenada por tráfico de drogas e, para não ser presa, foi viver com o namorado distante. Se antes ela o via como uma salvação, de repente ele se tornou uma espécie de sofrimento velado. A convivência mostrou que Francisco não era nenhum príncipe encantado.

Fabiana, a cunhada, relata: “Às vezes ela me mandava foto toda feliz, dizendo que ia a algum show ou evento. E, de noite, me mandava outras, com o rosto machucado, depois de apanhar. Eles sempre acabavam se desentendendo”.

A vaidade de Vânia se deteriorou durante o relacionamento. Antes fazia questão de se produzir, arrumar o cabelo e pintar as unhas. Os cuidados consigo mesma foram se perdendo. Sentiu diminuir a vontade de sair, de aproveitar a vida, de estar com amigos.

As brigas com os familiares ficaram constantes: mesmo de longe, ninguém aprovava aquela relação.

Arquivo Pessoal
Francisco matou Necivânia quando ela chegava em casa com sua Honda Bis
Por vingança, Francisco entregou Necivânia à polícia. Ela estava foragida após ser condenada por tráfico de drogas

Por fim, Vânia retornou ao Distrito Federal. A atitude irritou Francisco, que passou a telefonar para ela insistentemente. Dizia querer reatar. Tentar de novo. Reconstruir a relação.

O fato de a mulher parecer resoluta na decisão de não retornar fez com que Francisco se sentisse provocado, conta a família. Num gesto inesperado, ele próprio fez a denúncia contra Vânia. Veio até o DF e chamou a polícia para prendê-la como foragida, diz Fabiana.

“Vânia cumpriu dois meses e foi solta em dezembro de 2017. Pensamos que ela se distanciaria do Francisco por conta da denúncia. Mas foi o contrário. Eles voltaram depois que ela saiu da cadeia. Não conseguimos acreditar”, relembra a cunhada. Foi a gota d’água, o ponto em que desistiram de tentar interferir.

Passaram a viver juntos em Brasília. Primeiro, no Recanto das Emas. Depois, Santa Maria, muito perto de onde Necivânia morava anteriormente. Mais tarde, tempos depois, esse seria o local do crime.

Na vizinhança onde muitos se tratavam como amigos, Francisco parecia não se encaixar. Fechado, raramente se misturava nos bate-papos da rua, mal chegando a cumprimentar. Se limitava a escutar, de longe, as conversas de sua companheira, como que vigiando.

A vítima

Necivânia era mulher de sonhos e de realizações. Foi a única a continuar os estudos em sua família. Seguiu sempre em frente com a escola e a faculdade, apesar das inúmeras dificuldades.

Cursava enfermagem em Taguatinga e estava prestes a começar um estágio na área. Já tinha se antecipado, animada, ao comprar os materiais necessários.

Era a segunda filha de três, todos nascidos na Paraíba. Vieram novos para o Distrito Federal e, inicialmente, moraram na Vila Telebrasília. Em seguida, mudaram-se para Santa Maria. As crianças cresceram na Região Administrativa.

Vânia teve quatro filhos de diferentes idades, sendo o mais velho de 19 e a mais nova com 5 anos. A caçula é a única resultante da união com Francisco.

“Ela adorava sair” diz Fabiana, passando pelas fotos de Vânia enquanto a saudade bate. Nas redes sociais é possível ver apenas uma mulher animada, rodeada de amigos. Não há nenhum indicativo do relacionamento abusivo que a atormentou por tantos anos.

Vânia gostava de acordar cedo e, bem humorada, se punha a arrumar a casa e a lavar o quintal. Tal hábito não poderia passar despercebido pela filha mais nova. Dudinha aprendeu com a mãe o costume de sair logo da cama. E, mesmo após a partida de Vânia, ainda o conserva.

Dudinha chama e pergunta por Vânia. E, nos dias em que a saudade aperta ainda mais, a menina se põe a chorar sob a escadaria da casa dos tios. Os filhos mais novos passaram a viver com Adaílton. Os mais velhos permaneceram com o avô Manoel Eugênio. Ambos moram no mesmo lote na QR 217.

“Eu converso com ela. Digo que a mamãe não vai mais vir, mas que a Vânia está bem, está com a vovó. Mas o coração da pequena está apertado”, conta Fabiana da Silva.

Francisco não gostava da proximidade de Vânia com a família. Ela visitava o irmão escondida, aproveitando as oportunidades em que o companheiro não estava em casa. E, para complementar a renda, fazia serviço de manicure.

Tantos anos de agressões e brigas fizeram com que, por fim, Necivânia conseguisse colocar um ponto final em sua história com Francisco. Farta de vê-lo passar o dia inteiro alcoolizado, ela anunciou a separação uma semana antes do crime.

A manicure voltou para a casa onde estavam seu pai e os filhos, mas isso não garantiu a sua paz. Por dias seguidos, Francisco apareceu de madrugada no portão, chamando por ela. “Eu não quero mais nada com você. Cadê minha filha? Só quero levar a menina”, teria dito o homem.

A família

Manoel Eugênio abre o portão vermelho da casa, seus dedos a enrolar um cigarro. “Não quero mais falar disso. Já cansei desse assunto”, declara, educadamente, ao ser questionado sobre a falecida filha.

Sem dizer muito, passa a caminhar pela quadra. “Ele não quer reviver as memórias”, explicam seus amigos na rua. “Amava muito a filha.”

Manoel, viúvo há cerca de quatro anos – quando perdeu a esposa para um câncer de pulmão – passou a viver apenas com os dois netos. Os jovens têm 19 e 16 anos. Os outros dois filhos de Vânia, as duas crianças menores, foram morar na casa ao lado com os tios.

Na época da morte da mãe, Neci, aos 62 anos, Vânia não conseguiu se despedir. Ainda estava foragida em Mato Grosso. A perda foi marcada pela coincidência de ter acontecido no dia comemorativo às mães.

O pai jamais viu de bom grado o relacionamento de Vânia com Francisco. “Não era homem para minha filha”, chegou a dizer. “A gente falou, mas ela não quis largá-lo.”

Já Adaílton guardava um carinho especial pela irmã que tentou salvar. Seus ferimentos apresentam boa recuperação, menos de um mês após o ocorrido.

“Ele tirou a vida da minha irmã. Nada explica isso. Não há perdão para um desgraçado desse”, revolta-se. “Nesse momento, a minha irmã já estava no chão. Fui em direção a ele e, ao tentar desviar, desequilibrei e caí”, contou.

Adaílton levou duas facadas certeiras. Uma no pescoço e a outra um pouco abaixo do ombro. Temeu, também, pela própria vida.

“Eu escapei. Graças a Deus. Agora, fica a revolta pela minha irmã, pelos meus sobrinhos. Eles estão inconsoláveis.”, ressaltou.

Vinicius Santa Rosa/Metrópoles
Necivânia deixou quatro filhos e uma família desolada
Necivânia deixou quatro filhos e uma família desolada

A manicure Chirlyena da Silva, de 32 anos, se recorda de Necivânia como uma mulher “tranquila e batalhadora”. Chirlyena é vizinha do lote onde vive a família da vítima.

“Eu não a vi sair de casa na semana do crime. Parecia que estava escondida, com medo”, relata. “E, no dia, só ouvi alguém gritando, dizendo que ela tinha sido morta.”

Francisco foi linchado por populares e preso em flagrante. No momento continua em prisão preventiva.

Leonardo Otreira, promotor de Justiça do Tribunal do Júri de Santa Maria, responsável pela denúncia, classificou como “gravíssimo” o ocorrido. Francisco foi denunciado por homicídio triplamente qualificado: pela torpeza do motivo, impossibilidade de defesa da vítima e pelo feminicídio. Além disso, responderá pela tentativa de homicídio.

O MP apresentou, também na denúncia, um pedido de aumento da pena devido ao crime ter sido cometido na frente de uma criança.

A família segue inconsolável, procurando atendimento psicológico gratuito para as crianças. Enquanto isso, percorrendo as lembranças, Fabiana tenta entender o sentimento da cunhada e amiga. “Não era amor. Acho que era um medo.”

Luísa Guimarães

Luísa Guimarães

Natural de Bauru (SP), mora em Brasília desde 2013. Cursou jornalismo na Universidade de Brasília (UnB) e trabalhou na editoria de Cidades do Metrópoles.

Elas por elas

Neste 2019, o Metrópoles inicia projeto editorial para dar visibilidade às tragédias provocadas pela violência de gênero. As histórias de todas as vítimas de feminicídio do Distrito Federal serão contadas em perfis escritos por profissionais do sexo feminino (jornalistas, fotógrafas, artistas gráficas e cinegrafistas), com o propósito de aproximar as pessoas da trajetória de vida dessas mulheres.

Até sexta-feira (10/12/2019), 15.643 mulheres do DF já procuraram delegacias de polícia para relatar abusos, ameaças e agressões que vêm sofrendo por parte de maridos, companheiros, namorados ou pessoas com quem um dia se relacionaram. Já foram registrados 30 feminicídios. Com base em informações da PCDF, apenas uma pequena parte das mulheres que vivenciam situações de violência rompe o silêncio para se proteger.

O Elas por Elas propõe manter em pauta, durante todo o ano, o tema da violência contra a mulher para alertar a população e as autoridades sobre as graves consequências da cultura do machismo que persiste no país.

Desde 1° de janeiro, um contador está em destaque na capa do portal para monitorar e ressaltar os casos de Maria da Penha registrados no DF. Mas nossa maior energia será despendida para humanizar as estatísticas frias, que dão uma dimensão da gravidade do problema, porém não alcançam o poder da empatia, o único capaz de interromper a indiferença diante dos pedidos de socorro de tantas brasileiras.

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