O relógio mais famoso do Distrito Federal testemunha, há pelo menos uma década, a degradante transformação social da praça que carrega seu nome. Desde a chegada do crack ao centro de Taguatinga, em 2007, os bancos do cartão-postal deixaram de receber casais apaixonados e passaram a ser ocupados por traficantes, usuários de droga, ladrões, homicidas e prostitutas.
Ao contrário de outras cracolândias de Brasília, estabelecidas em becos escuros e fora da vista de agentes do Estado, a da Praça do Relógio é circundada por diversos órgãos públicos. Num raio de 460 metros, estão o 2º Batalhão da Polícia Militar, a 12ª Delegacia de Polícia Civil, o 2º Grupamento do Corpo de Bombeiros e a Administração Regional.
Apesar de entidades do governo estarem presentes no coração da segunda maior e mais populosa cidade do DF, são omissas em suas ações. As estatísticas oficiais de tráfico de entorpecentes na região nem de longe refletem a realidade do local. De acordo com a Secretaria de Estado da Segurança Pública e da Paz Social, foram 137 casos em 2017.
Mas bastam poucas horas de observação para que o vibrante comércio de compra e venda de cocaína e crack seja flagrado. Terra sem lei, muitas das transações clandestinas são feitas a poucos metros de homens fardados e armados.
Resistentes, comerciantes recorrem às mais diversas fórmulas para manter seus negócios em funcionamento. Algumas unidades mais parecem presídios, pois são equipadas com grades reforçadas, sistema de câmeras, alarmes e segurança particular.
Mesmo diante do aparato de defesa, quase todas as lojas já sofreram com a violência. A reportagem conversou com funcionários ou donos de 20 estabelecimentos situados nos arredores da Praça do Relógio, e apenas dois relataram nunca terem amargado prejuízos com arrombamentos ou assaltos à mão armada.
“Todo dono de comércio sabe quem rouba aqui, mas, se você denuncia, sofre retaliação. O mais seguro é ficar em silêncio e torcer para não ser a próxima vítima”, lamenta o proprietário de uma loja furtada duas vezes este ano.
Cientes da condescendência do poder público em relação às mazelas da região, traficantes e usuários mantêm ativo o mercado de substâncias ilícitas, mesmo quando toda a cúpula da segurança pública se concentra nas redondezas.
Na segunda-feira (4/12), às 21h30, no auditório da Administração Regional de Taguatinga, enquanto coronéis, delegados, representantes do Conselho Tutelar e outros integrantes do Executivo teorizavam numa reunião do Conselho de Segurança de Taguatinga (Conseg), uma mulher, cadeirante, acendia pedras de crack sem ser incomodada, a poucos metros dali.
Perto dela, um homem circulava entre os bancos distribuindo entorpecentes. Mais à frente, aos pés do relógio, dois rapazes andavam com desenvoltura, trocando pedra por dinheiro. Tudo isso a menos de 50 metros de onde ocorria o encontro oficial.
Prostituição de fachada
Já faz alguns anos que a prostituição deixou de ser o negócio mais rentável na Praça do Relógio. Com o vaivém de “zumbis” sedentos por pedras, mulheres notaram que poderiam lucrar bem mais vendendo crack, e não o corpo.
Para tentar não chamar atenção, elas posicionam-se nas escadarias de hotéis e passam a imagem de garota de programa. Clientes desinformados, que demonstram interesse em pagar por sexo, são dispensados pelas moças.
Experientes no submundo do crime, as meninas da Praça do Relógio recorrem a estratégias distintas. A mais comum é embrulhar pedras de crack em pequenos sacos plásticos bem amarrados e guardá-las na boca. Ao identificar os “clientes”, elas discretamente retiram a droga e a entregam.
O método garante que não sejam flagradas em batidas policiais, pois, ao avistar qualquer movimentação de agentes, tratam de engolir o entorpecente feito de pasta-base de cocaína e bicarbonato de sódio que, não raro, leva em sua mistura substâncias tóxicas, como cal, cimento, querosene, ácido sulfúrico, acetona e amônia. Para minimizar as perdas, as traficantes forçam vômito ou ingerem laxante para expelir o produto.
Outra artimanha é colocada em prática na hora do almoço, quando aviõezinhos recrutados por elas — a maioria adolescentes — costumam ser vistos com marmitas andando apressados de um lado para o outro. Misturadas aos alimentos estão pedras de crack. “Eles sabem que nenhum policial vai fuçar a comida deles”, contou o vendedor de uma loja. Em seguida, ele explicou que os policiais têm nojo.
“Matei e fumei em cima do corpo”
Contrariando o padrão de homicidas, que costumam fugir após matar, Bianca sentou-se ao lado do cadáver, improvisou uma lata de refrigerante como cachimbo e acendeu uma pedra de crack. “Estava tão louca que fumei em cima do corpo dele”, relembra.
Embora tenha praticado um crime bárbaro, Bianca nunca foi presa. “Ninguém quer saber de briga de ‘nóia’”, concluiu ela, ao usar o termo para referir-se aos viciados.
Atualmente, casada e moradora de um município goiano situado no Entorno do DF, Bianca conta que a única alegria em sua passagem pela Praça do Relógio foi o filho, hoje com 4 anos. “Ele foi feito na praça, não sei quem é o pai, mas foi por ele que encontrei forças para sair daquele inferno e começar uma vida nova”, diz.
Tráfico na biblioteca
Para ir da Praça do Relógio à Biblioteca Machado de Assis — a única pública de Taguatinga —, basta atravessar as quatro faixas da Comercial Norte. O ambiente de estudos é amplo e oferece aos frequentadores milhares de obras literárias. Apesar de ser um espaço convidativo para universitários e alunos das redes pública e privada, é cada vez mais comum encontrar mesas vazias.
Sem combate eficaz da polícia, traficantes aliciam jovens à luz do dia. De tão tranquilos, os criminosos vendem crack e maconha sentados em uma cadeira. Frequentadores ouvidos pela reportagem contaram que é comum eles entrarem nas dependências do lugar e distribuírem entorpecentes aos estudantes-usuários.
“Às vezes, o traficante deixa a droga no banheiro e vem o usuário logo atrás para pegar”, contou uma estudante que preferiu não se identificar.
Em função das rotineiras investidas dos traficantes, o público na biblioteca está minguando. Nos primeiros 11 meses de 2017, a quantidade de pessoas na biblioteca caiu cerca de 40% em relação ao mesmo período de 2016.
“Muitos pais têm proibido os filhos de virem para cá, pois eles aliciam jovens de 14, 15 e 16 anos. A realidade é triste, mas a biblioteca existe em função dos estudantes, e o tráfico aqui existe em função desses mesmos jovens alunos. É o público-alvo deles. Quando as férias começam, a venda de drogas aqui na porta acaba”, relata a frequentadora.
O cenário no recinto de aprendizado é ainda mais melancólico na lateral do prédio, onde um grupo de viciados em crack derrubou uma cerca e fez morada no interior da instituição.
GDF dá alvará para o tráfico
Servidor público, bem-sucedido na carreira e com vida financeira estável, Carlos*, 50 anos, não imaginava que chegaria ao fundo do poço ao conhecer o crack. “Mesmo ganhando razoavelmente bem, cheguei a fazer empréstimo consignado e vender móveis para comprar pedras”, conta.
Em função do vício, Carlos era frequentemente afastado do trabalho. Quando o salário caía na conta, comprava crack no atacado e se refugiava em alguns dos hotéis que funcionam como inferninhos no centro de Taguatinga.
“Eu pagava o pernoite e ficava dois, três dias trancafiado usando pedra. Quando não ficava no Hotel Taguatinga, estava no Carioca (na CSA 2). Esses estabelecimentos não recebem nenhum cliente comum, vivem para abrigar traficantes e usuários com um pouco mais de condição”, denuncia.
Não é preciso ser nenhum investigador profissional para perceber o comércio de droga nas escadarias dos estabelecimentos. Mesmo assim, eles têm licença de funcionamento expedidos pelo Governo do Distrito Federal.
Financiados pelo mercado da droga, nem mesmo se preocupam em simular que hospedam viajantes: não têm telefones para receber reservas, camareiras ou qualquer tipo de serviço que lembre um dormitório. Em setembro de 2016, foram interditados numa operação da Polícia Militar e da Agência de Fiscalização (Agefis), mas conseguiram reabrir em poucos meses.
Mesmo sendo o trajeto mais curto da sua casa para o trabalho, Carlos evita passar pela área central da Região Administrativa, lugar que lhe traz péssimas recordações. “A sensação que tenho quando passo naquele lugar é de voltar ao inferno. Cheguei a viver como um animal. Vivia para usar (crack) e usava para viver”.
Instituições sem credibilidade
Para a coordenadora do Núcleo de Estudos sobre Violência e Segurança da Universidade de Brasília (UnB), Maria Stela Grossi, o ativo comércio de drogas em regiões com constante aparato policial se explica pelo fato de os criminosos tratarem as instituições de segurança pública com descrédito. “O crime prevalece porque os autores sabem que são baixíssimas as chances de serem pegos”, opina.
O presidente do Conselho de Segurança (Conseg) de Taguatinga, João Paulo Santos, discorda. Ele avalia o trabalho das polícias Civil e Militar como efetivo e culpa a Justiça e as próprias pessoas pelo excesso de furtos e roubos na região. “Esses meninos saem do metrô expondo celulares e é impossível a polícia estar presente em todos os lugares. Eles fazem um bom trabalho, mas as pessoas têm de contribuir também”, avalia.
O que diz o governo
O administrador de Taguatinga, Marlon Costa, admite os problemas no quintal do órgão o qual dirige e afirma que o grande fluxo de pedestres na Praça do Relógio contribui para camuflar a ação dos criminosos. “A intensa movimentação de gente traz um certo conforto aos traficantes, que podem se misturar ao público. Estamos em permanente diálogo com as instituições de segurança pública para minimizar ao máximo esses transtornos”, aponta.
Marlon diz ainda ter pleno conhecimento dos transtornos trazidos pelos hotéis Carioca e Taguatinga, e garante ter em curso um planejamento para fechá-los. “Estamos estudando quais instrumentos legais nós temos para cassar a liminar desses dois estabelecimentos”, garante.
O chefe da 12ª Delegacia de Polícia, Josué Ribeiro da Silva, concorda que traficantes se sentem confortáveis ao atuar até mesmo na porta da unidade. Segundo ele, agentes e PMs fazem um combate incansável ao crime na Praça do Relógio, mas dificilmente os bandidos ficam encarcerados.
“Estou na unidade desde abril e, neste período, prendemos uma senhora três vezes por tráfico. Mesmo apresentando filmagens e fotografias de flagrantes em dias diferentes, ela nunca ficou presa por mais de 48 horas. Jamais vamos esmorecer, mas, de fato, é um trabalho de enxugar gelo”, lamenta.
O Metrópoles pediu para falar com o chefe da Polícia Militar, mas a assessoria de comunicação, via e-mail, indicou como fonte o comandante de Policiamento Operacional Oeste, coronel David. Apesar dos vários telefonemas, o oficial não atendeu. A reportagem pediu para conversar com outro responsável pela região, mas não obteve retorno.
*Nomes fictícios a pedido dos entrevistados