Domingo, 7h em Luziânia (GO), a paranaense Sandra Sasinski, 39 anos, aguarda o carregamento do caminhão para seguir viagem. Nos próximos dias, terá a missão de entregar 35 toneladas de óleo vegetal a uma fábrica de ração em Conceição da Feira (BA). Serão, aproximadamente, 1.400 quilômetros entre o ponto de partida e o de chegada.
Acostumada a viajar sozinha, Sandra teve companhia: repórter e fotógrafo do Metrópoles pegaram carona na boleia para conhecer a rotina de quem carrega, pelas rodovias que cruzam o país de Norte a Sul, uma importante parte da economia brasileira. Durante os preparativos, ela era a única funcionária na garagem da empresa para qual trabalha, a Sulina.
Os colegas a tratavam com reverência. “É uma verdadeira motorista, tem intimidade com o caminhão, suja as mãos, é profissional”, elogiou um deles, antes de estender à Sandra um chimarrão e desejar boa viagem.
Logo no começo do percurso, a tampa do filtro de ar do veículo cai na estrada. Os ouvidos atentos da motorista percebem rapidamente o problema. Ela estaciona e procura o item à beira da pista. Leva poucos minutos para encontrá-lo e seguir viagem. “Eu me conecto com o caminhão como se ele fosse meu avatar. Sinto cada barulho, cada vibração”, diz.
Mais à frente, Sandra nota um parafuso no asfalto e desvia cuidadosamente dele. Tem olhos de águia para evitar danos ao veículo. Imprevistos, porém, são inevitáveis. Em Simolândia (GO), o pino de centro do feixe de molas, importante para o funcionamento da suspensão, quebrou – algo que a motorista só descobriu porque entrou debaixo do caminhão para checar cada item durante uma parada.
Como era domingo, o socorro só viria no dia seguinte. A precaução e o conhecimento da profissional, porém, evitaram maiores complicações. “Se eu não tivesse visto, poderia ter acontecido um acidente. Parte importante do trabalho é zelar pelo caminhão, por mim e por quem está ao redor. Quando saio com uma carga, o esforço de uma equipe muito grande está em jogo”, explica.
Na segunda-feira, Sandra soluciona o defeito e segue em frente por mais de 1 mil quilômetros. A hora marcada para a entrega da carga é sagrada. Para recuperar o tempo perdido, seria preciso dirigir parte da noite. “A empresa segue as regras de descanso e exige exame toxicológico periódico de todos os motoristas, com o objetivo de evitar o uso de drogas”, relata.
Na estrada, Roberto Carlos, Sula Miranda, Cezar e Paulinho, Milionário e José Rico e Chitãozinho e Xororó fazem companhia. As trilhas mais animadas ajudam a espantar o sono, enquanto as românticas despertam lembranças do passado. Assim, Sandra não se sente tão sozinha. Quando dá tempo, ela lê um livro ou faz crochê para relaxar antes de dormir. Passa a noite sempre na boleia, pois motorista e caminhão são inseparáveis.
Depois de algumas pausas para comer pastel e ir ao banheiro, a carga chega à Conceição da Feira no horário combinado. É hora de relaxar com um bom chimarrão e se preparar para matar a saudade de casa. Sandra fica até 30 dias longe de Pranchita, a 800km de Curitiba (PR), onde vive com os pais, agricultores, e os dois irmãos.
Foto: Igo Estrela/MetrópolesDo alto de seus 1,60m, Sandra ostenta valentia. Sozinha, percorre 11.200 quilômetros a cada mês pelas rodovias do Brasil Foto: Igo Estrela/MetrópolesCaminhão está sempre limpo e com manutenção em dia. Veículo é a casa do motorista Foto: Igo Estrela/Metrópoles“Parte importante do trabalho é zelar pelo caminhão, por mim e por quem está ao redor. Quando saio com uma carga, o esforço de uma equipe muito grande está em jogo”, afirma Sandra Foto: Igo Estrela/MetrópolesPernoite na boleia: a cama fica atrás dos bancos de motorista e passageiro Foto: Igo Estrela/MetrópolesCuidados pessoais, como pentear os cabelos, também ocorrem na boleia. Nem sempre há banheiros femininos nas paradas Foto: Igo Estrela/MetrópolesSandra carrega um kit completo de ferramentas, elas ajudam na manutenção do veículo e evitam acidentes Foto: Igo Estrela/MetrópolesA caminhoneira tem olhos treinados para reconhecer o perigo na estrada: enxerga até parafusos no asfalto Foto: Igo Estrela/MetrópolesNas paradas, Sandra faz um checklist dos itens de segurança. Neste momento, identificou defeito na suspensão Foto: Igo Estrela/MetrópolesPrivação de sono é uma das principais causas de acidentes na estrada. Empresa exige exames para coibir uso de estimulantes Foto: Igo Estrela/MetrópolesNa chegada ao destino, chimarrão para lembrar de casa e relaxar. Sandra também carrega um pequeno fogão e itens básicos de cozinha Sandra prepara-se para dormir. “Evito andar no pátio do posto de gasolina de madrugada por questão de segurança”, explica Foto: Igo Estrela/MetrópolesSandra Sasinski aprendeu a domar o caminhão: “É como se fosse meu avatar” Foto: Igo Estrela/MetrópolesAntes de pegar no sono, ela lê livros, faz crochê e escuta música Foto: Igo Estrela/MetrópolesAlmoço na estrada: pausa para um pastel frito na hora e caldo de cana “Es valiente!”
O volante é grande demais, os pés de Sandra por pouco não alcançam os pedais, mas nada disso tem importância. Todo mês, ela ganha prêmios da empresa por conseguir economizar combustível. É funcionária modelo, famosa pela seriedade e bravura. A profissional recorre ao filósofo Mario Sergio Cortella para explicar como se sente. “Coragem é preparo e não mera disposição eufórica”, afirma.
Ela, que tem dois diplomas de curso superior – em pedagogia e em comércio exterior –, já dirigiu caminhão frigorífico em países do Mercosul e comandou veículos de nove eixos, com 25 metros de comprimento, pelo Nordeste brasileiro. No Chile, enfrentou riscos de avalanches e de congelamento dos freios. Por onde passava, ouvia uma saudação: “Es valiente!”.
Quando começou na profissão, em 2005, Sandra Sasinski descia do caminhão pelo lado do passageiro ao parar nos postos de gasolina. Assim, os homens no local achavam que ela era apenas carona e estava acompanhada do marido; portanto, não a abordavam. Essa se tornou uma forma de proteção durante as longas viagens.
A motorista também não circula de madrugada nos pátios dos postos. Programa paradas, banhos e refeições sempre levando em consideração a própria vulnerabilidade. Os estabelecimentos, até pouco tempo atrás, não ofereciam banheiros femininos, o que começou a mudar com a presença de mais mulheres caminhoneiras.
Sandra não carrega enfeites nem adesivos no caminhão, ela não gosta de chamar atenção. “Tenho cautela, medo não. Medo paralisa, cautela faz você se resguardar”, ensina a motorista. “Não temo a estrada, pois, afinal, que lugar é seguro?”, questiona.
Uma tragédia fez da paranaense uma mulher ainda mais destemida. O gosto pela profissão começou com uma história de amor: a que viveu ao lado de Antônio. Os dois namoraram desde a adolescência, casaram-se e, juntos, compraram um caminhão. Sandra deixou o emprego público como professora de pré-escola para seguir com o marido nas rodovias. O LS Frontal vermelho se tornou a casa deles.
Apenas um ano depois do casamento, e cinco meses após a compra do veículo, Antônio foi assaltado na BR-277, a caminho de Cascavel (PR). Levou quatro disparos e morreu. “Nessas horas, você tira coragem de onde nem imagina. Fui atrás da minha habilitação e caí na estrada, em 2005. Era uma forma de me manter ligada ao meu marido. Depois, me apaixonei pela profissão, pela liberdade”, relata.
Sandra quitou todas as prestações do veículo e teve de lidar com situações difíceis em oficinas mecânicas. “Já se recusaram a devolver meu caminhão, pois achavam que eu não era a dona. Certa vez, sete homens me fecharam numa sala e tentaram me coagir a pagar a mais pelo serviço. Não abaixei a cabeça e paguei o justo”, lembra. “Tenho um lema: não me aperta, que não te machuco”, diz, resoluta. Hoje, o veículo pertence ao irmão dela, que transporta cargas no Paraná.
“Já ouvi de um mecânico que ele só não metia a mão na minha cara porque eu era mulher.”Sandra Sasinski, 39 anos, caminhoneira
Ela se alegra quando encontra outras caminhoneiras pela estrada, mas ainda vê um longo percurso para que as brasileiras sejam devidamente incluídas na profissão. “A ausência de apoio masculino na criação dos filhos e o peso da maternidade afastam muitas mulheres, fora os preconceitos, né?”, comenta. “Falta também a gente se unir, trocar mais informação. Precisamos dividir nossas histórias para inspirar outras pessoas a conquistarem seus sonhos, sejam eles quais forem”, afirma a destemida motorista.
Sandra pensa em ser mãe, mas adiou os planos por conta da carreira. “Se eu tiver uma filha, gostaria que houvesse tantas opções de profissão para ela escolher quanto de sapatinhos, roupas e enfeites. Afinal, não se nasce mulher, torna-se mulher. Tem uma escritora, Simone [de Beauvoir], que diz isso, você conhece?”, conclui.