Como você conheceu o Afonso Brazza?
Conheci o Brazza quando a gente começou a fazer o documentário. A ideia foi do James Gama e, como eu tinha o equipamento, fizemos uma parceria. Então, conheci o Brazza assim. Chegou uma hora que ficou difícil levar o documentário adiante, devido à falta de dinheiro, tanto que levamos 15 anos para terminá-lo. Mas eu já sabia como era o esquema do Brazza, sabia que ele filmava nos fins de semana, e passei a ajudá-lo com o Tortura Selvagem e, depois, com Fuga Sem Destino.
O que você fazia nessa época?
Trabalhei como assistente de câmera. Eu tinha voltado ao Brasil fazia pouco tempo, depois de morar nos Estados Unidos e estudar cinema por lá. Quando voltei, trouxe um equipamento aqui para Brasília, com a ideia de fotografar e futuramente dirigir. O documentário foi uma oportunidade que surgiu.
Como o Brazza te abordou para assumir a câmera?
Como a gente trabalhava ao lado dele, foi natural. Acabei fazendo as duas coisas: continuava atento ao documentário, mas também assumia a câmera quando ele precisava atuar.
Qual era a câmera do Brazza?
O Brazza trabalhava com a Arriflex 2C em 35mm. Não é uma câmera que permite som direto, porque ela faz um barulhão. É uma tecnologia do tempo da Segunda Guerra ainda. Eu trabalhei com um modelo assim na faculdade e nos cursos de cinema que eu fiz, mas o Brazza tinha um jeito todo particular. A bateria que ele usava, por exemplo, era uma bateria de carro. Geralmente essas câmeras de cinema têm uma bateria no formato de tijolinho, com quatro pinos para encaixar na câmera. Mas o Brazza não tinha isso, então era improvisado.
O Brazza é cercado por vários mitos. Um dos que eu já ouvi é o de que a câmera dele não era totalmente vedada, então o filme eventualmente podia ficar exposto, provocando alteração de luz e cor nas cenas filmadas. Faz sentido?
Acho que o problema não era exatamente esse. Acredito que havia outros fatores que levaram a esses resultados, digamos, estranhos na fotografia dos filmes dele. E isso me chocou muito. Da primeira vez que eu vi o material que eu tinha feito para ele, fiquei deprimido. Achei que estava ajudando o cara, né? Mas, quando vi o copião, e tinha mais gente na sala ao meu lado, fiquei deprimido, porque tinha umas cenas muito escuras, depois outras claras demais, amareladas. Eu fiquei com a cara no chão. Fui falar com o Brazza e ele disse: “Não esquenta, não tem nada, não”.
O Brazza já sabia bem como eram os filmes dele…
Ele sabia que estava usando negativo vencido, né? Eu não sabia. Se soubesse, teria tentado compensar na exposição de luz. Mas ele não me disse nada, então eu trabalhei numa exposição normal. Se eu soubesse, teria tentado expor um ponto acima.
O Inferno no Gama já tinha cenas inteiras esverdeadas, céus esverdeados…
O Brazza saía catando negativos vencidos na cidade, ou às vezes as pessoas doavam para ele, não sei exatamente como funcionava, mas era isso que dava aquele tipo de defeito. Se fosse apenas um flash de luz, poderia ser problema de vedação da câmera ou mesmo do saco preto que ele usava pra trocar o rolo de filme no chassi.
Num set mais profissional, com película, é o primeiro assistente de câmera que faz a troca de chassi. Quem fazia isso nos filmes do Brazza?
Era ele mesmo. Parava o set e ia no carro pegar o saco preto. Ele colocava o chassi dentro do saco, para não entrar luz, e botava o novo negativo.
Ele te dava muitas instruções de posicionamento de câmera?
Ele fazia daquela forma Brazza: “Vamos lá, e o que pegar pegou”. E raramente fazia mais de um take. Uma vez, eu estava fazendo um diálogo, plano e contraplano, duas pessoas conversando. Eu posicionei a câmera onde ele queria; a pessoa disse uma frase e o Brazza pediu para montar a câmera para o contraplano, filmando a outra personagem. A pessoa pronunciou sua fala e o Brazza de novo solicitou a mesma coisa: “Volta a câmera para a posição anterior”. Daqui a pouco, eu estava todo dolorido, carregando aquele equipamento pesado. Eu argumentei: “Mas, Brazza, por que não filmamos tudo de um lado com a primeira pessoa e depois colocamos a câmera na outra posição e filmamos tudo com a outra pessoa?” Ele retrucou: “Não, não, do jeito que eu faço não precisa editar depois, já sai tudo montadinho”. Aí eu entendi o que ele queria.
Brazza, então, já filmava na ordem que ele antecipava como a montagem final? Não só no plano e contraplano de diálogos, mas mesmo em cenas de montagem paralela, cenas de perseguição, quando um bando vinha de um lado, outro bando vinha de outro? Como vocês filmavam isso?
Você tem que se render ao Brazza diretor. Você ia fazendo o que ele queria. Na cabeça dele, já estava montado, fazia sentido. “Agora filma deste lado de cá, agora filma aquilo lá”, e você ia acompanhando. Era o estilo dele, né?
Esse tipo de montagem acabava ficando desencontrada e a audiência percebia um efeito cômico. Você acha que esse efeito cômico era completamente indesejado pelo Brazza? Ou você acha que, de certa forma, ele jogava com isso – afinal, já tinha feito tantos filmes antes e estava dando certo, estava criando uma linguagem própria?
Não, a intenção dele certamente não era ser cômico. Acho que, em determinado momento, ele percebeu como as pessoas reagiam aos filmes dele, mas não buscava esse resultado. Era um estilo provocado pela improvisação. Nos primeiros filmes, ele montava numa cortadeira; só bem depois ele conseguiu uma moviola, que não funcionava muito bem. Então, ele tentava antecipar a montagem na hora de filmar, para facilitar essa segunda etapa.
Mas, ao fazer isso, ele abria a filmagem para outros riscos e possíveis erros…
Naquele diálogo de plano e contraplano, já pude notar que trabalhar com ele não seria no modo convencional. Às vezes, ele começava usando um plano aberto, no zoom, e ia fechando em determinado personagem. Era um recurso que ele costumava usar. E eu não tinha o hábito de operar a câmera, fazer o foco e mexer no zoom, tudo ao mesmo tempo.
Normalmente, no cinema, o operador de câmera teria um foquista para ajudar.
A mesma pessoa fazer tudo isso junto é mais comum no jornalismo, os cinegrafistas têm esse costume. Mas, com o Brazza, tive de fazer isso. E a lente que ele usava não era muito boa; quando você fechava, o foco mudava.
E ele filmava a céu aberto, às 11h, no Cerrado, uma claridade absurda…
Era uma luz brutal, realmente, mas até que isso era uma coisa boa, já que ele usava filmes vencidos.
Quando você ponderava a respeito de alguma decisão, ele te ouvia?
Eu tentava, às vezes, mas já tinha entendido o espírito da coisa, né? Cada um tem seu estilo e eu não estava ali para interferir. Depois daquela conversa sobre plano e contraplano, já tinha entendido como funcionava. Ele tinha o jeito dele.
E o jeito do Brazza era tão particular que você tinha ido até ele para fazer um documentário justamente porque ele filmava do jeito que filmava…
Pois é. Teria sido até engraçado se eu fosse lá e tentasse mudar o jeito do cara para fazer do jeito que eu aprendi na escola. Não ia dar certo. Ele ia agradecer e me mandar embora.
O que ficou para você da experiência com o Afonso Brazza?
É até engraçado, né? Quando eu estava dirigindo esse documentário (Terra de Ciganos), eu me via fazendo coisas do mesmo jeito que o Brazza fazia. Eu chegava num acampamento de ciganos e começava a improvisar: “Coloca a câmera aqui, filma aquilo ali”. No fim do dia, eu ficava pensando: “Quem diria: então, o Brazza foi o meu professor?”. Decidir rapidamente dentro do set, saber reagir diante de algo que eu não poderia ter antecipado… Aprendi isso com ele. O lugar em que a filmagem acontece dita muito como será a cena.
Quando a gente assiste hoje a filmes como Tortura Selvagem e Fuga Sem Destino, nos quais você trabalhou, filmados no meio da cidade, abertos ao mundo real, há um evidente aspecto de documentário. Nos filmes que Brazza fez no Gama, ele filmava muito no Cerrado e, de certa forma, era um ambiente mais ou menos controlado, uma paisagem estável. Mas, quando o Brazza veio filmar no Plano Piloto, num dia de semana, na frente do Conjunto Nacional, como No Eixo da Morte, você vê Brasília daquela época, você vê a cidade como ela era de verdade.
Eu me lembro muito das cenas que a gente filmou do lado de fora do Teatro Nacional. O espaço físico inspirava ele. Lá tem uma passarela em que uma pessoa pode passar por cima enquanto outra passa embaixo. Ele viu aquilo e disse: “Você, daqui, joga a pedra em mim quando eu passar lá embaixo”. Decidiu naquela hora, e só criou essa cena porque o lugar permitia. Depois, ele olhou para o prédio do teatro e fez ali uma perseguição em escalada nas paredes. Brazza estava o tempo todo aberto para o espaço real. Acho que eu captei isso dele.