A guarda e o acesso
Após os formatos em mídia analógica (película e VHS), a primeira versão digital de Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964) foi lançada em 2002, quando se realizou um processo de telecine em formato standard do negativo original.
“Na época, nem tinha tecnologia disponível para isso”, relata Paloma Rocha. “Gerou muita polêmica. Fui atacada por muita gente que dizia que um DVD jamais substituiria um filme. Mas era uma difusão que eu queria fazer da obra, e que alavancou o projeto de restauro da Petrobras. Iniciou-se ali um projeto de restauração digital no Brasil”, orgulha-se.
A direção do projeto foi feita por Paloma e sua produtora, em parceria com a instituição Tempo Glauber, de preservação, pesquisa e memória do acervo glauberiano. “Ali se instalou o primeiro momento de restauro digital em HD. Alguns filmes foram eventualmente escaneados em 2k”, lembra Paloma.
Ao falar da restauração de um filme, há muitos conceitos pouco compreendidos pela massa espectadora leiga, ainda que cinéfila. O primeiro e mais importante deles, para o entendimento deste processo, é o de preservação. Deus e o Diabo na Terra do Sol é um dos mais de 250 mil rolos de negativos sob a tutela da Cinemateca Brasileira.
Por mais que o órgão central da guarda da memória do cinema brasileiro viva seu momento mais crítico, ainda se pode dizer que a instituição é referência mundial de guarda da produção histórica nacional. Isso não significa o mero armazenamento ou estoque de material nos intestinos do prédio na Vila Clementino, em São Paulo.
O coordenador de Preservação da Cinemateca Brasileira, Rodrigo Mercês, ensina que preservar não se limita à guarda, mas também se refere ao acesso. “Preservar uma obra não é, nem pode ser, guardar o material no seu melhor formato, mas é preciso adaptar tecnologias de acesso ao filme”, diz.
Ou seja, muito se fala que Deus e o Diabo está preservado, por ter uma cópia em 35 milímetros; no entanto, o público não tem a mídia disponível na tecnologia vigente. “A obra só está acessível em tecnologia fotoquímica, mas não havia, até agora, uma preservação digital”, pondera.
Para Mercês, há um consenso de que o meio digital não é o mais adequado para armazenar materiais a longo prazo. Por isso, a cópia em 35 milímetros depositada na Cinemateca Brasileira ainda é a melhor forma de manter o mais incólume possível a integridade da obra.
“A gente continua guardando, com todo o rigor, os negativos e materiais. Mas precisamos tirar do depósito, para gerar uma versão que possa ser duplicada e se tornar acessível ao público. Mesmo a melhor matriz, com a melhor tecnologia, terá de ser migrada para outro dispositivo daqui três, cinco anos. O negativo original da época de produção do filme também precisa ser cuidado, mas ele dura décadas”, avalia.
O desafio que se impõe para a preservação da memória e do material cinematográfico é o de sustentabilidade das condições de guarda. “O processo de migração de suporte deve ser constante e contínuo. Nesse cenário apocalíptico, tudo que está no depósito de matriz ainda nos permite um tempo para fazer a migração. Quando pensamos nos suportes digitais, o cronograma é mais justo, a gente não tem muito tempo. E corre riscos mais graves quando pensamos nos materiais LTO (atual tecnologia de armazenamento em fitas magnéticas)”.
Para restaurar Deus e o Diabo na Terra do Sol, a equipe coordenada por Paloma Rocha buscou ser fiel aos procedimentos técnicos. “O processo do que foi proposto segue os parâmetros mais corretos, com vistas ao melhor material de guarda (arquivos com especificações que visam à maior durabilidade e sobrevivência do filme) e melhor material de acesso (que possa ser projetado em suportes tecnológicos vigentes)”, garante Rodrigo Mercês.
Luís Abramo acrescenta que o processo de restauro busca preservar essencialmente a memória do filme. “E a memória não é só o que está no negativo, mas as estruturas de produção e condições de realização da época”, diz.
O maior desafio, segundo ele, será levar o longa para diferentes formatos, salas e projetores. “É um filme novo ainda. Ele é muito potente e tem muito que se debater sobre ele para frente. Temos um comprometimento com o futuro. Não é só guardar, mas ser visto e inspirar gerações.”
Glauber Rocha (segurando arma) e Mauricio do Valle
A luz e a imagem
Por mais complexos os atributos de um filme, é a imagem que costuma ocupar lugar de destaque dentre eles. Deus e o Diabo na Terra do Sol carrega consigo nuances de luz, contrastes e planos singulares, que fundamentam todo um novo conceito imagético para o cinema brasileiro, e que viriam também a concretizar o projeto estético cinemanovista, para além do slogan da ideia na cabeça e a câmera na mão.
Eis o grande desafio da equipe de restauração do clássico longa-metragem de 1964: levar toda a majestade da película para um suporte digital, sem comprometer as intenções originais e o olhar de Glauber.
Paloma Rocha e Luís Abramo já haviam trabalhado em conjunto com a empresa Cinecolor, uma das mais conceituadas firmas de produção e finalização audiovisual da América Latina, quando restauraram O Leão de Sete Cabeças (1971) em 2011. Agora em Deus e o Diabo, a Cinecolor se torna uma parceira central para conferir a qualidade no processo do restauro da obra.
Abramo se responsabilizou pela marcação de luz, favorecido pela “pureza” do rolo original. A meta era encontrar o limite de possibilidades na alteração digital. “A gente tentou criar uma semelhança analógica. Estamos sempre trabalhando no limite do negativo. E daí precisamos ter uma interpretação junto aos desejos da fotografia e da direção, mas o objetivo é ficar dentro da linguagem”, detalha.
Renato Merlino, coordenador de restauração digital da Cinecolor, foi o responsável por apresentar as opções pelos processos a serem realizados: limpeza (remoção de sujeira, brancos e pretos), análise e restauração de riscos, avaliação de profundidade e, posteriormente, execução de uma técnica que é conhecida como diamante, por meio da qual as imagens serão propriamente restauradas.
“A pedido da Paloma, não entramos com nenhum processo digital. Então, não interferimos nos planos. Tudo que chacoalha é câmera na mão, é Glauber. Se ele filmou na mão, eu não vou colocar no tripé”, resume Merlino.
Para ele, o fato de ter o acesso à primeira geração do filme, como ele chama o negativo original, permitiu-lhe ter acesso ao grão em que o filme fora fotografado. “Para se ter ideia, o que vemos na sala de cinema, o que a gente conhece dessa obra, seria o grão de quarta geração, projetado numa cópia”, explica Merlino.
Como resultado, a experiência será única. “O Deus e o Diabo que vamos ver digital nunca foi visto. Só se alguém projetasse diretamente a cópia original. Agora as pessoas terão essa sensação de ver o que aparecia na moviola de Glauber”, festeja.
Colorista e técnico restaurador da Cinecolor, Rogério Moraes foi quem garantiu que a imagem da cópia, agora digital, preservasse a mesma experiência vivida à época da exibição. “A gente partiu de um negativo original que, tecnicamente, estava muito bom. Da parte técnica, o desafio foi trazer o que realmente estava no negativo de quando foi exposto”, resume.
Foram muitas conversas com Walter Lima Jr., que mantinha a memória do set, o fotógrafo e marcador de luz Luís Abramo, e Paloma Rocha. “Tinham planos com problemas técnicos. A grande diferença neste restauro foi a gente chegar a uma imagem em que as pessoas tenham um pouco de estranheza, para entender se tinha tudo isso mesmo na imagem original, porque agora a gente vê céu, vê nuvem”, diz.
Em busca daquilo que Glauber pensava, e da forma como Waldemar Lima (diretor de fotografia do filme) olhava, houve a decisão de intervir em alguns pontos, enquanto se preservava os quadros originais, os cortes e a fidelidade de identidade dos planos. “Tínhamos que pensar junto com o Waldemar”, diz Moraes, que já fora aluno do saudoso fotógrafo.
Luís Abramo lembra que Deus e o Diabo foi filmado, em grande parte, ao longo de dias nublados. Na imagem projetada nos cinemas durante o lançamento, contudo, não era possível perceber muitos contrastes de nuvens. “A gente trabalha dentro da tecnologia disponível na época. Essa memória histórica do negativo e da cópia a gente tenta manter. A dificuldade é se manter nesses padrões éticos e técnicos, e tentar investigar as intenções do momento, para ser fiel à história da própria obra”, conta Abramo.