Mais da metade das obras de pavimentação da Codevasf, com verbas federais, ficam só na promessa
De 2021 para cá, a estatal teve um boom de contratos, que somam mais de R$ 1 bilhão
Empreiteiras protelam os serviços e se beneficiam de um modelo atípico de contratação que dificulta a fiscalização e facilita os desvios
O Metrópoles percorreu 1,8 mil quilômetros pelo país e conferiu a decepção e o drama de brasileiros que dependem das vias
Por Jade Abreu, Sarah Teófilo e Natália Portinari07/08/2023 02:00
Na poeira brava da seca que castiga Brasília nos primeiros meses da segunda metade do ano, a pouco mais de 30 quilômetros de distância da Praça dos Três Poderes, a comerciante Márcia Regina de Sousa, 32 anos, espera a filha, Jullya Bianca, 5, voltar da aula.
É início de tarde. A menina estuda não muito longe dali, mas precisa ir e voltar de ônibus escolar, todos os dias. A espera, quando vai e quando retorna, é à beira da estrada de chão batido.
Na época em que a chuva desaparece, a rotina vira um suplício. Jullya tem crises de asma e o poeirão na DF-326, na Fercal, região administrativa do Distrito Federal encravada entre Brasília e Sobradinho, agrava enormemente a situação.
“As crianças daqui andam doentes. A Jullya fica doente direto, tem dor de cabeça. A poeira está afetando muito ela. Quando chega em casa, o cabelo é só poeira”, diz a mãe, em tom de lamento.
As nuvens de poeira deveriam ser um problema do passado na vida das famílias que vivem na região. Em meados de 2021, os moradores ouviram a promessa de que aquele pedaço de pista estaria asfaltado em um ano. Não foi. A estrada pavimentada existe só no papel.
Um contrato foi celebrado para a realização da obra, com verbas federais da Codevasf, a Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba, estatal federal que nos últimos anos virou destino preferencial de emendas parlamentares, incluindo as do famigerado orçamento secreto.
Previsto inicialmente para ser entregue em julho de 2022, o trabalho de asfaltamento até começou, mas parou pouco depois. O contrato foi prorrogado mais de uma vez, e o máximo que a empreiteira contratada fez foi jogar uma camada de brita sobre a pista. Jullya, a filha de Márcia, segue sob a poeira – e sofrendo com as crises respiratórias.
O esquecimento e a indiferença não são exclusividade daquele trecho. Em outras partes do país, obras em estradas que deveriam ter sido pavimentadas com verbas da Codevasf seguem igualmente paradas, sem qualquer satisfação aos brasileiros que dependem delas para ter uma vida melhor.
Durante três meses, o Metrópoles analisou algumas centenas de páginas de documentos e percorreu mais de 1,8 mil quilômetros de estradas para conferir de perto essa triste realidade, em que contratos parecem não ter fim e recursos públicos se esvaem, aos milhões.
Trecho de estrada no Distrito Federal que já deveria estar asfaltada: ninguém assume a responsabilidade pela demora. Foto: Hugo Barreto/Metrópoles
Pequenas e grandes tragédias
O trecho da DF-326 que deveria estar pavimentado é parte de um pacote de obras previsto em um contrato com valor inicial de R$ 7,9 milhões assinado pela Codevasf em 2021. O plano era asfaltar estradas rurais por onde trafegam ônibus escolares que atendem comunidades como aquela onde vive a família de Jullya, a menina do início desta reportagem. Placas chegaram a ser instaladas ao longo da pista anunciando a data para a conclusão do serviço, que nunca foi entregue.
Crianças da região do Lobeiral, a cerca de 30 quilômetros do centro de Brasília: saúde afetada pela poeira. Foto: Hugo Barreto/Metrópoles
Para além dos problemas de saúde causados pela exposição à poeira, o trecho é também marcado pela tragédia. Em maio deste ano, o trabalhador rural Antônio Nogueira da Silva, 48 anos, morreu em um acidente na via, perto da comunidade Lobeiral, onde morava. Familiares contam que a moto que ele conduzia derrapou no cascalho. Na queda, Antônio teve traumatismo craniano. Ele deixou a mulher, Maria da Graça Conceição, e dois filhos. “A gente se sente sem rumo”, lamenta a viúva. “Quanto a ele, não podemos fazer mais nada, mas nós que ainda estamos aqui precisamos dessa estrada. Nossos governantes precisam parar de conversa e cumprir o que prometem”, emenda.
O acidente aconteceu justamente em uma parte da estrada que, pela previsão inicial da Codevasf, já deveria estar pavimentada.
O Metrópoles esteve no local três vezes. A primeira foi no dia 7 de junho, de manhã e à tarde. Não havia um operário sequer trabalhando na obra. As placas antigas instaladas quando o serviço começou a ser feito davam a medida do atraso: a pavimentação deveria ter sido concluída um ano antes, em julho de 2022.
A visita dos repórteres – e as seguidas perguntas à Codevasf sobre os motivos da interrupção da obra – parecem ter surtido efeito. Uma semana depois, o cenário havia mudado: as máquinas voltaram à pista e outras placas foram instaladas, com uma nova data para a conclusão da obra: fim de 2023.
Nada, porém, que fosse duradouro. Quarenta e sete dias depois, a reportagem voltou para ver o que havia sido feito. Estava tudo parado novamente. Apenas uma camada de brita fora despejada e as máquinas já não estavam mais na pista. O único sinal de que ali deveria existir uma obra em andamento era um caminhão-pipa molhando o chão batido.
Hugo Barreto/Metrópoles
Em 7 de junho, duas placas às margens da DF-326 exibiam informações sobre a obra. O custo do serviço informado no painel era de R$ 7,9 milhões e a previsão de conclusão, 20 de julho
Hugo Barreto/Metrópoles
Em 14 de junho, uma semana depois da primeira visita da reportagem, as placas antigas tinham sido removidas. Uma painel novo, improvisado, trazia outra data para conclusão do serviço: 5 de dezembro
Hugo Barreto/Metrópoles
Em 24 de julho, o Metrópoles voltou à região. A obra, que foi retomada logo após a primeira vez em que a reportagem esteve no local e conversou com moradores, estava novamente paralisada
A Codevasf admite que o trabalho foi paralisado, mas atribui a responsabilidade à empreiteira contratada, que não teria apresentado a comprovação dos serviços já executados, uma exigência para o prosseguimento do trabalho.
Em Alagoas, dois mundos
A 1.657 quilômetros de Brasília, em São Sebastião, município de pouco mais de 30 mil habitantes no interior de Alagoas, o quadro se repete: contratos milionários da Codevasf para pavimentação de estradas de terra, expectativas frustradas da população e nenhuma – absolutamente nenhuma – obra pronta.
Em Alagoas, o retrato do descaso: estrada que serve a brasileiros comuns aguardam pavimentação, enquanto as que levam à fazenda de Arthur Lira, perto dali, foram asfaltadas. Foto: Natália Portinari/Metrópoles
Embora a companhia federal tenha acertado um polpudo contrato para pavimentar estradas vicinais que levam a quatro povoados, não há nenhum sinal de que os projetos sairão do papel tão cedo.
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Em agosto do ano passado, os moradores da região comemoraram quando viram máquinas e operários trabalhando na pista. Mas, assim como no Distrito Federal, nada andou. Uma situação, aliás, bem diferente de outro projeto, também da Codevasf, que previa a pavimentação de estradas próximas à fazenda do presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, no mesmo município. Nesse caso, a obra, feita com recursos de emenda do próprio parlamentar, saiu.
Placa da Codevasf em frangalhos em uma das vias no interior de Alagoas: uma mesma estrada, dois contratos. Foto: Natália Portinari/Metrópoles
A diferença entre as duas situações é gritante. São dois mundos distintos a poucos quilômetros de distância: o das estradas que atendem à propriedade do clã Lira e as outras, que servem aos mortais comuns. Em um lugar conhecido como Curral do Gado, na mesma estrada que já deveria estar asfaltada, há uma placa já deteriorada sinalizando a existência de um segundo contrato da Codevasf para pavimentar mais um trecho da pista. Nem um nem outro serviço, porém, foi executado.
A obra em São Sebastião foi anunciada com pompa e circunstância pelo prefeito José Pacheco, filiado ao mesmo Progressistas de Arthur Lira e um dos muitos aliados do presidente da Câmara na região. Não faltaram agradecimentos ao deputado, que por ali, à moda antiga, recebe as loas dos míticos coronéis da política nordestina. Também nesse caso, a Codevasf admite a paradeira. Reconhece que uma parte do valor já foi paga, mas atribuiu a demora à necessidade de aprovação do projeto.
Moradores se queixam, com razão, da demora porque dependem das vias em seu dia a dia. Foto: Natália Portinari/Metrópoles
Sem estrada e com calote
Bastaram alguns minutos na estrada de acesso ao povoado de Impueiras, no município de Estrela de Alagoas, a cerca de 80 quilômetros de São Sebastião, para que o Metrópoles flagrasse um acidente. Se em Brasília o tempo estava seco, por lá chovia – e muito. De motocicleta, uma moradora do povoado escorregou na pista cheia de barro e foi ao chão. Horas depois, não muito longe, mais um flagrante. Outra queda, parecida com a primeira. Quem precisa usar a pista tem que se acostumar com o risco. Incluída no mesmo contrato de São Sebastião, a estrada em Impueiras deveria estar asfaltada desde julho de 2022, mas também ali o que houve foi apenas um ensaio.
Na região do povoado de Impueiras, o flagrante: motociclista derrapa e cai na lama da estrada que já deveria estar asfaltada há mais de um ano. Foto: Natália Portinari/Metrópoles
Ainda em 2021, quando esperavam a chegada das máquinas e dos operários contratados pela Codevasf, os moradores fizeram até um recuo nas cercas de suas propriedades para permitir o alargamento da estrada. A obra prometida movimentou o povoado. Uma família alugou uma casa para abrigar um grupo de funcionários, com direito à contratação de um pacote de internet para dar mais comodidade aos inquilinos.
A obra começou, mas logo parou. E o asfalto nunca chegou. Sem dar explicações, a empreiteira escolhida pela Codevasf interrompeu o trabalho. Em agosto do ano passado, depois de uma reunião com a prefeitura, a empreitada foi retomada, mas não demorou para que tudo parasse novamente.
Quando a empresa e seus funcionários começaram a deixar o vilarejo, surgiu uma situação inusitada, que ficou conhecida na região: um morador que havia vendido um carregamento de cascalho para a empresa e ainda não tinha recebido o pagamento resolveu “sequestrar” uma retroescavadeira. Só devolveu depois que o encarregado da obra acertou a dívida, de R$ 10 mil. “É assim, os ‘grandão’ comem tudo e o coitado do pobre fica só de boca aberta”, diz Cláudio Ferro Cabral, o credor da empreiteira que “sequestrou” a máquina.
Cláudio Cabral com a família: para receber R$ 10 mil da empreiteira, ele “sequestrou” uma retroescavadeira. Foto: Natália Portinari/Metrópoles
É um retrato, digamos, curioso dos efeitos colaterais do caos dos projetos da Codevasf. A obra que não acabou deixou um rastro de problemas: os moradores não ganharam a estrada asfaltada e, para piorar, alguns ainda tomaram calote. Nem todo mundo teve a sorte de Cláudio Cabral. Silvia e José, o casal que alugou a casa para abrigar os operários, contam que ficaram sem receber o valor acertado. “Nos primeiros meses eles (os responsáveis pela obra) pagaram. Depois não pagaram mais, de jeito nenhum. Ficaram três ou quatro meses sem pagar, e aí foram embora”, conta Silvia.
Sem o asfalto, a comunidade segue na sina dos carros atolados e, pior, dos sucessivos acidentes. Na beira da estrada, duas cruzes brancas lembram da morte de dois adolescentes. Eles se acidentaram de moto no local, ainda antes de as obras começarem.
Mais um trecho de estrada em Alagoas: obra chegou a começar, mas foi abandonada pouco depois. Foto: Natália Portinari/Metrópoles
Os contratos guarda-chuva e o orçamento secreto
Os contratos da Codevasf para a pavimentação das estradas, como aqueles que previam as obras nunca realizadas no Distrito Federal e em Alagoas, são parte de um fenômeno que ganhou proporções monumentais na companhia nos últimos anos, paralelamente ao movimento que a transformou em destino preferencial de verbas federais milionárias provenientes de emendas parlamentares.
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A pavimentação de estradas virou uma das “especialidades” da Codevasf ao gastar as polpudas verbas federais que recebe. O problema é tirar as obras do papel
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Barraca à beira de um dos acessos da estrada no Distrito Federal: moradores da região não sabem os motivos da paralisação da obra
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A estrada ao anoitecer: um trabalhador rural morreu recentemente ao cair de motocicleta em um trecho da pista
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A empreiteira foi embora e deixou para trás as estacas da obra e uma camada de cascalho
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Ônibus escolares trafegam pela via para levar e buscar as crianças que moram nas comunidades da zona rural de Brasília
De um lado, congressistas – em grande medida os do chamado Centrão – remetem os recursos. De outro, os recursos são manejados ao bel-prazer do comando da estatal, indicado pelos caciques do mesmo Centrão.
Essa mecânica vigorava no governo de Jair Bolsonaro e segue firme no atual governo, de Luiz Inácio da Silva. Um dado ilustrativo é que o presidente da companhia, Marcelo Moreira, apadrinhado pelo União Brasil, partido que apoiava Bolsonaro e que agora promete apoio a Lula, permaneceu no posto.
O dinheiro chega aos borbotões e a Codevasf manda para onde quiser, normalmente seguindo orientações dos políticos que enviaram as emendas. A estatal escolhe – muitas vezes em processos expressos de licitação – as empresas que, teoricamente, vão executar as obras. Na ponta, sobram não apenas problemas de execução como os que estão expostos nesta reportagem como, também, suspeitas de desvios.
Em alguns trechos, as empreiteiras se limitaram a jogar uma camada de cascalho nas vias e, depois, foram embora. Foto: Igo Estrela/Metrópoles
A “anabolização” que os políticos promoveram na Codesvasf se reflete claramente no orçamento da companhia, que saltou de R$ 1 bilhão em 2017 para impressionantes R$ 3,3 bilhões em 2022. O maior salto se deu nos últimos dois anos (veja arte). Junto com o crescimento vertiginoso dos números, vieram os inquéritos.
A anabolização da Codevasf
A companhia, que virou um dos destinos prediletos de emendas parlamentares, teve sua área de atuação ampliada ao longo dos anos. O orçamento, claro, acompanhou a expansão
1974
Alagoas • Bahia • Goiás • Minas Gerais • Pernambuco • Sergipe • Distrito Federal
Orçamento: r$ 109 mil
(o equivalente a CR$ 300 milhões na época)
2000
Alagoas • Bahia • Goiás • Minas Gerais • Pernambuco • Sergipe • Distrito Federal • Maranhão • Piauí
Alagoas • Bahia • Goiás • Minas Gerais • Pernambuco • Sergipe • Distrito Federal • Maranhão • Piauí • Ceará • Tocantins • Mato Grosso • Pará • Amapá • Paraíba • Rio Grande do Norte
Orçamento: r$ 1,6 bilhão
2022
Alagoas • Bahia • Goiás • Minas Gerais • Pernambuco • Sergipe • Distrito Federal • Maranhão • Piauí • Ceará • Tocantins • Mato Grosso • Pará • Amapá • Paraíba • Rio Grande do Norte
Orçamento: r$ 3,3 bilhões
Atualmente, há na Polícia Federal diversas apurações que buscam esquadrinhar suspeitas de fraude em licitações e de malversação de dinheiro público. Algumas das empresas campeãs de contratos são investigadas por suspeita de formar um cartel que rateia entre si uma parte significativa do bilionário orçamento da companhia.
Dessa dinâmica que fez da Codevasf a queridinha do Centrão surgiu uma novidade que dificulta não só a execução das obras como também sua fiscalização pelos órgãos de controle: os contratos guarda-chuva, firmados de forma genérica com as empreiteiras, sem definir exatamente quais obras devem ser feitas, sem projetos e sem prazos claros. Há situações em que são escolhidas empresas para fazer obras em estados inteiros que nem sempre são especificadas previamente.
Para se ter uma ideia da amplitude dos contratos guarda-chuva, apenas no final de 2020 a Codevasf abriu 20 processos de contratação de obras de pavimentação seguindo essa lógica, cujos valores somam nada menos que R$ 434 milhões – sim, quase meio bilhão de reais. O Tribunal de Contas da União (TCU) e a Controladoria-Geral da União (CGU) já diagnosticaram o problema, mas ele segue sem solução. Como não há braço suficiente para fiscalizar as obras, o ralo de dinheiro público segue escancarado.
O TCU chegou a abrir um procedimento de apuração sobre esse modelo de contratação adotado pela Codevasf. Os auditores do tribunal criticaram justamente o caráter genérico das licitações, o que abre brechas para fraudes de todo tipo. A Codevasf disse que não poderia suspender os processos, sob pena de prejudicar “as populações carentes de pequenas localidades, que se utilizam dessas vias para escoar a produção, bem como para acessar serviços de saúde e escolas”.
Hugo Barreto/Metrópoles
Crianças em ônibus escolar na área rural de Brasília: rotina vira um suplício, especialmente em tempos de clima seco
Hugo Barreto/Metrópoles
A poeira é parte da paisagem na estrada que já deveria ter sido pavimentada
Hugo Barreto/Metrópoles
Logo após a primeira visita da reportagem, novas placas foram instaladas, estipulando outro prazo para as obras
Hugo Barreto/Metrópoles
O modelo de contratação adotado pela Codevasf dificulta a atuação dos órgãos de fiscalização e controle, que não conseguem aferir a contento a execução das obras
Os ministros acabaram acolhendo o argumento, com a ressalva de que deveriam ser adotados mecanismos mais eficientes para evitar os desvios e garantir a realização das obras. Até agora, não funcionou. Na vida real, as “populações carentes” mencionadas na alegação apresentada pela Codevasf ao tribunal continuam desassistidas – e esperando.
De janeiro de 2021 até agora, a companhia fechou 163 contratos com 45 empresas para pavimentação de vias públicas, ao preço total de R$ 1,01 bilhão. A taxa de execução das obras é baixíssima, o que mostra que a realidade das estradas do Distrito Federal e de Alagoas percorridas pela reportagem é algo que se espraia pelo país afora. De acordo com dados da própria estatal, nada menos que 85 dos contratos – mais da metade, portanto – têm 0% de taxa de execução. Ou seja: nada foi feito até agora.
Fabio Rodrigues-Pozzebom/ Agência Brasil
O engenheiro Marcelo Moreira, presidente da Codevasf, está no cargo desde 2019. Chegou no governo de Jair Bolsonaro e seguiu por lá após a posse de Luiz Inácio Lula da Silva. É apadrinhado pelo Centrão
Marina Ramos / Câmara dos Deputados
O presidente da Codevasf é apadrinhado pelo líder do União Brasil na Câmara, o deputado baiano Elmar Nascimento, um dos aliados mais próximos de Arthur Lira na casa
Breno Esaki/Metrópoles
A sede da Codevasf, em Brasília: a estatal ganhou musculatura nos últimos anos, com a destinação de milhões de reais em emendas, especialmente do chamado orçamento secreto
Vinícius Schmidt/Metróoples
Sem que o governo local tivesse pedido ou estivesse esperando, o senador Eduardo Gomes, à época relator do Orçamento da União, destinou R$ 52 milhões para o Distrito Federal e uma parte foi direto para a Codevasf aplicar nas obras que até hoje não saíram do papel. “Eu ajudei para que a região de Brasília fosse atendida”, limitou-se a dizer ele
os contratos da codevasf para obras de pavimentação
De janeiro de 2021 até julho de 2023, a estatal celebrou contratos cujo valor passa de R$ 1 bilhão. O mais impressionante: mais da metade deles tem 0% de execução
O dinheiro à vontade e as “gatinhas” da Codevasf
Há casos em que a verba chega e os governantes locais são surpreendidos com o “presente”. Na grande maioria das vezes, nem prefeituras nem governos estaduais têm qualquer ingerência sobre as obras. A Codevasf funciona, na prática, como um ente à parte, autônomo, ao qual cabe fazer as licitações e gerenciar as obras, seja onde for, dentro de sua área de abrangência, que hoje se estende por 16 unidades da federação (veja arte).
O que é
A Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba é uma estatal federal vinculada ao Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional
Para que foi criada
A Codevasf foi criada para desenvolver ações de aproveitamento dos recursos de água e do solo na região do vale do rio São Francisco para fins agrícolas, agropecuários e industriais. Depois, foi incluída na área de abrangência a região do vale do rio Parnaíba.
Que tipo de obras fazia antes
Em sua origem, a companhia executava obras de captação de água para fins de irrigação e também obras de saneamento básico e de infraestrutura, para o fornecimento de eletricidade e de transportes.
Que tipo de obras faz agora
Na nova configuração, faz calçamento de ruas e asfaltamento de estradas em regiões urbanas e rurais, obras de saneamento básico, constrói pontes, terminais rodoviários de passageiros e outros prédios públicos. Lista inclui até parques de exposição e unidades da Ceasa.
Um exemplo ilustrativo dessa lógica está na origem do projeto de asfaltamento da estrada rural da Fercal, no Distrito Federal. Ao participar da cerimônia de lançamento, ao lado do presidente da Codevasf, o governador Ibaneis Rocha (MDB) contou como o projeto aterrissou, de repente, em seu gabinete. “Em um determinado dia, eu recebo no meu gabinete a visita do presidente da Codevasf. Ele disse para mim: ‘Eu vim aqui ofertar o trabalho da nossa empresa ao governo do Distrito Federal’. Eu perguntei de onde iria tirar os recursos, e ele disse: ‘Ligue para o senador Eduardo Gomes que ele tem disposição para lhe ajudar’. Eu liguei e pedi R$ 3 milhões. O senador colocou R$ 52 milhões à disposição do Distrito Federal”, afirmou o governador.
Quando o presidente da Codevasf foi visitá-lo para dizer que a verba estava disponível, já estava tudo amarrado, evidentemente. O senador Eduardo Gomes (PL-TO) era, à época, o relator do Orçamento da União, e o dinheiro que ele destinou para a Codevasf usar para pavimentar a estrada na zona rural de Brasília tinha origem no chamado orçamento secreto, que tantas alegrias deu aos congressistas nos anos em que Bolsonaro esteve no Planalto.
Não demorou para que a própria Codevasf contratasse, por pregão, um modelo expresso de licitação, a empresa que faria o serviço. Foi escolhida a Shox do Brasil Construções Ltda, uma pequena e pouco conhecida empreiteira com sede em um galpão em Santa Maria, região administrativa do Distrito Federal.
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O galpão onde funciona a empreiteira Shox, contratada para obras no Distrito Federal e em Alagoas
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Empreiteira ganhou da Codevasf um contrato de R$ 19,2 milhões, mas não cumpriu os prazos previstos inicialmente para a conclusão das obras
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Caminhão da Shox: empresa deixou um rastro de problemas em vilarejo no interior de Alagoas
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O dono da empreiteira atribui os atrasos em Brasília à necessidade de fazer ajustes no projeto e, no caso de Alagoas, à chuva
A Shox ilustra outra faceta do fenômeno da Codevasf. O mercadão da estatal abriu espaço para firmas pequenas e, muitas vezes, sem capacidade de entregar os serviços para os quais são contratadas. No mundo da empreita, elas são chamadas de “gatinhas”, justamente por destoarem das gigantes acostumadas a realizar obras do tipo. Depois do terremoto causado pela Operação Lava Jato, essas firmas menores ganharam espaço. Hoje, elas detêm uma parte significativa do orçamento da companhia federal.
Com 160 funcionários registrados, a Shox ganhou da Codevasf não só o contrato de Brasília, mas também o de Alagoas – ambos incluídos entre os tantos celebrados pela estatal e que até hoje não saíram do papel. A concorrência previa o pagamento de R$ 19,2 milhões à empreiteira, para a pavimentação de uma área total de 205 mil metros quadrados – algo próximo a 40 quilômetros de estradas. Recentemente, a Codevasf cancelou o lote que previa as obras nos municípios de São Sebastião e Estrela de Alagoas, onde o serviço foi abandonado ainda no início. O lote de Brasília, de R$ 7,9 milhões, teve o valor reduzido para R$ 3,7 milhões e a extensão do trecho a ser pavimentado foi cortada de 9,9 para 4,4 quilômetros.
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“Eu sou pequenininho. Vendo o almoço e pago a janta”, diz o dono da Shox, Denilson Rezende Bonfim, de 43 anos, que fundou a empresa junto com o irmão, Daniel, engenheiro.
Ele nega ter ligações políticas e tem diferentes explicações para o atraso nas obras. Em Brasília, Denilson alega que os serviços foram paralisados porque “foi preciso mexer no projeto”. Já as obras de Alagoas, afirma, pararam porque uma das prefeituras não cumpriu o combinado de providenciar, antes que o asfaltamento fosse executado, uma rede de drenagem para as vias.
O empreiteiro põe culpa, ainda, na chuva. “Lá chove muito”, diz, referindo-se às recentes enchentes no estado. As obras, porém, já estavam paradas muito antes.
A Codevasf também procura se eximir de responsabilidade. Sobre os contratos alagoanos, a companhia diz que a empreiteira contratada abandonou o serviço e que, por isso, foi multada em R$ 954 mil. Quanto às obras paradas no Distrito Federal, afirma que tem fiscalizado a execução do contrato e que aguarda o cumprimento de exigências feitas à Shox para que as obras passem para a próxima etapa.
O ciclista, o caminhão, o ônibus e o poeirão que engole quem está desprotegido na estrada ou às margens dela. Foto: Hugo Barreto/Metrópoles
O Metrópoles também perguntou à estatal por que a taxa de execução das suas obras de pavimentação em todo o país é tão baixa. A resposta foi a seguinte: “Antes do efetivo início das obras, há necessidade de verificação e enquadramento técnico dos locais de execução e, consequentemente, de elaboração dos correspondentes projetos executivos. Essas atividades demandam prazo. Adicionalmente, houve alterações no cronograma de repasses financeiros à Codevasf, o que ocasionou redução no ritmo de execução das obras e, em determinados casos, paralisação dos instrumentos. O saneamento dessas intercorrências financeiras tem permitido a retomada das obras”.
A vida real, porém, põe o discurso oficial à prova. As estradas de papel da Codevasf, ao menos por ora, continuam no papel, para a tristeza de quem, como a pequena Jullya, depende delas.