Três anos após tragédia da Vale que dizimou seus companheiros, mães solo de Brumadinho encaram a dolorosa missão de tornar-se inteiramente responsáveis pela criação dos filhos, assolados pelo rompimento da barragem
Por Carinne Souza 04/12/2022 5:00

Nada incomum, “Bem-vindo a Brumadinho” é a primeira mensagem que a cidade mineira situada na Região Metropolitana de Belo Horizonte deseja a seus turistas e moradores. “Bem”, no entanto, é um adjetivo que não entra no vocabulário dos brumadinhenses há mais de três anos. Escancarado na cor da lama que devastou a localidade e dizimou 272 vidas na sexta-feira do dia 25 de janeiro de 2019, o luto é um sentimento comum entre os 41 mil habitantes do município.

“A gente vai colocando a dor e o sofrimento em um cantinho do coração, coloca um sorriso na cara, e vamos viver”, relata a viúva Daise Laura, que perdeu o marido na tragédia. Ela, assim como outras dezenas de esposas, teve de reescrever sua vida após a brusca morte de seu companheiro e pai de seus filhos.

A lama que devastou Brumadinho deixou dor irreparável em esposas e filhos, que, diariamente, precisam seguir em frente mesmo quando não há vontade de prosseguir. Pela primeira vez, as viúvas Jacqueline Saraiva, Danila de Lourdes, Ana Carolina Martins e Daise Laura falaram sobre as dores, os distúrbios psicológicos, os julgamentos e os medos que enfrentam desde que foram obrigadas a lidar com a ausência de seus companheiros.

Ao longo de três meses, um grupo de profissionais do Metrópoles esteve imerso na apuração da reportagem e entrevistou cerca de 20 pessoas para coletar relatos e reproduzir, aqui, a sensação vivida no pequeno município. Em abril, a equipe passou cinco dias em Minas Gerais e, por lá, visitou todos os locais que fazem parte do rastro deixado pela barragem.

O percurso da lama e o mapa da tragédia

Momento 1

12h 28min 05s

Cinco trabalhadores da empresa Fugro, estavam no penúltimo degrau da B1, realizando as perfurações necessárias para substituir os equipamentos de segurança manuais por automatizados

Momento 2

12h 28min 25s

Miraceibel Rosa, 38; Noel Borges de Oliveira, 50; Elis Marina Costa, 23; Olímpio Gomes Pinto, 57; e Lieuzo Luiz dos Santos, 55, foram os primeiros a sentir uma movimentação incomum no solo da barragem

12h 28min 26s

Rapidamente, todo o solo começou a ceder, e o piso, que parecia sólido, se transformou em líquido. Dos trabalhadores que estavam no penúltimo degrau da B1, apenas Lieuzo sobreviveu

Momento 4

12h 28min 35s

Foram meros 10 segundos para que a barragem se desmanchasse e destruísse tudo que estivesse em seu caminho. Segundo o porta-voz dos Bombeiros, tenente Pedro Aihara, a lama alcançou uma velocidade de 80 km/h

12h 28min 55s

A lama chega ao terminal de carregamento, momento filmado por uma câmera localizada em um guindaste da mineradora

Momento 6

12h 29min 25s

O “tsunami” avança e atinge central administrativa da Vale, onde ficavam os escritórios e o refeitório da empresa. Também é onde estavam boa parte dos funcionários desaparecidos

Momento 7

12h 32min 23s

14 pessoas que estavam na pousada Nova Estância, situada perto da área mineradora morrem soterradas

Momento 8

12h 52min 25s

Os rejeitos chegam no Parque da Cachoeira

Árvores e montanhas fazem parte da vista em Brumadinho, distante 40 minutos da capital. Basta olhar para qualquer janela para identificar o contraste entre o céu azul de Minas Gerais e o verde da região. Ao redor, notam-se traços típicos de uma cidade mineira: um pequeno centro comercial, casas que remetem às construções do século passado e moradores que, algumas vezes ao dia, esperam a passagem do trem que carrega minério e pessoas.

Assim como outras cidades no estado, Brumadinho tem forte ligação com a atividade mineradora. Grande parte dos moradores tem ou já teve algum vínculo empregatício com a Vale ou com empresas terceirizadas contratadas para atuar na extração do minério. São raras as histórias de famílias que não se cruzam com a da companhia.

“Era o sonho de qualquer pessoa que mora aqui trabalhar na Vale, uma empresa internacional, de grande renome no mundo inteiro, com propaganda na TV… Ninguém media esforços para conseguir ser contratado”, relata Pollyana Pabola Aparecida de Assis Aguiar. Aos 34 anos, a administradora empresarial tirou carteira de motorista exclusivamente para participar de um processo admissivo da gigante da mineração, tamanho o desejo de fazer parte do quadro de funcionários.

Entenda a proporção do estrago causado pela Vale

Volume assustador

A B1 comportava 12 milhões de metros cúbicos de rejeitos, número equivalente a 400 mil caminhões-pipas cheios de lama. Em média, esse tipo de veículo tem 6 metros de altura, 2,3 metros de largura e 3 metros de profundidade. O reservatório de cada um pode guardar pouco menos de 5.000 litros.

Tamanho gigante

Quando a B1 se rompeu, 80% do seu conteúdo explodiu, criando ondas de lama com até 18 metros de altura [o equivalente a um poste elétrico] e alcançando 80 km/h. Velocidade que a lama de rejeito atingiu construções, tratores, caminhões de até 100 toneladas, vagões e os trilhos do trem. Todos viraram sucata. Ser atingido por algo nessa velocidade gera o mesmo impacto de cair do oitavo andar de um prédio. Por isso, muitas vítimas foram fragmentadas, o que dificultou ainda mais as buscas.

Extensão da tragédia

Ao percorrer a área do Córrego do Feijão, a lama atingiu uma área de 290,14 hectares, o equivalente a mais de 290 campos de futebol. Levando em conta a força e o tamanho da área percorrida pelo rejeito, a maioria das vítimas foi arrastada e já não estavam mais em sua área inicial quando localizada.

Mapa 1
Mapa 2
Mapa 3

“Meu pai trabalhou a vida inteira na Vale. Eu também trabalhei lá, e meu irmão morreu por aquela empresa. A verdade é que ninguém acreditou que isso fosse acontecer. A gente pensava: ‘Depois de Mariana, é inadmissível que a Vale permita que isso aconteça mais uma vez’, mas aconteceu, e pior”

– Pollyana Pabola, vítima

Para manter a produção das duas minas localizadas em Brumadinho, a Vale empregava de forma direta 613 funcionários, sem contar os terceirizados que também atuavam ali. Com tamanho sucesso, o uniforme verde que identificava os trabalhadores da mineradora era uma vestimenta comumente vista, principalmente por volta do meio-dia, quando a maioria dos colaboradores se deslocava da região das minas até o centro para almoçar.

Foi com esse uniforme que a confeiteira Ana Carolina Martins Amorim Ventura e outras dezenas de viúvas viram, pela última vez, o marido e pai de seus filhos sair de casa na manhã da quebra da barragem.

Marcus Tadeu Ventura do Carmo, 34 anos, é uma das vítimas do rompimento da Barragem 1 (B1) da Vale, localizada na Mina do Córrego do Feijão. O marido, lembra Ana, foi contratado como soldador, mas fazia “um pouquinho de tudo”. Após voltar de férias, ele bateu ponto na mineradora na manhã daquela sexta-feira e só retornaria para casa, ao lado da esposa, no fim do dia. Ela, porém, nunca mais o viu.

“Nas semanas próximas à tragédia, percebi que o Marcus ficava muito desanimado. Ele já estava com a intenção de sair da Vale. Reclamava que não estava satisfeito, não se sentia valorizado. Não tinha aumento salarial ou oportunidade de crescimento, e isso fazia com que se sentisse desmotivado… Mas a gente foi caminhando e seguindo em frente, e ele continuou lá.”

– Ana Carolina

Ana e Marcus se conheceram ainda na adolescência e engataram o namoro quando a confeiteira tinha 17 anos. Foram quatro anos de relacionamento até subirem ao altar. Evangélicos e tementes a Deus, os jovens fizeram questão de se casar na igreja, com a bênção do pastor. Cinco anos depois do matrimônio, tiveram uma bebê, Luiza Ventura, em 2014.

Enquanto a história da conhecida doceira em Brumadinho se desenrolou junto a do companheiro, a de Marcus foi construída em paralelo com a da Vale, onde começou a trabalhar ainda adolescente. Com alguns anos na empresa, seu tempo, escasso para a família, foi quase integralmente dedicado à gigante da mineração. Era na mina do Córrego do Feijão que ele passava a maior parte do dia. A vida, ressalta Ana, estava corrida e exaustiva.

Em momentos de perdas, é comum que a pessoa em luto se agarre a algo para enfrentar a dor e o sofrimento. Para mães e pais, são os filhos. Para quem tem fé, crenças em uma força superior. Viúva e desamparada, Ana Carolina recorreu aos dois. Na época da tragédia, a pequena Luiza tinha apenas 5 anos. Em meio ao luto, a confeiteira precisava se manter em pé, já que a filha dependia dela para realizar as tarefas mais simples do dia a dia.

“Deus me sustentou no momento em que recebi a notícia do rompimento da barragem. Eu falava ‘Como é que eu vou fazer?’. Ele me deu forças. Ainda assim, pensava: ‘Preciso me cuidar, como vou ter forças para minha filha?’… Fui pedindo forças. Eu orava muito. Quando o médico passou remédios para eu conseguir enfrentar aquele momento, eu rezava para aquilo ser momentâneo, só até me recuperar. E assim foi”, conta Ana, ao relembrar as primeiras semanas após o trauma.

Ana lembra do marido e do casamento com grande dor, mas também com orgulho da trajetória do casal. Apesar do dinheiro curto, os dois sempre se esforçaram pelo bem-estar de Luiza, hoje com 8 anos. “Nunca tive carteira de motorista, e era o sonho dele que eu fosse independente para dirigir por aí. Graças a Deus e a ele, estou a caminho de realizar esse sonho”, emenda, entre lágrimas, ao recordar do apoio que recebia de Marcus.

Aquele dia

O dia 25 de janeiro de 2019, no entanto, não foi de pesar apenas para a família de Marcus Tadeu. Outras 270 pessoas não voltaram para casa. Brumadinho, até então, pouco chamava a atenção do resto do Brasil. Desde a tragédia, o cenário mudou, e o pacato município viu todos os olhos voltados para si. A data ficou marcada pelo rompimento da Barragem 1 (B1) da Mina do Córrego do Feijão.

Naquela manhã, cinco trabalhadores da Fugro, empresa contratada pela Vale para substituir os equipamentos de segurança manuais da B1 por automatizados, estavam no penúltimo degrau da B1, realizando as perfurações necessárias para essa tarefa. Miraceibel Rosa, 38; Noel Borges de Oliveira, 50; Elis Marina Costa, 23; Olímpio Gomes Pinto, 57; e Lieuzo Luiz dos Santos, 55, foram os primeiros a sentir uma movimentação incomum no solo da barragem.

Como funciona uma
barragem de rejeitos

Escavadeira

A extração

O minério, matéria-prima para a fabricação do aço, é uma rocha que contém grande quantidade de um elemento químico livre (raro, como o ouro, por exemplo) ou combinado com outro elemento (o tipo mais comum).

A rocha só é considerada um minério quando possui certo valor econômico. Para isso, geólogos, engenheiros e especialistas analisam o material e verificam sua relevância. Após atestada a importância, as autoridades públicas brasileiras podem ou não liberar a extração mineral na região.

Separando o material

Durante a retirada desse minério, outros materiais contaminantes e não úteis para a mineração, como a areia e outros minerais que têm baixo valor econômico, também são extraídos junto da substância útil.

Para melhorar o teor de minério de uma forma que ele possa ser usado na siderurgia, é preciso fazer a concentração desse material para produção do ferro gusa e, posteriormente, do aço. Esse processo é chamado de beneficiamento e utiliza água para separar o material útil do que deve ser descartado.

Caminhão
Rocha água

O beneficiamento

No decorrer do beneficiamento, muito rejeito é produzido, e precisa ser descartado. Composto, em sua maioria, de minérios pobres, areia e água, ele possui aparência de lama. Justamente pensando em seu descarte, as barragens foram criadas.

Em Brumadinho, a barragem usada era a do tipo com loteamento a montante:


Considerado um método antigo e menos seguro, esse tipo de barragem se torna um atrativo para as mineradoras devido ao baixo custo e possibilidade de comportar altas quantidades de rejeito.

A construção é feita a partir de um dique inicial que tem o intuito de barrar a lama. Essa barreira de contenção é feita a partir do solo compactado, rochas e do próprio rejeito. O rejeito é depositado ali e, conforme é produzido, fica empilhando em cima do dique inicial, formando “placas” sob “placas” de rejeito. Conforme cria forma, esse tipo de barragem lembra uma escada, com vários degraus de rejeito.

Barragem

As vítimas

Além de Miraceibel, Noel, Elis e Olímpio, outros 114 empregados terceirizados da mineradora foram vítimas do rompimento da B1, bem como 30 funcionários e estagiários da Vale, oito moradores do Córrego do Feijão e 14 pessoas que estavam na pousada Nova Estância, situada perto da área mineradora. É preciso, ainda, considerar que, entre as vítimas, duas mulheres estavam grávidas, o que eleva o número de mortos.

Três anos e quatro meses após a tragédia, cinco pessoas ainda não foram encontradas. Cristiane Antunes Campos, Maria de Lurdes da Costa Bueno, Nathalia de Oliveira Porto Araujo, Olímpio Gomes Pinto e Tiago Tadeu Mendes da Silva esperam por um fim digno e um adeus de seus familiares. Perder alguém de forma tão inesperada é devastador. É mais difícil ainda pensar que, em muitos casos, não houve um adeus ou um beijo de despedida.

Para mais de 600 pessoas, entre pais, filhos e irmãos, o último adeus foi para um caixão fechado ou para um corpo em saco preto, com minutos contados para a despedida. Durante as primeiras semanas após o rompimento da barragem, a identificação das vítimas aconteceu de forma rápida.

De acordo com o Instituto Médico Legal de Belo Horizonte (IML), 69 vítimas foram identificadas, veladas e enterradas na primeira semana depois da tragédia. A cidade não estava preparada para essa quantidade de serviços fúnebres – sequer havia tantas covas livres naquele momento. A demanda era alta no cemitério, no IML e em funerárias da região.

Até o momento, 265 famílias puderam dizer adeus. Alguns enterros só aconteceram em 25 de janeiro de 2020 ou dois anos depois disso.

ENTENDA O TRABALHO DO CORPO DE BOMBEIROS E DO IML

Primeiros passos

O primeiro trabalho é todo realizado pelo Corpo de Bombeiros. Na chamada Zona Quente (nome dado à área atingida pela lama), os militares da corporação foram os responsáveis por identificar e retirar todas as vítimas da tragédia para serem enviadas para análise no IML.

Como são as equipes

Atualmente, cerca de 30 militares trabalham na inspeção da área atingida. São quatro equipes que se revezam em trabalhos semanais na área. Em sua oitava estratégia de busca, os militares já analisaram 6 milhões de metros cúbicos de rejeito.

Busca pelos corpos

Hoje as equipes trabalham como uma máquina chamada Estação de Busca. Com grandes esteiras e câmeras, essa máquina recebe a terra retirada da zona quente e, de dentro de uma cabine, o bombeiro militar observa toda a terra que passa pela esteira através das câmeras.

Ao perceber que algo pode ser fragmento corpóreo, o bombeiro solicita o interrompimento da máquina e aquele material vai para o peneiramento. O peneiramento é feito de forma manual e, confirmado o pedaço humano, ele é encaminhado para o Instituto Médico Legal de Belo Horizonte. Como os corpos foram fragmentados, ao serem encaminhados para o instituto, esses pedaços são chamados de casos.

Identificação de casos

Em Belo Horizonte, o processo de identificação já segue uma nova etapa. Por lá, o reconhecimento dos casos pode ser realizado de quatro formas: papiloscopia, arcada dentária, DNA e antropologia. Todos esses utilizam da “comparação” para obterem sucesso no reconhecimento.

Para isso, todos os familiares foram mobilizados a recolher raios-X corporais e dentários, ressonâncias magnéticas, exames médicos de imagem e qualquer outra coisa que pudesse ser usada para comparar o caso encontrado com o das vítimas da tragédia.

Também foi preciso preencher uma extensa lista com características únicas de cada indivíduo: tatuagens, marcas de cirurgias e cicatriz, por exemplo. Além disso, pai e mãe das vítimas precisaram doar uma amostra de DNA ao IML para que o processo de reconhecimento por DNA fosse possível.

Grande quantidade

Desde o dia 25 de janeiro de 2019, o IML Dr. André Roquete de Belo Horizonte já recebeu mais de 960 casos para serem analisados. A grande maioria, é de vítimas reidentificadas, ou seja, quando mais de um fragmento de uma mesma pessoa foi encontrado em diferentes momentos. O assunto causa dor ao ser abordado entre os familiares, já que grande parte não aceita receber ‘pedaços’ de quem saiu de casa inteiro para trabalhar. Mais uma vez, o Instituto precisou se adaptar para, minimamente, ser respeitoso com a devastação emocional causada pela tragédia.

Ao realizar a identificação e ligar para a família, há três formas de dar prosseguimento: encerrar o ciclo, fazer o enterro e, em caso de nova identificação, não ser mais avisada; fazer o enterro e ainda ser avisada em caso de novas identificações e realizar novos enterros; ou, em alguns casos, esperar concluir as operações de buscas para, enfim, fazer o enterro com o máximo de fragmentos identificados.

Método DNA

Para este ser feito, é preciso comparar a amostra de sangue dos pais com a do caso. Apesar de ser mais caro, esse não é o processo mais eficaz. Ele demora e só pode dizer ‘esse DNA é filho de X e Y”. Irmãos de mesmo pai e mãe que morreram na tragédia, por exemplo, não podem ser reconhecidos em sua individualidade através desse processo, um novo método precisa ser realizado.

Papiloscopia ou reconhecimento digital

Esse é o meio mais rápido e barato de identificação. Ele só é possível, no entanto, se o caso chegar ao Instituto com os dedos das mãos. Como todo brasileiro tem as impressões digitais tiradas para o cadastro nacional do Registro Geral (RG), o legista faz a retirada das impressões e a escaneia para o sistema da Polícia Civil que a compara com o banco de dados já existente. Quando essa digital dá um “match” com alguma outra do sistema, já pode-se dizer quem é aquela pessoa.

Arcada dentária

Nesse caso, algumas características únicas de cada vítima foram catalogadas pelo IML, como: uso de aparelho, contenção dentária, extração, restauração dentária, canal, obturações e implante. Exames de imagens que mostrassem os dentes e a boca da pessoa, feitos em vida, também foram anexados ao seu nome pelo Instituto. Assim, quando chegasse o caso de uma mandíbula com dentes identificada em Brumadinho para os legistas, eles poderiam iniciar o processo de comparação.

Antropologia

Esse, de acordo com o médico legista Dr. Alexander Dionísio, se mostrou o método mais eficaz para identificação das vítimas. Esse permite a identificação precisa das vítimas a partir de qualquer fragmento corpóreo. Por exemplo, ao receber uma bacia para análise, o instituto vai fazer raios-x e ressonâncias magnéticas do caso para comparação. Ao comparar, os médicos do Instituto ainda repetem as posições usadas no exame da vítima ainda em vida, destacando características únicas para que possam identificá-la.

Ainda que todas as pessoas sejam compostas, em sua maioria, com os mesmos órgãos e ossos, ninguém é igual. É exatamente por isso que a identificação por antropologia se torna a mais eficiente. Ao conseguirem comprovar que aquele caso pertence a tal vítima, a família é avisada para prosseguir com velório e enterro.

Mapa 1
Mapa 2
Mapa 3
Mapa 3
Mapa 3
Mapa 3
Mapa 3
Mapa 3

“Parece que eu estou em uma sala de velório, há três anos, esperando o corpo do meu marido chegar”

– Daise Laura, esposa de Tiago Tadeu, uma das cinco vítimas ainda não identificadas

O tempo foi inimigo de toda a história escrita pela Vale em Brumadinho, principalmente das cinco famílias que ainda aguardam pelo encontro de sua joia. É o caso da viúva Daise Laura, de 34 anos, que há três anos espera a identificação de seu companheiro, o engenheiro mecânico Tiago Tadeu Mendes da Silva.

A história do casal começou a ser escrita há mais de 10 anos. Com sorriso no rosto, enquanto se lembra do passado, a professora conta que os dois não davam muito crédito à possibilidade de o romance vingar, já que eram extremamente diferentes. Mas vingou. Tiago e Daise se casaram no dia 31 de janeiro de 2014 e, algum tempo depois, tiveram Ana Laura, a primeira filha do casal, que atualmente está com 4 anos.

A morte repentina do marido, aos 34 anos, marcou o fim de diversos sonhos planejados com aquele que deveria ser seu companheiro de uma vida inteira. Entre os planos, estavam a conquista da casa própria, o nascimento do segundo filho, uma provável promoção de Tiago no emprego e o acompanhamento do crescimento dos pequenos. À época do rompimento da barragem, o caçula, Iago, havia completado 6 meses, e o casal estava prestes a comemorar cinco anos de matrimônio.

Tiago era funcionário da Jangada e havia pedido transferência para a mina do Córrego do Feijão 23 dias antes da tragédia, logo após conquistar o diploma de engenharia. A expectativa era conseguir melhores oportunidades em Brumadinho com a conclusão do curso superior. “Ele só fez isso porque confiava na Vale”, conta Daise. “Diferentemente do que muitos dizem, o Tiago não fazia ideia de que a barragem poderia se romper em algum momento. Tudo foi um grande susto. Minha vida parou naquele momento e, pensando bem, continua parada, porque o corpo do Tiago ainda não foi encontrado.”

A professora relata que passou por toda a fase do luto de forma autossuficiente. “No meio daquele turbilhão, recusei-me a ir ao médico, a tomar remédio e até a passar por algum tipo de tratamento. Eu era o alimento do meu filho, e queria que aquele alimento fosse o mais puro possível”, pontua.

Para Daise, os filhos foram o principal motivo para que ela conseguisse seguir em frente e se manter de pé. Diagnosticada com depressão, ansiedade e estresse pós-traumático, a docente também precisa lidar com crises de pânico, que, de acordo com ela, têm sido mais intensas com o passar do tempo. “Nesses três anos, meus filhos têm sido tudo. Minha vida e o meu norte. Porque o tempo todo eu tenho vontade de desistir. A dor é muito grande, a saudade é muito grande, e a angústia por essa espera é sufocante”, desabafa.

De acordo com a psicóloga Karla Sindeaux, do Instituto Meraki, traumas, como os sofridos por essas mulheres, podem desencadear uma série de síndromes psicológicas. “O medo é um sentimento comum após a vivência de uma situação traumática, como a que ocorreu em Brumadinho. A pessoa pode reviver a situação inúmeras vezes, com pensamentos intrusivos, gerando medo e angústia excessivos e, consequentemente, uma paralisação diante das situações do dia a dia”, explica a especialista em saúde mental.

Diante desse contexto, esclarece a psicóloga, pode surgir também ansiedade superintensa, com medo inespecífico de morrer, o que pode gerar reações no corpo, como sudorese, taquicardia, respiração ofegante e sensação de morte. “Quando esses sintomas acarretam sofrimento psíquico significativo, com modificações importantes de comportamento devido ao medo da ocorrência de novas crises, essa vivência pode ser caracterizada por um profissional de saúde mental como crise de pânico”, destaca.

Daise também conta que levou algum tempo até aceitar o fardo que lhe foi imposto. A maioria das famílias passou pela fase de negação ao perceber a gravidade do rompimento da barragem. Alguns acharam que os parentes poderiam ter fugido e buscado abrigo, ou mesmo estar escondidos na mata, sem contato telefônico.

Ainda que tudo isso fosse possível, a verdade é que as vítimas não tiveram a chance de fugir ou de se salvar. Em uma rotina de cuidados comum para o setor, treinos que simulam prováveis rompimentos ou acidentes ocorrem com determinada frequência. No Córrego do Feijão, esse procedimento era feito duas vezes ao mês. Com o soar de uma sirene, todos seguiam uma rota de fuga com destino a uma área segura. Mas em Brumadinho essa dinâmica não passou de um treino. As sirenes não tocaram antes, durante, nem depois que a barragem implodiu.

O processo de negação de Daise foi mais prolongado. Oito meses após o rompimento da B1, ela ainda não havia aceitado o falecimento do marido, porque tinha esperanças de que Tiago pudesse voltar para casa em algum momento. “Para mim, as sirenes tinham tocado, e ele estava perdido em algum lugar. Até lá, eu não queria que nada mudasse”, conta. “Ana Laura [filha do casal] já estava com todos os sintomas de luto desde que recebeu a notícia. Ela me perguntou: ‘O meu pai morreu, não é?’. Tive que falar que sim, mas não acreditava naquilo.”

“A dor é constante, mas ela é pior em dois momentos: nos de intensa alegria e nos de tristeza. Em uma festa de aniversário ou um avanço das crianças, como as primeiras palavras do Iago, ele não está aqui para ver. Nos de tristeza ou ao tomar decisões, por mais simples que sejam, levar ou não os meninos ao médico após uma queda, por exemplo. São momentos que, para mim, são desesperadores, de gerar crise de pânico e ansiedade, porque são neles que de fato eu enxergo que estou sozinha. O Tiago não está aqui para compartilhar isso comigo, e esse é o grande desafio que tenho para vencer hoje”.

Ao lado de cinco outras famílias, a viúva ainda vive a angústia de esperar pelo encontro de sua joia. A esperança de Daise, no entanto, é alimentada pelo trabalho dos bombeiros, que, todos os dias, emitem relatórios informando o resultado das buscas.

Busca incessante

1200 dias

1200 dias

um trabalho diário realizado pelo Corpo de Bombeiro Militar de Minas Gerais, em conjunto com a Polícia Civil do estado, para identificar todas as vítimas.

Leia mais

Força-tarefa

Força-tarefa

Atualmente, cerca de 30 agentes ainda atuam em Brumadinho sete dias por semana, faça chuva ou faça sol, com o intuito de encontrar as joias desaparecidas.

Leia mais

Procurando fragmentos

Procurando fragmentos

O trabalho de mais de três anos da corporação já permitiu um grande avanço nas buscas e a criação de “pontos de buscas prováveis”.

Leia mais

A busca pelas cinco joias ainda não encontradas mantém acesa uma chama que sempre remete ao dia 25. Três anos e quatro meses após a tragédia, a ferida não cicatrizou. A sensação que se tem em Brumadinho é a de que poucos dias separam a rotina presente do rompimento da barragem. Quando esse assunto é abordado, percebe-se como os sentimentos seguem à flor da pele.

Todos têm algo a falar sobre aquela sexta-feira. Ter algo a dizer, no entanto, não significa querer conversar sobre o episódio. É difícil encontrar quem esteja disposto a tocar em uma memória tão delicada. A verdade é que janeiro de 2019 não acabou, e se repete diariamente.

Os moradores se sentem traídos pela empresa, que, à primeira vista, era conhecida pelo rigor com o qual cuidava da área de trabalho, somado ao nome internacional a zelar. É evidente que, além das joias perdidas, parte da vida de Brumadinho se foi com a lama.

Nove meses antes do rompimento da barragem, a Vale havia analisado a possibilidade de um rompimento da B1 e produzido, em abril de 2018, um Mapa de Inundação da região. Em um hipotético rompimento, o refeitório, o posto médico, o laboratório, as oficinas e demais construções da empresa seriam soterrados em poucos segundos.

Em uma arquitetura mal planejada, todos os pontos citados acima ficavam na área abaixo da barragem, com apenas 1,3 km de distância. De acordo com o documento produzido pela mineradora, as construções que ficassem até 2 km da barragem seriam alcançadas com menos de 1 minuto. O cálculo da Vale ainda previa que mais de 200 pessoas poderiam morrer caso houvesse o tal rompimento. Era uma tragédia anunciada, e, ainda assim, funcionários foram postos à prova.

Todos os familiares e amigos das vítimas entendem que acidentes acontecem, mas ninguém consegue aceitar o fato de que todos os trabalhadores da mina do Córrego do Feijão foram enviados até lá para morrer.

As viúvas de Brumadinho, em especial, se sentem culpadas por terem apoiado seus maridos a ingressarem na Vale.

Sonho soterrado

Para Danila de Lourdes Araujo Oliveira Damasceno, a Vale tirou dela não só o marido, como também o seu sonho de ser mãe. No dia do rompimento da barragem, o companheiro da pedagoga estava na mina do Córrego do Feijão a fim de realizar exames admissionais para começar a trabalhar na empresa.

Juntos há 11 anos, eles se consideravam um presente um para o outro. Alisson e Danila estavam casados há 7 anos. Ao ouvi-la falar, fica nítido o quanto ela o considerava uma dádiva divina. Parceiros do tipo que colocam a mão na massa, os dois foram responsáveis pela reforma da residência em que a pedagoga mora e não tem coragem de deixar, no município de Sarzedo.

Cheios de planos, Alisson também foi o braço direito da esposa enquanto a amada coordenava a escolinha infantil criada por ela. Por lá, auxiliava na parte administrativa e burocrática. “Ele evitava a todo custo que eu ficasse irritada com algum tipo de amolação. Fui muito mimada”, rememora. Como a vida a dois seguia à risca, a chegada de um bebê deveria ser a próxima etapa da relação.

Após algum tempo tentando, o casal decidiu procurar ajuda médica para encontrar o motivo de Danila não engravidar. O diagnóstico de varicoceles de Alisson foi um balde de água fria para os dois. “Ele ficou muito triste, nós choramos muito”, conta a pedagoga. Após um demorado tratamento sem sucesso, que também incluiu uma inseminação artificial, a realização do sonho parecia cada vez mais distante.

Morando a poucos minutos de Brumadinho, Alison tinha o desejo de ingressar na Vale. Com a contratação prestes a acontecer, o casal decidiu aguardar até que tudo estivesse certo com a empresa para prosseguir com a gestação. O sonho de ter filhos, no entanto, nunca se concretizou.

“Eu já estava com tudo pronto para fazer [uma nova tentativa de inseminação] em fevereiro. Mas, infelizmente, eu o perdi. Até liguei para o nosso médico para saber se tinha como eu fazer com o corpo dele, pegar uma amostra de sêmém, mas realmente não tinha mais como”

– Danila Alves de Lourdes Araujo Oliveira Damasceno, casada com uma das vítimas do rompimento

Danila, então, sofreu com uma série de problemas psicológicos. Entre os diagnósticos, estão depressão, estresse pós-traumático, ansiedade e crise de pânico. A maternidade não pôde ser seu afago para enfrentar o luto. “Não tenho mais estrutura psicológica. Se eu passar por alguma coisa difícil, não dou conta”, desabafa.

Depois de perder o marido, Danila não conseguiu voltar ao trabalho e acabou fechando a escolinha infantil que dirigia. Apesar do incentivo da mãe e de alguns amigos, a pedagoga precisa de uma rotina diária com doses fortes de remédio para encarar a realidade e seguir em frente. Mais de três anos após a tragédia, Danila só deu entrevista depois de estar medicada.

Essa é a rotina de centenas de pessoas que, de alguma forma, foram atingidas pelo rompimento da barragem, principalmente das que ainda vivem em Brumadinho. Não é fácil enfrentar o luto. Muitas famílias, inclusive, são proibidas pelos médicos de tocarem no assunto ou darem entrevistas – na opinião dos profissionais de saúde, isso significaria o retrocesso de um tratamento que já dura mais de três anos.

Indenizações que não tapam o buraco da vida

Além do estrago humano e ambiental causado pela Vale em Brumadinho, a tragédia patrocinada pela mineradora incitou uma devastação social na cidade. De um lado, estão as famílias que foram indenizadas pela empresa e, do outro, as que não tiveram o mesmo suporte financeiro.

Algumas horas após o rompimento da barragem, a Justiça bloqueou bens e decretou que uma série de pagamentos fossem realizados como indenização. Até o momento, já são mais de 5 mil acordos com familiares das vítimas e 1,4 mil indenizações trabalhistas.

Segundo a Vale, 12.961 pessoas foram beneficiadas com esses acordos. Somadas as indenizações trabalhistas e cíveis mediadas pela Defensoria Pública de Minas Gerais e aquelas conduzidas por advogados, o valor pago pela Vale ultrapassa R$ 2 bilhões. Pais, mães, cônjuges, irmãos, filhos e moradores de Brumadinho atingidos direta ou indiretamente pelo rompimento da barragem de rejeitos já foram ou esperam ser ressarcidos.

Em muitas famílias, o trabalhador da Vale era o provedor da renda de casa, parcial ou totalmente. Ao retirar esse pilar de forma repentina, a estrutura do lar acaba comprometida. Para quem tem filhos, fica ainda mais difícil conciliar a maternidade com os afazeres domésticos e o serviço externo, principalmente quando não há uma rede de apoio. Além disso, é preciso levar em consideração o luto dos filhos e das esposas, que, em alguns casos, foram diagnosticadas com doenças psicológicas e traumas, sendo recomendado o afastamento do trabalho em prol da própria saúde física e mental.

Essas famílias também tiveram de lidar com o julgamento de outros moradores de Brumadinho e chegaram, inclusive, a escutar comentários dolorosos. “As pessoas nos veem como cifras, e eu não sou viúva da Vale, como muitos nos chamam. Sou viúva do Tiago. Ele poderia ter ido embora em um acidente de carro, de uma doença… Mas, infelizmente, foi vítima da negligência da empresa em que ele trabalhava, que priorizou o lucro ao invés da vida. Eu não tenho relação nenhuma com Vale, nem pretendo ter”, desabafa Daise.

O recebimento das indenizações ainda trouxe um outro problema para essas famílias: o medo. Com a constante divulgação de valores pagos, não necessariamente aceitos, assaltos, roubos e tentativas de sequestro passaram a rondar o município de Brumadinho.

Essa situação só aumenta o silenciamento dos parentes das vítimas, que têm muito a dizer, questionar e reivindicar.

Falar o nome, mostrar o rosto, ou qualquer outro tipo de exposição, coloca essas famílias em perigo. Há quem ainda não entenda que o pagamento de uma indenização por morte tem um peso sentimental incalculável, carregado de culpa e receio por quem aceitou receber o que era seu por direito. Todos esses fatores contribuem para o adoecimento mental dessas mulheres, que, além do luto, têm de lidar com julgamentos.

A grande maioria relata dificuldade de enfrentar a ausência do marido e conseguir seguir em frente sem o apoio ou ajuda do seu companheiro. Após três anos e quatro meses, muitas viúvas são julgadas por seguirem a vida e até por voltarem a sorrir. Muitas enfrentam diversos distúrbios psicológicos e fazem tratamentos que podem durar uma vida inteira. E, infelizmente, ainda há quem acredite que viver bem e tentar ser feliz não deveria ser uma opção para essas mulheres.

“A viúva fica sem rumo, sem direção. Ser pai e mãe da noite para o dia não é fácil. A gente tenta ficar bem, se arrumar e ter força para a minha filha. Aí, as pessoas nos veem bem vestidas e arrumadas e pensam: ‘Ela tá bem’. Como vamos passar força para alguém se a gente se mantiver abatida? Por dentro pode estar doendo, mas por fora temos que nos mostrar bem para dar força”, diz Ana Carolina.

A costureira Jacqueline Rodrigues também relata que sofreu uma chuva de ataques na conta do Facebook ao alterar sua foto de perfil. “Ninguém sabe como estamos de verdade, nem da dificuldade que é o dia a dia, a rotina de cuidar dos filhos sozinha. Enfrentar o luto é difícil, e quando somos julgadas constantemente, é pior”, pontua.

Enquanto as mães precisam se mostrar fortes aos filhos, para que a vida não pare, elas também têm de viver o luto. O autojulgamento, nesses casos, ainda pode ser comum, pois algumas se sentem culpadas por conseguir tocar a vida. Daise foi uma das mães viúvas que se viu em uma encruzilhada pouco depois da morte do marido. Seis meses após o rompimento da barragem, o caçula dela completaria 1 ano de idade. Ela resolveu, mesmo devastada, comemorar o primeiro ano do pequeno, algo que havia planejado com o marido antes mesmo do nascimento de Iago.

“É muito fácil as pessoas verem a gente na festa sorrindo pelos filhos, sem saber o que se passa no nosso coração. Eu não escolhi não ter o Tiago na minha vida, ele foi tirado da gente. Mas isso não pode fazer com que a vida dos meus filhos seja triste, porque a gente planejou que eles tivessem uma vida feliz. Já basta a dor de ver os coleguinhas que têm o pai presente, e eles não. A vida precisa continuar. A felicidade precisa existir”, desabafa.

Legitimação da luta

Em agosto de 2019, um grupo de parentes das pessoas que perderam a vida na tragédia fundou a Associação dos Familiares das Vítimas e Atingidos pelo Rompimento da Barragem em Brumadinho-MG (Avabrum). De acordo com a atual presidente da associação, Alexandra Andrade Gonçalves, a iniciativa ouve queixas e medos, dá informações a todos os envolvidos, direta ou indiretamente, no desastre, e ajuda os que buscam justiça.

“Cada um tem sua profissão, sua vida particular e, de repente, devido ao rompimento da barragem, tivemos que ir à luta pelo encontro de todas as vítimas, pela memória das joias, pela construção de um memorial e pela não repetição do crime, para que mais tragédias como essa não aconteçam”, explica a voluntária Alexandra, que também é funcionária pública.

Entre algumas conquistas da Avabrum, estão a construção do memorial para as vítimas do rompimento da B1 e a construção do Centro de Convivência. Finalizado no último ano, o segundo empreendimento fica na região central de Brumadinho. Por lá, os familiares das pessoas que morreram na tragédia desenvolvem diversas atividades em conjunto e modalidades terapêuticas, como massoterapia, acupuntura, yoga e arteterapia.

A prioridade de atendimento é para o núcleo familiar reconhecido pelo Ministério Público do Trabalho: pais, mães, viúvas, filhos e irmãos. É no Centro de Convivência que essas mães encontram suporte e dividem suas dores com quem realmente as entende, livre de julgamentos. Elas conversam, compartilham, recebem apoio, riem e choram. Aconchego é a palavra de ordem.

O lucro em primeiro lugar

A luta da Avabrum por justiça ainda não teve um desfecho satisfatório. Mais de três anos após o desastre causado pela mineradora, não existem culpados da tragédia-crime. Uma investigação do Ministério Público comprovou que a Vale e a empresa alemã TUV Sud sabiam do risco iminente de rompimento da barragem de rejeitos. Em documentos da mineradora, foi constatado que a própria Vale tinha uma planilha com o nome de “Top 10 – Probabilidade”, em que 10 barragens de rejeitos foram elencadas devido à sua situação de risco – todas estavam com o padrão acima do aceitável. A B1 ocupava a 8ª posição.

Trata-se de um cenário muito parecido com o que aconteceu em 2015, também em Minas Gerais. No dia 5 de novembro de 2015, a cidade de Mariana precisou lidar com o maior desastre ambiental da história do país depois que a Barragem do Fundão, sob domínio da Samarco [subsidiária da Vale], se rompeu, matando 19 pessoas. Relembre.

A cena se repete e, assim como em Brumadinho, ninguém foi incriminado ou preso até o momento. A princípio, 21 pessoas chegaram a ser acusadas de homicídio doloso, mas em decisão recente do Ministério Público Federal 13 pessoas foram excluídas da ação penal e não responderão por nenhum crime. Para as demais, o crime de homicídio foi retirado das acusações pelo juiz federal Jacques de Queiroz, de Ponte Nova.

Lamentavelmente, esses podem não ser os únicos crimes que envolvem mineradoras e deixam milhares de pessoas em situação de vulnerabilidade — financeira, afetiva ou social.

De acordo com dados da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA), disponibilizados em abril de 2022, 162 barragens da Vale constam no Sistema Nacional de Informações sobre Segurança de Barragens (SNISB). Dessas, 35 têm Categoria de Risco (CRI) e Dano Potencial Associado (DPA) altos, simultaneamente. Apenas 43 barragens cadastradas pela companhia não representam risco à sociedade.

Enquanto essas vítimas esperam por respostas, a Vale continua funcionando em todo o Brasil e no mundo. A empresa causou a morte de 300 pessoas somente nos últimos seis anos. Paradoxalmente, a frase “A vida em primeiro lugar” estampa campanhas, projetos e mídias digitais da mineradora. A vida de quem?

O outro lado

Após a publicação da matéria, a Vale, por meio de assessoria de imprensa, enviou uma nota informando que tem prestado apoio às vítimas e que fechou mais de 13,4 mil acordos indenizatórios, entre cíveis e trabalhistas, para as vítimas do rompimento da B1.

A empresa informou ainda que, além das indenizações, conduz o Programa Referência da Família, com uma equipe de profissionais para prestar assistência psicossocial. De acordo com a multinacional, mais de 3.300 pessoas teriam sido atendidas.

“A empresa reafirma seu profundo respeito para com as famílias impactadas direta e indiretamente pelo rompimento da barragem e continuará colaborando com as autoridades, sempre de forma transparente e colaborativa”, destaca a nota.

DIRETORA-EXECUTIVA
Lilian Tahan
EDITORA-EXECUTIVA
Priscilla Borges
EDITOR-CHEFE
Otto Valle
COORDENAÇÃO
Olívia Meireles
EDIÇÃO
Rebeca Oliveira
REPORTAGEM
Carinne Souza
EDICÃO DE ARTE
Gui Prímola
DESIGN E ILUSTRAÇÃO
Caio Ayres
EDIÇÃO DE FOTOGRAFIA
Daniel Ferreira
Michael Melo
FOTOGRAFIA
Igo Estrela
Gustavo Moreno
COORDENAÇÃO DE VÍDEO
Pedro Bede
EDIÇÃO DE VÍDEO
Leonardo Hladczuk
TECNOLOGIA
Allan Rabelo
Daniel Mendes
Mateus Moura
Saulo Marques
Wellington Monteiro