Quem conviveu com Miriam Cristina de Jesus como uma alegre baiana de acarajé não a reconhece mais. Tudo ao redor dela perdeu a cor com o desaparecimento do filho caçula, Rildean de Jesus Santos, aos 19 anos, em 25 de março de 2010, no Alto do Cruzeiro, uma favela de Salvador.

O jovem amanheceu com crise de sinusite e não foi trabalhar. Quando não estava na escola, ele ajudava o pai, que era pedreiro. Ao ouvir uma confusão do lado de fora de casa, correu para ver do que se tratava.

Amigos falaram para ele fugir, pois pessoas encapuzadas, supostamente policiais, agrediam moradores sem qualquer motivo. “Não vou correr porque não devo nada”, Rildean disse, segundo testemunhas. Dois homens com o rosto coberto o perseguiram até o fim da rua e o colocaram no porta-malas de um carro, sob protesto dos vizinhos: “Deixem ele, o menino não é bandido”.

Miriam estava na parada de ônibus, era cuidadora de idosos e voltava do trabalho quando o telefone tocou. Era Rildean ligando a cobrar, mas ela não ouviu a chamada. Retornou, mas o rapaz não atendeu. Ao aproximar-se de casa, ela notou o peso no olhar dos vizinhos. “Todo mundo me olhava de um jeito estranho, até que deram a notícia”, lembra.

Ao lado do marido, Miriam percorreu as ruas de Salvador e de cidades do interior em busca de informações, mas nunca conseguiu avançar na investigação. Ela sente saudades de ser chamada de “mainha” e até das reclamações do filho, pelo excesso de preocupação.

“Eu olhava a mochila dele sempre, ia à escola quase toda semana. Cuidei dele muito bem e isso me dá mais revolta”, diz. Rildean estava na 8ª série e a namorada esperava um filho dele. A criança nasceu dias após o sumiço do garoto, mas não sobreviveu.

Miriam convive com as sequelas da dor. Antes do crime, tinha saúde perfeita. Desenvolveu depressão, transtorno de estresse pós-traumático, diabetes, hipertensão e problemas de coluna. Toma uma infinidade de medicamentos para se manter de pé ou para dormir, mas nem sempre eles funcionam.

“Passo dias com as janelas fechadas e sem falar com ninguém. Nem o sol entra aqui em casa. Já amanheci muitas vezes diante da porta esperando ele voltar”, relata. Ela também desenvolveu compulsão alimentar e acorda no meio da madrugada para comer em busca de alguma satisfação em viver.

A mãe perdeu o emprego por conta das condições de saúde e nunca recebeu apoio psicológico do poder público. Se sente “inútil” e isso agrava o quadro psicológico. Também não teve retorno algum da 6ª Delegacia de Polícia de Salvador, onde registrou o caso. “Há oito anos, eles só dizem que estão investigando, mas e se foi a polícia? Quem vai apurar?”, questiona.

Miriam confessa já ter pensado em suicídio mas quer viver para descobrir o que houve com Rildean. “Se isso tivesse acontecido em bairro rico, com gente branca, as coisas seriam diferentes. A dor da mãe pobre não importa, mas a gente é ser humano”.

O Metrópoles entrou em contato com a Secretaria de Segurança Pública da Bahia para ter informações sobre a investigação do crime, mas não recebeu resposta até a publicação desta reportagem. O Ministério Público da Bahia também não quis se manifestar.

O s cabelos ondulados de Hanry Silva Gomes de Siqueira, 16 anos, estavam penteados e ele cheirava a sabonete quando saiu de casa. A imagem do filho feliz e bem cuidado é a última que a mãe dele, Márcia de Oliveira Jacintho, guarda do adolescente.

Em 21 de novembro de 2002, ele iria ao curso de informática, à escolinha de futebol e depois ao colégio, onde cursava o ensino médio. Aos 15 anos, já tinha trabalhado em um escritório de advocacia e nunca se envolveu com o crime.

Por volta das 18h15, Márcia arrumava a cozinha quando ouviu disparos no Morro do Gambá. Como de costume, a polícia agia com truculência na área. “Na hora, não me preocupei, achava que isso nunca aconteceria com um menino como ele, trabalhador e estudioso”, lembra.

No meio da madrugada, o padrasto de Hanry acordou a esposa. O jovem não estava na cama e isso não era comum. O dia amanheceu e Márcia bateu de porta em porta em busca de notícias do filho. Às 8h, um amigo avisou: duas pessoas tinham dado entrada no Hospital Municipal Salgado Filho, baleadas em um “confronto com a polícia”.

Naquele momento, Márcia viveu o que classifica como “a pior coisa da vida”. Os pacientes “baleados” eram, na verdade, cadáveres no Instituto Médico Legal (IML) à espera de identificação. O marido dela e uma amiga reconheceram o adolescente em uma das gavetas quebradas e sem refrigeração.

Márcia recorreu à Comissão de Direitos Humanos da Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj) e ao Ministério Público para ter acesso ao inquérito. O laudo cadavérico descrevia a vítima como um rapaz de 25 anos com dentes em péssimas condições. Nos depoimentos, policiais falavam em troca de tiros, apreensão de um revólver calibre .38 e de um pacote de maconha.

“Foi como uma facada no peito. Tentaram caracterizar um bandido, pobre, favelado, malcuidado pela família. Aquele não era o meu filho”, relata. A indignação foi combustível para que Márcia investigasse o crime sozinha. Ela se matriculou em uma faculdade de direito e começou a assistir séries criminais.

“Aprendi que a perícia fala pela vítima. Voltei ao local, encontrei os chinelos dele, cápsulas de balas e rastros de sangue. Fotografei tudo”, conta. Márcia só conseguiu uma inspeção policial dois anos depois do crime. Ainda após tanto tempo, foram coletados vestígios essenciais para a condenação dos criminosos.

A mãe de Hanry também exigiu uma nova avaliação do exame de raio-x do filho. Descobriu que a dinâmica de trajetória da bala desmentia o depoimento dos policiais. O projétil entrou de cima para baixo, sinalizando execução. Ela também questionou a ausência de pólvora na mão do garoto — acusado de trocar tiros com agentes.

Márcia coletou depoimentos de vizinhos e os convenceu a falar com representantes do Ministério Público. Um jovem viu quando agentes saíram do mato e roubaram um lençol branco de uma casa. Assim, cobriram o cadáver que fingiram socorrer ao hospital. “O tráfico não pagou o arrego [propina] e a polícia se vingou no primeiro que encontrou”, relata a mãe.

Hanry voltava da casa de um amigo com apenas um chaveiro nas mãos quando foi abordado, levado para uma região de mata e executado. “Dias depois, pegaram um menino do tráfico, então os bandidos pagaram R$ 2 mil e um fuzil por ele, esse acabou liberado. Pelo Hanry ninguém deu arrego, pois ele não tinha nenhuma relação com os criminosos”, afirma a mãe.

Nunca recebi apoio do governo, tudo que me deram foi aquela bala para tirar meu filho de mim”

Márcia Jacintho

Depois de infindáveis audiências, com os esforços de Márcia, o apoio de um promotor do MP e de Marielle Franco, que já fazia parte da Alerj, em 2008, a Justiça condenou os policiais militares Paulo Roberto Paschuini e Marcos Alves da Silva pela morte de Hanry. O primeiro recebeu como punição 3 anos e 2 meses de reclusão por fraude processual (plantar drogas e armas no local do crime), o segundo 9 anos e 2 meses pelo mesmo crime e também por homicídio.

À época da condenação, Paschuini já estava preso, pois havia sido condenado por roubo a mão armada em 1998. Ainda assim, permaneceu solto e trabalhava na Polícia Militar do Rio de Janeiro (PMRJ). Os dois receberam inclusive promoções dentro da corporação enquanto Márcia pedia por justiça. Em 2006, Silva era soldado e Paschuini, cabo. Ao final do processo, eram cabo e terceiro-sargento, respectivamente. Só foram exonerados em 2008, após decisão judicial. Os dois já estão soltos.

Márcia conseguiu honrar a memória do seu menino, mas convive com os ferimentos dessa batalha. Enfartou, é hipertensa, tem depressão, desmaia sem motivo, sente cansaço e falta de ar o tempo todo, além de vários problemas de coluna. Ela espera por um eletrocardiograma na rede pública desde 2006. “Mataram meu filho e agora vão me matar. Eu tinha uma saúde impecável, mas metade de mim se foi”, constata.

A mãe também perdeu o emprego como copeira em um hospital, pois não teve condições psicológicas para trabalhar. O Estado foi condenado a pagar indenização de R$ 100 mil a Márcia, mas recorreu da decisão e nunca lhe deu um centavo. “Não há reparação possível, mas com esse dinheiro a nossa família poderia cuidar da saúde”, lamenta.

Alef Souza Cavalcante não via a hora de completar 18 anos. Neto de militar, sonhava em vestir a farda do Exército. Morreu aos 17 anos, executado com três tiros nas costas, que saíram pelo pescoço e tórax. As balas foram disparadas por policiais militares, segundo denúncia do Ministério Público do Ceará.

O adolescente foi uma das 11 vítimas da Chacina do Curió (ou Chacina da Messejana), um dos maiores massacres da história de Fortaleza. Na madrugada de 12 de novembro de 2015, 44 policiais aterrorizaram bairros da periferia e cometeram assassinato em massa. A principal linha de investigação aponta para vingança pela morte de um PM durante assalto, horas antes. Alguns moradores foram alvejados no meio da rua, outros retirados de dentro das casas e fuzilados.

O filho de Edna Carla Souza, Álef, conversava com amigos em frente à casa da tia de um deles, no Curió, por volta de 0h20. Homens atiraram contra o grupo, que correu, mas não conseguiu fugir.

Do total, duas vítimas tinham ficha policial: uma por envolvimento em acidente de trânsito e outra por falta de pagamento de pensão alimentícia. Não havia qualquer boletim de ocorrência em nome de Álef. O jovem era estudante e gostava de andar de skate à beira mar, em Fortaleza.

Todos os dias, antes de sair para o trabalho Edna passava no quarto do garoto e se despedia dele com um beijo. Em fins de semana ou datas especiais, fazia bolo de chocolate, creme de galinha e biscoito de goma, os favoritos do caçula. Ainda hoje ela cozinha esses pratos. “Minha filha diz: mãe, ele não está aqui. Mas meu coração sabe que meu menino fica feliz quando me lembro dele”, diz.

Após enterrar o filho, Edna passou três meses acamada. “Parecia um estado de coma. Não comia, não bebia. Estava em um lugar muito escuro”, lembra. Ela não vive um dia sem pensar em como seria o futuro de Álef. A mãe, que sonhava ver o filho fardado e nas fileiras do Exército, hoje não confia na lei, no governo ou nos homens com uniforme da PM.

“Quantas vezes Álef ficou até tarde na Beira Mar [cartão-postal de Fortaleza] e nada aconteceu? Ali eles não matam. Na favela pode escorrer o sangue, pois lá os pés do governador não pisam”, revolta-se.

O inquérito foi concluído em abril de 2016 e enviado ao Ministério Público do Ceará para denúncia. A investigação confirmou a participação de 44 policiais em uma operação jamais vista na história da capital do Ceará. Militares executaram inocentes, fecharam as entradas dos bairros para barrar ambulâncias e não atenderam chamadas de emergência. O processo segue em segredo de Justiça.

Em 28 de maio de 2018, a 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) negou habeas corpus que daria liberdade a três policiais militares presos preventivamente pelo suposto envolvimento na chacina. A defesa recorreu à Corte após ter pedido indeferido pelo Tribunal de Justiça do Ceará com argumento de que a denúncia não individualizou as condutas dos acusados e não apontou indícios mínimos de autoria do delito de homicídio.

Por unanimidade, o colegiado concluiu que não houve demonstração de constrangimento ilegal ou de inépcia da denúncia para justificar o trancamento prematuro da ação penal. Além dos crimes de homicídio qualificado consumado e tentado, os militares foram acusados pelos delitos de tortura e de lesão corporal.

Segundo o relator do habeas corpus, ministro Joel Ilan Paciornik, a denúncia descreveu que, no dia dos crimes, os três homens estavam dentro de viatura que circulou pela rua onde havia pessoas baleadas e, mesmo estando em serviço no momento, deixaram de prestar socorro às vítimas. O Ministério Público apontou que “os policiais se omitiram dolosamente no cumprimento de seus deveres legais, anuindo com as ações delituosas.”

Quase três anos após o crime, dos 44 PMs denunciados, 34 irão a júri popular e 10 tiveram processos arquivados. Todos foram presos preventivamente por 8 meses e 24 dias.

Agora, estão em liberdade, o que causa grande sofrimento à Edna e aos familiares das outras vítimas. “Enquanto luto por justiça, mantenho meu filho vivo. Não vou descansar. Paguei a bala que o matou, a gasolina da viatura, a farda do soldado e o salário deles”, desabafa.

O Ministério Público do estado não quis comentar porque o processo está sob sigilo.

Vitor Santiago, 32 anos, carrega marcas da guerra no corpo. Em 11 de fevereiro de 2015, ele foi assistir a um jogo do Flamengo com amigos. Levou dois tiros de fuzil quando voltava de madrugada para casa, na favela da Maré. Teve a perna esquerda amputada, perdeu parte do pulmão e ficou paraplégico.

O Exército ocupava a comunidade com promessas de pacificação, desde 2014. Havia montado diversas barreiras chamadas de checkpoints para monitorar o bairro. O veículo no qual Vitor estava parou em uma desses pontos e os ocupantes agiram de maneira padrão: acenderam a luz interna, baixaram o vidro e desligaram o rádio.

Vitor e quatro colegas — um deles sargento da Aeronáutica — foram revistados, tiveram documentos checados e seguiram viagem. Cerca de 15 minutos depois, vieram os disparos. Na barreira seguinte, militares de plantão atiraram contra eles. Todos saíram do carro e deitaram-se no chão. Vitor, nesse momento, estava desmaiado. Ninguém mais ficou ferido.

Os mesmos homens socorreram o jovem e usaram um tanque de guerra como ambulância para levá-lo a uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA). Vitor ficou quase quatro meses no hospital. Foram sete dias em coma e, quando acordou, não tinha mais os movimentos da perna que lhe restou.

Irone Santiago ficou o tempo todo ao lado do filho no leito de internação. Voltou a trocar as fraldas dele e alimentá-lo. Viu o jovem, técnico em segurança do trabalho e membro do Corpo de Dança da Maré, tornar-se dependente de uma cadeira de rodas.

O processo judicial que corria na 5ª Vara Federal Cível do RJ teve desfecho em 8 de agosto de 2018. O juíz Sergio Bocayuva Tavares Dias condenou a União a pagar R$ 550 mil por danos estéticos e R$ 400 mil por danos morais a Vitor.

Ele terá direito a pensão vitalícia de 1,35 salário mínimo (cerca de R$ 1.262,35) e sua mãe receberá pensão mensal de R$ 954, por ter deixado o emprego para cuidar do filho.

A União também deverá fornecer à vítima assistência de enfermagem para curativos em domicílio, fisioterapia, acompanhamento médico em clínica geral e psicoterapia. Cabe recurso da decisão.

Na ação, o cabo Diego Neitzke, responsável pelos tiros, alegou que o motorista não obedeceu à ordem de parada. Os cinco ocupantes do veículo negaram a versão. O juiz decidiu que não foi um caso de legítima defesa, como alegava o Exército, pois os militares estavam abrigados em uma viatura blindada.

No entendimento de Bocayuva, não havia elementos mínimos indicando que o condutor tenha colocado em situação de risco qualquer militar. “Na melhor das hipóteses, o motorista teria furado um bloqueio”, afirmou o magistrado.

A família de Vitor não processou o militar, mas sim o Estado. Pediu à União casa e carro adaptados, compensação por danos morais e estéticos, manutenção do fornecimento de materiais médicos que ele já recebe, além de aposentadoria por invalidez.

“O cabo estava ali a mando de alguém, sem qualquer preparo. Quem responde por esse crime é o Estado. Nós pagamos para morrer”

Irone Santiago

Há também uma ação criminal em curso. O Ministério Público Militar denunciou o cabo por lesão corporal gravíssima contra Vitor, com atenuante de pena devido à situação de risco em que o militar atuava. O motorista do carro em que Vitor estava foi denunciado por desobediência (por supostamente não ter parado o veículo após aviso).

Desde 2016, a família busca indenização para proporcionar melhor qualidade de vida ao rapaz. “Meu filho saiu de casa dizendo que ia levar minha neta à praia no dia seguinte e voltou 98 dias depois em uma cadeira de rodas”, conta Irone.

Até o equipamento usado por Vitor para se locomover é fruto de doação. “Além de tudo, minha mãe ficou doente, meus irmãos muito abalados, minha filha, Beatriz, de 5 anos ainda me desenha de pé, com duas pernas. Ela diz que gosta de se lembrar de mim com elas nas costas saindo para passear. Dói demais”, relata o jovem.

Com problemas psicológicos em decorrência do ocorrido, Irone procurou diversas vezes UPAs e hospitais, nunca teve acompanhamento terapêutico e recebeu apenas indicação para tomar medicamento controlado. “O Estado mutilou meu filho e me deu um Rivotril”, afirma.

Irone também convive com hipertensão e sente o coração bater acelerado. “Engordei 14kg. Fiquei doente de ódio, mas aprendi a liberar o perdão”, diz. Ela conseguiu se reerguer, voltou ao peso anterior e se engajou na luta pela dignidade dos moradores da favela. Vitor e a mãe tornaram-se símbolo da resistência na Maré.

“Não espere a dor bater na sua porta para lutar, comece antes. A gente é condenado por ser negro, por morar na comunidade. Eu vivo a Maré, sinto a Maré, sou filha da Maré. Nós exigimos respeito”, diz Irone.

Órgãos como a Anistia Internacional e a Justiça Global publicaram documentos aconselhando o Rio de Janeiro a tomar medidas de segurança para controlar a violência policial. O estado, porém, não se dispôs a dialogar com as entidades.

A história de Nágida Gomes difere dos outros relatos desta reportagem. O filho dela Artur Teixeira morreu assassinado aos 18 anos, mas não há suspeita de que o responsável seja um policial.

Ainda assim, Nágida participou no mês de maio deste ano do 3° Encontro de Mães e Familiares Vítimas do Estado, em Salvador (BA). Ela se sente violada em seus direitos devido à recusa da polícia em dar prosseguimento às investigações do caso. “Quando uma delegacia não apura, o Estado nos violenta também, não cumpre seu papel, nos tortura”, alega.

Nágida reuniu provas para tentar revelar o autor dos três tiros que acertaram a nuca do adolescente, na Rua João Besouro, em Altamira, em 1º de abril de 2017. Ela conseguiu áudios e imagens do dia do crime, na esperança de guiar os trabalhos policiais. Encontrou até uma testemunha, que indicou a identidade do assassino.

Mas não viu a investigação evoluir. “O inquérito só foi para o Ministério Público um ano depois, com muita pressão do grupo de mães que formamos em Altamira, e continua sem qualquer decisão. Há casos na gaveta do delegado há quatro anos sem movimentação”, afirma.

As circunstâncias em que Artur foi morto são incertas. Segundo a mãe, o pai de uma ex-namorada do garoto atirou nele. Policiais acusaram o jovem de ter participado de um assalto, próximo ao lugar onde foi morto. Ainda levantaram a hipótese de acerto de contas, devido ao envolvimento dele com drogas.

Para Nágida só importa que os culpados sejam responsabilizados. “Perdi meu único filho, não vou mais ter outro. Fiquei depressiva, tenho problemas para dormir, tomo remédios e senti a minha saúde se degradar”, relata. Lidar com a falta de respostas, segundo ela, agrava o quadro de ansiedade.

A mãe descreve Artur como um rapaz carinhoso, que estava de mudança para Santa Catarina para viver com familiares do pai. Nágida reuniu outras 14 mães de jovens assassinados — alguns deles em casos comuns e outros em situação de violência policial. Juntas, elas procuram advogados, pressionam autoridades, fazem manifestações e, agora, participam do movimento nacional que se encontrou em Salvador.

A gente fez do luto a nossa luta. A morte dos nossos filhos não pode ficar como se nada tivesse acontecido”

Nágida Gomes

O caso de Artur engrossa a estatística da impunidade: no Pará, somente 4% dos homicídios foram solucionados pela polícia em 2017, segundo o levantamento Onde Mora a Impunidade?, publicado pelo Instituto Sou da Paz. É a menor taxa de resolução do Brasil.

No cenário nacional, 80% dos assassinatos cometidos em 2017 fecharam o ano sem elucidação, de acordo com o mesmo estudo. O país teve o maior registro histórico de homicídios com 61 mil mortes violentas.

A pesquisa apresenta lacunas, pois somente seis estados, entre eles o Pará, coletam dados sobre resolução de homicídios: Rio de Janeiro (12%), Espírito Santo (20%), Rondônia (24%), São Paulo (38%), e Mato Grosso do Sul (55,2%).

A equipe responsável pelo estudo atribui essa baixa eficiência à falta de investimentos nos setores de inteligência. O governo costuma privilegiar o policiamento ostensivo. No Brasil, há um PM a cada 471 habitantes e um agente civil a cada 1.674 habitantes.

“Em alguns estados, o Ministério Público denuncia menos de 15% das mortes violentas, devido às fragilidades das provas, ao déficit de estrutura pericial e à demora excessiva na condução dos inquéritos policiais, entre outros fatores”, ressalta trecho da pesquisa.

Bianca morreu antes de nascer. Ainda na barriga da mãe, Ana Paula, foi atingida por tiros em 15 de maio de 2006. “Filho de bandido também é bandido”, disse o homem que alvejou contra elas por volta de 22h. Os assassinos mataram ainda o pai da neném, Eddie Joye.

Naquele mês, o Primeiro Comando da Capital (PCC) arquitetou rebeliões em vários presídios e atacou agentes públicos. Morreram 23 PMs, oito policiais civis, oito agentes penitenciários e três guardas civis. A resposta dos colegas de corporação teria sido executar, de maneira aleatória, jovens nas periferias de São Paulo. Em um mês, foram mais de 500 homicídios.

Ana Paula, o marido e dois amigos iam à padaria, apesar do toque de recolher. Era segunda-feira após o Dia das Mães. Ela estava com desejo de tomar vitamina e a filha mais nova precisava de leite. Antes de chegarem ao comércio, o passageiro de um carro desceu atirando contra o grupo. O parto cesáreo seria no dia seguinte.

Vera Lúcia, mãe de Ana Paula, estava em seu apartamento, localizado a quatro quadras da padaria, e ouviu os tiros que mataram os três. “Na hora, ela se preocupou, mas eu disse que tudo ficaria bem. Nem sempre isso é verdade”, lembra Lucimara Gonzaga, irmã de Ana Paula.

Após enterrar a filha, a neta e o genro, Vera começou a investigar o crime por conta própria. Descobriu o nome do policial que atirou contra eles, recolheu projéteis no local do crime e levou todas as provas à delegacia.

As evidências, porém, desapareceram. “O delegado afirmou que meu cunhado era bandido e tinha sido vítima de acerto de contas. Nunca chegaram a abrir processo. Minha mãe ficou muito doente por conta disso”, diz Lucimara.

Quando era menor de idade, Joey teve passagens por furto. Era filho de prostituta e, com parentes em situação de rua, só podia recorrer a uma avó. Amigo de infância de Ana Paula, ele ficou ao lado dela quando a adolescente havia sido abandonada grávida por um namorado.

“Ele sempre quis namorar minha irmã. Se aproximaram muito na gravidez e Ana Paula resolveu dar uma chance, com a condição de que Joey mudasse de vida. Quando morreram, ela estava esperando uma filha dele”, relata Lucimara.

Joey trabalhava em uma churrascaria das 11h à 1h da madrugada e também tinha sido servente. A família rechaça a hipótese de acerto de contas. Vera costumava dizer que havia perdido três pessoas pela mão do braço armado do Estado. Mas a história não acabou aí: ela mesma se tornaria uma das vítimas da chacina de maio.

Enquanto investigava, acabou presa por tráfico de drogas e cumpriu pena de 3 anos e 2 meses. Ela acusava a polícia de ter plantado provas para mantê-la calada após revirarem sua garagem, sem testemunhas, e levá-la para “averiguação”. “Chegando à delegacia, o militar disse que ela tinha balas e dois pinos de cocaína. Foi o suficiente para condenação”, lembra a filha.

A saúde de Vera começou a piorar cinco anos antes da morte da filha, quando o marido faleceu. Após o crime ela desenvolveu depressão, diabetes, hipertensão e chegou a enfartar. No último ano, passou do manequim 46 para o 36, estava abatida e apática. Seis meses antes de morrer, parou de atender clientes como manicure.

Os filhos se revezavam nos cuidados com Vera, atentos às mudanças de comportamento. Em 3 de maio de 2018, ela foi encontrada morta na própria casa, ao que tudo indica, cometeu suicídio. “Minha mãe vivia para cuidar da família. Mas ela foi se acabando. Nós sabíamos da sua doença, mas nunca imaginamos que chegaria a esse ponto”, lamenta Lucimara.

O laudo do IML traz escrito: edema agudo dos pulmões, cardiopatia isquêmica, aterosclerose coronariana e diabetes. Há tempos ela falava em se matar, segundo a amiga Débora Silva, que também teve o filho, Edson Rogério, morto na mesma chacina. Juntas, elas fundaram o movimento Mães de Maio, que luta por Justiça até hoje.

Em Santos, Vera construiu a vida. Ela cresceu em uma família desestruturada e ainda adolescente fugiu da violência doméstica. Não sabia ler nem escrever. Encontrou seu alicerce quando conheceu Isaías, com quem teve quatro filhos. A Ana Paula era caçula, nascida prematura e com problemas de coração, o xodó da casa, superprotegida.

Minha mãe se recusava a tomar remédio para dormir. Queria estar acordada para buscar justiça pela Ana”

Lucimara Gonçalves, filha de Vera

A despedida

Vera gostava de cozinhar e de ter a casa cheia. Havia combinado de fazer o prato favorito de Lucimara, costela com batatas, no fim de semana. A família, em vez de se reunir ao redor da mesa, encontrou-se no cemitério.

Em sua última quinta-feira de vida, Vera levantou-se, fez café e não tirou o pijama até a hora do almoço. Passou uma camisa branca com slogan do Mães de Maio e a deixou pendurada na porta do quarto.

Tomou banho, vestiu-se e penteou os cabelos. Deitou-se na cama cercada de fotografias de Ana Paula, espalhou pelo cômodo ultrassons da neta, documentos sobre o crime e todos os papéis que reuniu ao longo dos anos de luta na ONG. Ali, entregou seu corpo cansado à morte.

Paulo Robson, filho de Vera, a chamou, pois queria avisar que sairia para o trabalho. Diante do silêncio, foi até o quarto dela, onde a encontrou sem vida. “Ela escolheu partir. Dizia que não ia suportar mais um ano disso. A injustiça matou a minha mãe”, afirma Lucimara.

Maria Santina lia a Bíblia quando a campainha tocou. Do outro lado da porta, um amigo de seu filho mais velho a aguardava, sem palavras. “Pelo olhar dele, vi que tinha acontecido alguma coisa séria”, relata. José Chaves, 27 anos, havia sido baleado e estava no Instituto Hospital de Base.

A família dirigiu-se ao centro de saúde com esperança de que ele sairia dali com vida, mas na madrugada veio a notícia da morte. O estudante de administração voltava da faculdade na companhia de dois colegas, em 4 de abril de 2013, quando um tiro acertou o veículo em que estava, na BR-070.

Era noite e chovia, o policial militar Eliano Fernando do Prado confundiu o carro com um veículo roubado que deveria perseguir, segundo o oficial alegou em depoimento à Justiça. Disse ter atirado no pneu, mas as balas acertaram a cabeça de José. A mulher de José estava grávida e, um mês após sepultar o marido, deu à luz o filho do casal, Miguel, batizado em homenagem ao avô paterno.

Hoje, a criança tem 5 anos e pergunta pelo pai. “Ele questionou se a mãe tinha um par de asas para emprestar, porque ele queria ir no céu vê-lo. Difícil explicar o quanto isso dói”, conta a avó.

A vida de Santina se transformou. Ela ainda se recuperava da morte do marido, Miguel, quando enterrou o filho. No primeiro mês, não comia, apenas tomava café. Antes disso, ia à igreja, tinha vida social e saúde perfeita.

Atualmente, sofre de pressão alta, fuma três carteiras de cigarro por dia devido à ansiedade, tem colesterol alto, toma calmantes, sente tonturas, fraquezas e não pode andar sozinha pelo risco de desmaios. “Me escondo das pessoas, não quero falar com ninguém. Minha casa está vazia e a vida também”, afirma.

Santina nunca recebeu nenhum auxílio financeiro ou psicológico do Estado. Enquanto isso, os dois filhos mais velhos de José, que estudavam em colégios particulares, tiveram de ir para instituições públicas.

A mãe passou a trabalhar como cuidadora de idosos e, para dar conta das despesas, assumiu plantões extras. “Me tiraram o presente e o futuro. A essa altura, José estaria formado em administração e fazendo muito pela nossa família”, lamenta.

Desfecho

O promotor da 3ª Promotoria de Justiça Militar do Tribunal de Justiça do DF, Flávio Milhomem, previa que o julgamento do caso ocorresse até julho de 2018, mas ainda não houve sentença. O Ministério Público pediu a condenação do policial e o processo está em fase de alegações finais.

O advogado da família, Márcio Lima da Silva, lamenta a morosidade da Justiça e a ausência de formas eficazes de proporcionar reparação às vítimas. “Maria ainda estará sujeita ao precatório, a indenização sequer tem data para ser recebida”, afirma.

Inicialmente, o caso seria tratado como homicídio doloso na Justiça comum, mas o Tribunal do Júri de Ceilândia classificou a acusação como homicídio culposo (sem intenção de matar) e tentativa de homicídio culposo (em relação aos outros ocupantes do veículo). A defesa do PM não quis comentar o processo.