A enchente em 3D
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Os últimos dias de abril foram alegres no apartamento térreo do prédio 220, na Avenida Padre Cacique, em Porto Alegre (RS). Juliana Dias, de 46 anos, recebia a mãe de 70 anos que estava de visita por uns dias. As duas curtiam as manhãs frias, tomando chimarrão e conversando na companhia do Figueroa, um yorkshire de seis meses.
O clima da casa mudou radicalmente em 2 de maio. O céu foi tomado por nuvens pesadas e um temporal sem precedentes desabou sobre a capital gaúcha. Em um dia, choveu 108,4 mm e o Guaíba atingiu 3m43 — quase a marca histórica de 4 metros registrada na enchente de 1941. A Defesa Civil pediu para a população evacuar alguns bairros próximos ao centro da cidade.
Moradora do Menino Deus, Juliana resolveu se antecipar e pediu abrigo na casa de uma amiga. Antes de sair, a empresária guardou no alto tudo o que pôde, com o intuito de salvar o maior número de objetos possíveis. “Queria proteger principalmente as fotos porque se a água as destruíssem, eu não teria como recuperar essas lembranças”.
Juliana saiu de casa na sexta-feira, 3 de maio, e pegou o essencial: um notebook, que usava para trabalhar, o cachorrinho e uma muda de roupa. Acompanhada da mãe, a mulher abandonou o apartamento acreditando que voltaria em poucos dias. “Fiz uma oração e bati a porta de casa”, conta.
Imagem aérea do Centro de Porto Alegre, completamente inundado, em 6 de maio
Poucas horas depois, as mensagens no grupo do condomínio confirmaram seus piores medos: a água havia invadido o prédio. Quando soube que a lama dentro de seu apartamento atingia a altura do peito de um vizinho que media 1m84, ela teve certeza de que havia perdido tudo. Com 1m57, ela mesmo ficaria submersa se estivesse lá.
Ela voltou para casa 15 dias depois de ter abandonado o apartamento térreo. Abriu a porta de seu lar e ficou devastada ao ver tudo destruído. No meio aos destroços, uma pequena vitória: suas fotografias estavam intactas. Aquilo lhe deu um sopro de esperança. “Acho que Deus gosta muito de mim”, pensou.
Leonardo Laipelt/Planet Labs
Imagens de satélite de Porto Alegre, registradas em 20 de abril e em 6 de maio
Em meio a tanto caos e destruição, ela também encontrou solidariedade. Abraços, mensagens de apoio e doações foram um alento. A história de Juliana poderia ter sido única, mas as chuvas de maio atingiram mais de 157 mil pessoas em Porto Alegre. Não é difícil encontrar relatos arrasadores de destruição. A capital gaúcha se tornou símbolo da tragédia climática que assolou o Rio Grande do Sul em maio de 2024.
A chuva forte começou a cair no Vale do Rio Pardo, na região central do Rio Grande do Sul, em 27 de abril. Dois dias depois, o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet) emitiu o primeiro alerta vermelho sobre o risco de enchentes.
A água intensa na Serra Gaúcha encheu os rios Jacuí, Caí, Antas e Pardo. A chuva se acumulou, desceu as montanhas e destruiu dezenas de cidades ribeirinhas.
Em 2 de maio, a água da enchente chega ao Lago Guaíba, em Porto Alegre. Localizada em uma planície, a capital gaúcha é o ponto final de escoamento da chuva que vem da região montanhosa no norte do estado.
2,63 metros
A Defesa Civil solta um alerta pela manhã sobre o risco de transbordamento do Guaíba. A prefeitura fecha as comportas de contenção do sistema de proteção contra enchentes.
3,14 metros
O governo municipal orienta moradores e comerciantes das áreas próximas ao Guaíba, especialmente na zona sul, no Centro Histórico e no 4º Distrito de Porto Alegre, a deixarem as áreas de risco e procurarem abrigos seguros.
3,43 metros
A água avança rapidamente, submergindo a Avenida Sertório, os trilhos do Trensurb e os paralelepípedos no Cais Mauá.
3,43 metros
Sacos de areia são usados para proteger os prédios.
3,43 metros
Na Orla, a partir da Usina do Gasômetro, arbustos, passarelas e equipamentos de lazer ficam submersos.
3,68 metros
As águas do Guaíba invadem o centro da cidade e alagam prédios históricos e principais avenidas. O Mercado Público, a Casa de Cultura Mario Quintana, o Museu de Artes do Rio Grande do Sul, o Farol Santander, os arredores da prefeitura e a Estação Rodoviária são inundados e paralisam suas operações.
3,68 metros
A Estação de Bombeamento de Águas Pluviais (Ebaps), próxima à comporta 3, transborda, o que intensifica a inundação.
3,68 metros
A comporta 14 na zona norte se rompe parcialmente, permitindo que as águas se espalhem pela Rua Voluntários da Pátria.
3,68 metros
A Arena do Grêmio é inundada e o gramado fica completamente tomado de água. Alguns dias depois, o estádio acolheu mais de 500 desabrigados dos bairros Farrapos e Humaitá, na Zona Norte.
3,68 metros
O Estádio Beira-Rio do Internacional que fica perto dos bairros Praia de Belas e Menino Deus também é invadido pela lama. O CT Parque Gigante também foi completamente tomado pela água.
4,77 metros
O Aeroporto Internacional Salgado Filho é fechado e suspende pousos e decolagens indefinidamente, devido ao elevado volume de chuvas.
4,77 metros
A Estação Rodoviária de Porto Alegre também é invadida pela água, sem previsão de retorno das viagens.
4,80 metros
A situação se agrava com a interrupção do fornecimento de energia elétrica, que deixa cerca de 4 mil unidades sem luz. A região também fica sem água após o Departamento Municipal de Água e Esgotos (Dmae) cortar o abastecimento em 20 bairros.
5,19 metros
Porto Alegre fica praticamente isolada. A força da água causa o desmoronamento de parte do asfalto na Avenida Castelo Branco, um dos principais acessos à capital. As BR-290 e BR-116 também são fechadas devido à enchente.
5,19 metros
A RS-040, que leva ao Litoral Norte, é a única rota de entrada e saída da cidade.
O volume da inundação variou ao longo do mês de maio, conforme a intensidade das chuvas. O Guaíba chegou ao pico de 5,3 m acima do Cais Mauá em 5 de maio e reduziu a 3 metros em 1º de junho; dois dias depois, porém, o nível de água voltou a ultrapassar a cota de inundação.
Igo Estrela/Metrópoles
A estação de telemetria do Guaíba era o Cais Mauá até 29 de maio. Devido ao avanço das águas, uma nova régua precisou ser instalada no Gasômetro, porque a estrutura antiga foi destruída durante a inundação.
A nova régua foi construída sob um padrão diferente da antiga. Por isso, o nível de alerta mudou de 2,55 m para 3,15 m, e o de inundação, de 3 m para 3,6 m.
O atual parâmetro para o nível de inundação é equivalente ao tamanho de um ônibus urbano escolar.
O pico do Guaíba chegou a 5,3 m. Para fins de comparação, uma casa de dois andares tem aproximadamente 6 metros de altura.
O SISTEMA DE PROTEÇÃO CONTRA CHEIAS
Em 1941, Porto Alegre viveu a pior enchente até aquele momento. As águas inundaram quase todo o Centro Histórico e os bairros da zona norte e da zona sul da capital. Para evitar novos alagamentos, um plano precisou ser colocado em prática. Na década de 1960, a prefeitura inaugurou o Sistema de Proteção Contra Cheias, que incluía a construção de 68 quilômetros de diques, 14 comportas e 23 casas de bombas.
O ESTADO TODO
Apesar de Porto Alegre ser o epicentro da tragédia, as enchentes devastadoras atingiram o Rio Grande do Sul inteiro: mais de 2 milhões de pessoas foram afetadas. As chuvas no estado desalojaram mais de 500 mil pessoas e deixaram mais de 180 mortos. De acordo com o levantamento do governo, 478 dos 497 municípios gaúchos foram atingidos.
Desde a histórica enchente de 1941 em Porto Alegre, que durou 22 dias e deixou mais de 70 mil desabrigados, até o ciclone de setembro de 2023, que ceifou a vida de mais de 50 pessoas, o Rio Grande do Sul tem sido palco de tragédias ambientais recorrentes.
O relatório “Brasil 2040: cenários e alternativas de adaptação à mudança do clima”, solicitado pelo governo federal em 2015, apresentou projeções alarmantes sobre o aumento das chuvas no Sul, entre outros fenômenos climáticos extremos. No entanto, as informações encontradas no documento não inspiraram ações preventivas dos governantes.
Dados do Portal da Transparência revelam que a gestão do prefeito Sebastião Melo (MDB) não investiu um real sequer no setor “Melhoria no sistema contra cheias”, embora o Departamento Municipal de Águas e Esgoto (Dmae), responsável pela área, tivesse R$ 428,9 milhões para gastar.
Antes de zerar os investimentos em 2023, o número foi caindo drasticamente nos anos anteriores. Em 2021, foram gastos R$ 1.788.882,48 na prevenção de enchentes e, em 2022, R$ 141.921,72. Em contrapartida, a prefeitura da capital gaúcha estima que sejam necessários de R$ 6 bilhões a R$ 8 bilhões para reconstruir Porto Alegre.
As bombas e as comportas já haviam falhado anteriormente. No ciclone do ano passado, por exemplo, os portões precisaram ser fechados com uma retroescavadeira, e o trilho foi soldado na hora da enchente. O serviço foi realizado manualmente, segundo o Dmae, porque ladrões roubaram os motores e outros itens da estrutura.
A Usina do Gasômetro vista do Guaíba
Alarmada com a situação precária do Sistema de Proteção Contra Cheias, a área técnica do Dmae elaborou um relatório, no ano passado, apontando todos os pontos que precisavam de manutenção. Segundo documento divulgado pelo deputado estadual Matheus Gomes (PSol-RS), os engenheiros alertaram, após uma sequência de chuvas em novembro de 2023 que elevaram o nível do Guaíba a mais de 3,4 metros, sobre a necessidade urgente de reparos em quatro casas de bombas (13, 17, 18 e 20).
A Arena do Grêmio também foi atingida pela inundação e ficou interditada
O documento de mais de 100 páginas indica que o processo de solicitação de reparos estava em tramitação desde 2018. “Os engenheiros fizeram o seu papel, mas quem autoriza as ações negligenciou. Prova disso é que, em 23 de abril de 2024, ainda não havia sequer um cronograma para fazer os reparos”, afirmou Gomes nas redes sociais.
Além dos problemas estruturais no sistema de proteção, a urbanização descontrolada, sem considerar impactos ambientais e características naturais do terreno, agrava ainda mais a situação. Muitas áreas afetadas são notoriamente vulneráveis às cheias.
Especialistas consideram que a resposta das autoridades à enchente foi inadequada e descoordenada, o que reflete uma ausência de planejamento e preparação. “Muitos gestores utilizam o discurso de mudanças climáticas para se eximir da culpa pelos desastres. Não podemos culpar somente a natureza. Para acabar com as inundações urbanas, é necessário mais investimento público em infraestrutura, prevenção e ações de resposta”, avalia Saulo Vital, professor do Departamento de Geociências da Universidade Federal da Paraíba (UFPB).
Técnicos não acreditavam que o muro construído décadas atrás seria suficiente para proteger a cidade de uma enchente atual. Segundo cálculos recentes, dependendo da quantidade de chuva, a água poderia passar por cima do dique e inundar a cidade. O muro, então, dificultaria o escoamento da água de volta para o lago. Por isso, especialistas indicavam que o sistema de proteção deveria ser derrubado. Alguns políticos manifestaram-se contra essa medida, porque, sem a proteção, reformas na região ribeirinha deveriam ser feitas com mais frequência.
Estradas de todo o estado foram destruídas, deixando municípios praticamente ilhados
Mainardi, porém, questiona se os custos eventuais de manutenção na área ao redor do lago não seriam menores do que o montante necessário para reconstruir Canoas. “Isso é um dos motivos que nos faz pensar: será que vale realmente a gente tomar essa medida estrutural, ao construir um dique, sendo que um dia ele pode ser superado e causar um dano enorme?”, pondera.
Leonardo Laipelt/Planet Labs
Antes e depois do bairro Mathias Velho, em Canoas; a primeira imagem foi registrada em 20 de abril e a segunda, em 6 de maio
Juliana e milhares de gaúchos buscam, agora, recomeçar e encontrar um novo lar. “Tudo o que consegui salvar, cabe em dois sacos de lixo”, conta com tristeza. Apesar disso, a empresária autônoma afirma que a vida em Porto Alegre será difícil, mas desistir não é uma opção.
“Sei que a economia do Rio Grande do Sul, em geral, vai ficar muito difícil, mas a gente gosta daqui. Gostaria muito de ficar na capital. A gente não pode desistir. Agora, é enxugar as lágrimas, arregaçar as mangas e seguir.”
Gustavo Mansur/Palácio Piratini