Há frestas coloridas no
“muro do apartheid”?
Fomos a Israel e à Palestina e ouvimos relatos de homossexuais e de um transgênero sobre a vida nos dois territórios
03/07 6:32 , atualizado em 08/07 18:08
Israel – No solo de onde jorrariam leite e mel, escorre o sangue dos inocentes. A segregação ocorre a olho nu, na Terra Santa. Uma cerca de 700 km de extensão – com partes feitas de concreto e passagens vigiadas por soldados fortemente armados – está em construção e isola a Palestina (Cisjordânia e Jerusalém Oriental) de Israel, desde 2002.
A presença da cerca não é unanimidade em Israel. Quem a apoia chama-a de “cerca de segurança”. Segundo o governo atual, mortes em atentados terroristas em Israel diminuíram após sua instalação. A narrativa palestina vê o muro como símbolo do apartheid e do colonialismo israelense. Palestinos com menos de 14 anos não conhecem a paisagem sem muro e já nasceram privados da liberdade de ir e vir.
O muro de separação entre Israel e Palestina está em construção e deve chegar a 700 km
De qualquer ângulo que se olhe, a vida e os direitos são desiguais dos dois lados do muro. Essas diferenças impactam em toda a população, com peso especial sobre as minorias, como a LGBT, que em qualquer contexto precisam lutar em dobro pela liberdade.
Separadas por alguns quilômetros, as duas nações vivem realidades distintas. Enquanto Tel Aviv é considerada capital gay do Oriente Médio, com 25% da população homossexual e uma famosa parada LGBT, amar alguém do mesmo sexo pode ser fatal na Palestina.
Esse tipo de relação não é contra a lei na região, como ocorre em alguns países muçulmanos, mas o tabu permanece. Há uma nova geração de palestinos que luta contra essa repressão (veja em Para saber mais). Como em diversas sociedades, porém, há uma parcela da população que pensa e age de maneira conservadora e radical. A presença de grupos como o Hamas, que persegue homossexuais com crueldade, torna a situação extrema.
Israelenses e palestinos vivem um complexo conflito motivado por questões territoriais, religiosas e políticas
As contradições fazem parte da rotina das duas nações. O exército israelense (FDI) aceita homossexuais e inclusive paga pela cirurgia de mudança de sexo de soldados transgêneros. Mas também já foi denunciado por chantagear homossexuais palestinos para que se tornassem espiões.
A ocupação dos territórios palestinos por Israel é apontada por ativistas gays como o principal fator a dificultar que minorias ganhem voz e lutem por direitos nessa parte do mapa. No resultado final dessa complexa equação, o conflito tem mais peso até que as questões religiosas, na visão da ONG Al-Qaws, principal liderança palestina LGBT. O Metrópoles visitou a Palestina e Israel e mostra nessa reportagem narrativas sobre a vida dos dois lados do muro.
“Minha mãe, como mulher, não tem direitos. Como vou confrontá-la sobre me aceitar?”
Abdallah Rawashda, de 28 anos, hoje tem liberdade para ir a qualquer lugar do mundo, menos para casa. Há 6 anos, ele deixou Hebron, na Palestina, onde nasceu, para poder sobreviver. A polícia secreta palestina monitorou conversas entre ele e um amigo, que deixavam claro a orientação sexual dos dois.
Numa manhã de janeiro de 2010, ele foi levado a uma sala de interrogatório e acusado de colaborar com Israel, mesmo sem nunca ter pisado lá. “Qualquer gay que é identificado é imediatamente acusado de ser um espião do inimigo”, diz Abdallah.
Depois de 16 horas de espancamento e tortura, Rawashda não cedeu e se recusou a assinar uma confissão. Os torturadores, então, ligaram para o pai do garoto e contaram que o filho era gay. Na ligação, a mãe o aconselhou a não voltar para casa. Os irmãos e o pai estavam à sua procura, pois ele havia desonrado a família e isso poderia custar-lhe a vida.
Com ajuda de amigos, ele conseguiu fugir para Israel. Menos de duas semanas depois, porém, foi pego pela polícia, em Tel Aviv. Teria permissão para ficar, caso se tornasse informante. Ao se recusar, foi devolvido à terra onde estava ameaçado de morte. “Quando palestinos entram em Israel se tornam um alvo. Eles sabiam da minha situação e se aproveitaram”, lembra.
Rawashda entrou ilegalmente em Israel algumas vezes e foi obrigado a voltar à Cisjordânia em todas as tentativas, até receber ajuda de advogados e da Organização das Nações Unidas (ONU), que providenciou sua mudança para Oslo, na Noruega, em agosto de 2010. “Falo pouco com minha família pelo telefone e é muito triste não poder ir para casa”, disse em entrevista ao Metrópoles.
O governo israelense usa os direitos LBGT para esconder a sua postura de apartheid. Tel Aviv não é toda Israel. O restante do país está afundado em homofobia e racismo. Os fundamentalistas judeus são mais radicais que os muçulmanos”Abdallah Rawashda
Os amigos dele que ficaram na Palestina e são gays vivem sua sexualidade em segredo. “Tive notícias de um amigo que se assumiu, em Belém (Palestina), e os pais aceitaram bem. Mas eles são muito educados, são uma exceção. Ainda temos um longo caminho pela frente, estamos falando de uma sociedade inteira e não de apenas um país”, afirma.
Rawashda relata que a pobreza e a opressão na Palestina são um grande obstáculo. “As pessoas precisam de autorização para tudo. É uma situação muito difícil. Não há direitos básicos na Palestina. É preciso liberar as pessoas da ocupação, para então nos libertarmos de todo o resto. Minha mãe, como mulher, não tem direitos. Como vou confrontá-la sobre me aceitar?”, questiona.
Histórias semelhantes à de Rawashda repetem-se diariamente, em todo o Oriente Médio. Há dois meses, Ahmed, 21 anos, que é gay, mudou-se de Nablus, a 63 quilômetros ao norte de Jerusalém, para o Canadá, com a ajuda de uma ONG.
“Fiz essa escolha para poder ser livre e também para encontrar um trabalho. O desemprego é muito grande na Palestina. Sem trabalho, sem independência, é impossível sair do armário”, lamenta.
Uma das primeiras atitudes ao chegar ao Canadá foi tatuar no braço uma linha semelhante à registrada em monitores que acompanham os batimentos cardíacos de um paciente. Ahmed quis eternizar o momento em que renasceu.
Se minha família descobre que sou gay, eles me matam. Meus amigos que são gays vivem vidas secretas, combinando encontros pelo Facebook e longe de lugares públicos”Ahmed, 21 anos, de Nablus
Entenda o conflito
Para compreender o contexto da construção do muro é preciso ter noção das disputas territoriais entre judeus e árabes na região da Palestina. Essa disputa, que ocorre há centenas de anos, intensificou-se a partir de 1949, quando a ONU iniciou a partilha da região.
Israel e Palestina vivem uma disputa territorial motivada por complexas questões históricas, religiosas e políticas. O movimento sionista defende o direito à existência de um Estado judaico, no território onde historicamente existiu o antigo Reino de Israel.
Séculos antes, judeus foram expulsos dali e sofreram com a escravidão. Também viveram o holocausto, o que os motivou ainda mais a retornar à Terra Santa, com a justificativa de estar em segurança no novo estado. Na mesma terra, porém, viviam milhares de palestinos, que foram expulsos para a formação de Israel.
Acordos internacionais para a formação de dois estados para dois povos foram negociados, mas a solução não se concretizou. A Palestina não aceitou os limites territoriais, que considerou opressores, e Israel não respeitou a delimitação ao construir colônias (assentamentos onde vivem judeus, com forte vigilância militar) dentro da Palestina, empurrando o conflito para cada vez mais longe do fim.
Do outro lado do muro
Shahar nasceu em uma tradicional família judia em Israel. Primogênita, com dois irmãos menores, foi criada em um kibutz, uma pequena comunidade agrícola onde a propriedade coletiva é incentivada. Aos 2 anos, pediu aos pais que raspassem a sua cabeça. Não se identificava com nada do que era apresentado como “coisa de menina”.
Teve o pedido prontamente atendido. “Eu não tinha a aparência esperada de uma garota. Me vestia como um garoto e, se é que se pode dizer isso, agia como um garoto a minha infância inteira. Sempre soube que eu me sentia diferente”, relata.
Somente aos 16 anos, Shahar conheceu o termo transgênero – que é quando uma pessoa não se identifica com o gênero designado no nascimento.
Entendi que meus sentimentos tinham um nome. Que não era algo que só existia na minha cabeça, era comum outras pessoas se sentirem como eu”
Shahar, 22 anos, judeu e transgênero
Os pais e amigos mais próximos reagiram bem e Shahar passou a viver plenamente como um garoto adolescente. “Tive muita sorte por ter a minha família. Em geral, a sociedade israelense não aceita tão bem essas questões.”
Aos 17, Sharar começou a preparação para servir ao exército. “Nesse momento, percebi que não seria nada simples. Como vou me apresentar? O que vou dizer às pessoas sobre mim? Como vou me vestir? Na minha identidade, eu ainda era uma mulher”, lembra.
Não importa o gênero, aos 18 anos, todos devem alistar-se, em Israel. É nessa idade também que, pela lei do país, quem está em desacordo com seu gênero biológico pode optar pela cirurgia de redesignação sexual, popularmente chamada de mudança de sexo.
Ele decidiu, então, contar somente aos comandantes da unidade onde servia sobre sua identidade de gênero. Sua aparência, porém, mostrava que ele não era uma garota como as outras.
“As mulheres não ligavam para a minha aparência. Elas não se importavam tanto. Meu comando me apoiou, permitiu que eu usasse o uniforme unissex e me viu como bom candidato a oficial. Durante o curso de formação, comecei a entender que não poderia guardar esse segredo, não poderia esconder dos meus soldados algo tão básico sobre mim”, afirma.
O exército israelense aceita homens e mulheres, que são divididos em pelotões diferentes
Atualmente, Shahar é tenente e responsável por uma unidade inteira. Em maio de 2016 passou pela cirurgia de redesignação de gênero. Optou por manter o mesmo nome – que é unissex – na certidão de nascimento.
A coragem de Shahar mudou as coisas dentro da Forças de Defesa de Israel (FDI). Há cinco anos, quando ele se assumiu, não havia qualquer regra sobre como receber soldados transgênero. “Outras pessoas começaram a me procurar para pedir conselhos, gente que já estava no exército ou acabara de entrar. A partir da minha experiência, criaram-se regras para receber melhor pessoas como eu”, diz.
Atualmente, o militar faz parte de uma comissão sobre questões de gênero, dentro do exército – onde há 60 transgêneros. “A cada ano mais pessoas têm se declarado trans. De dois anos para cá, tivemos que lidar com mais situações assim. É nosso papel garantir os direitos de todos dentro da FDI”, explica a Major Merav Stoler, porta-voz de Recursos Humanos da corporação.
O exército de Israel arca com os procedimentos cirúrgicos nesses casos e banca todos os tratamentos. “É como qualquer outro procedimento médico aprovado pela lei israelense”, diz Merav.
Mulheres servem ao exército, obrigatoriamente, durante 2 anos, e homens ficam por 2 anos e 8 meses. Em caso de troca de sexo, o soldado pode escolher a opção que o deixar mais confortável.
Uma ilha chamada Tel Aviv
Corpos sarados e suados, beijos entre pessoas do mesmo sexo, bandeiras com arco-íris e cartazes com dizeres como: “sinta orgulho de si mesmo” e “não tenho nada a esconder”. O dia em que homossexuais vão às ruas em Tel Aviv para celebrar suas conquistas e exigir direitos é simbólico pela localização da cidade israelense, no Oriente Médio. Na mais recente edição, em maio de 2016, quase 200 mil participaram.
Não existe casamento civil, em Israel, somente cerimônias religiosas. Portanto, casais gays que desejarem casar-se precisam sair do país e validar a união posteriormente, na Justiça. Homossexuais que desejam adotar uma criança também deixam Israel – geralmente recorrem a barrigas de aluguel em países asiáticos ou na América do Sul.
A Parada Gay de Tel Aviv é uma das maiores do mundo: 25% da população local é homossexual
Tel Aviv, em toda sua diversidade, porém, não representa todo o estado de Israel. Em 2015, na Parada Gay de Jerusalém, um judeu ortodoxo matou a facadas uma menina que participava do ato. A homofobia ainda é uma realidade no país.
Cinco perguntas para:
Shai Doitsh, 37 anos, nascido em Tel Aviv, ativista LGBT, ex-presidente da força tarefa pelos direitos LGBT The Aguda.
O que diferencia Israel de outros países do Oriente Médio com relação à homossexualidade?
Em alguns aspectos, Israel é como os outros países da região: religioso e conservador. O regime político democrático é a principal diferença. Usamos nossa voz para lutar pelos nossos direitos. Se não nos aceitam pela porta, nós entramos pela janela. Em nenhuma parte do mundo ninguém deu nada de presente à população LGBT.
Qual é a principal batalha dos LGBT, em Israel?
Os direitos são frágeis. Lutamos para transformá-lo em leis. Mas é muito difícil graças às coalizões de governo, à bancada conservadora de direita. Israel não tem Constituição, mas tem uma Corte Suprema que defende os Direitos Humanos. A idade média em que uma pessoa sai do armário, em Israel, é aos 12 anos. No resto do mundo, essa média é de 15 anos. Nosso trabalho é para educar a população.
Grafite na parada de Tel Aviv. Palestinos acusam Israel de usar direitos LGBT para esconder o conflito
Qual é o papel da comunidade Palestina ou árabe-israelense nessa luta?
Tenho certeza de que a liberdade em Israel tem impacto nos países vizinhos. Eles também têm comunidades gays e buscam avanços. No Líbano e na Síria, as ONGs operam de maneira clandestina. A comunidade LGBT nos territórios palestinos está em pior situação: Israel não tem uma política de recepção de refugiados homossexuais. Há duas décadas, nós, como ONG, tentamos ajudá-los a ir para outros países, mas a maioria gostaria de ficar em Israel. Mas nós também entendemos os dilemas das forças de segurança.
Com frequência, Israel é acusado de “pink washing”, ou seja, de usar os direitos LGBT para melhorar sua imagem diante do mundo, com relação ao conflito com a Palestina. O que você pensa sobre isso?
Para quem fala em pink washing, o fato de eu estar aqui falando com você é só para disfarçar a ocupação. Uma coisa não tem nada a ver com a outra. O fato de Israel ser bom para os LGBT não quer dizer que não existam problemas. Todos acham que devemos olhar para a nossa vida pelo prisma do conflito. Para mim, é como pedir aos gays dos EUA que parem de lutar pelos seus direitos até que o país saia do Afeganistão.
A The Aguda ajuda os homossexuais ameaçados de morte na Palestina? Vocês têm notícias de chantagem por parte de Israel com relação a esse assunto?
Nós soubemos de alguns casos de chantagem, sim, e nós saímos contra esse fenômeno. Nos últimos anos, não ouvi nenhum caso, mas, se houver, sairemos contra, sempre. Nos preocupamos com os árabe-israelenses. Até pouco tempo, havia pouca informação LGBT em árabe e nós traduzimos. Buscamos as lideranças árabes, pois esse processo não acontecerá sem eles. Nosso país foi fundado sob as bases do holocausto: uma perseguição de minoria. Na declaração de independência diz que não deve haver discriminação.
Para saber mais
O documentário Oriented é uma janela para a vida de uma nova geração de palestinos. A câmera registra o cotidiano de três palestinos gays, que vivem em Tel Aviv.
É uma nova geração de palestinos que você não teve a chance de conhecer. Acho que muitas pessoas que viram o filme mudaram sua mente sobre como é ser um árabe gay e palestino. Saiam das suas bolhas e deixem os “funky” árabes abrirem a sua mente”
Khader Abu-Seif, um dos personagens de Oriented
Indicação de filme
Oriented é um documentário que relata a vida de três amigos palestinos gays e fala sobre identidade nacional e sexual. O trio vive em Tel Aviv. Khader vem de uma família muçulmana e mora com o namorado judeu. Fadi é um nacionalista palestino que acaba se apaixonando por um israelense sionista. Naim quer confrontar a família sobre a verdade a respeito de sua sexualidade. Os três estão em conflito pelo desejo de mudança perante uma situação aparentemente sem esperança. Enquanto isso, uma guerra é fabricada. Do diretor Jake Witzenfeld
Indicação de leitura
Apesar de pequeno, o movimento gay palestino tem uma grande visão. Inclui vários grupos dentro da diversidade, que trabalham de maneira autônoma
Linah Alsaafin
*A repórter viajou para Israel e participou do curso Meios de Comunicação para a Paz, a convite da Histadrut, Federação da União dos Trabalhadores em Israel, e do Ministério das Relações Exteriores.